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O que confere dignidade ao homem?

Por: Luciene Félix

“O propósito ideológico do jovem que melhor traduziu o espírito do humanismo, intentava unificar os dois maiores sistemas de pensamento da humanidade: o idealismo platônico e o realismo aristotélico”


Turbilhões de idéias e ideais foram fomentados, entre o crepúsculo da Idade Média e a aurora do Iluminismo. Fervilhante e incerto, como o nosso atual, era o universo que cerceava o jovem Filósofo que nos legou um dos textos angulares sobre o significado de dignidade, característica intrinsecamente humana. Estamos no Renascimento, época das grandes navegações e de muitas outras descobertas relevantes e irreversíveis para toda humanidade.

O autor que descortinaremos, Giovanni Pico Della Miràndola, situa-se então, entre o alinhamento transcendente e metafísico-religioso da cultura medieva e o homem novo, surpreendido pela ótica da autonomia da razão, consciente de sua liberdade e do potencial construtivo com o qual ela acena. Os estudiosos de seu pensamento consideram A Dignidade do Homem (Oratio de Hominis Dignitate) não somente seu texto mais original como ainda tradução fiel do que foi o movimento humanista do Renascimento.

Ao se debruçar sobre a questão da dignidade humana, Pico Della Miràndola revelou-se, nas sensíveis e certeiras palavras de Luiz Feracine “uma alma pura que se enamorou dos mais sublimes ideais de perfeição humana”.

De origem nobre e abastada, Giovanni Pico, Conde de Miràndola e Príncipe de Concórdia, nasceu no castelo do condado de Miràndola, próximo da cidade de Modena, na Itália, aos 24 de fevereiro de 1463.

Dedicou-se inteiramente aos estudos, freqüentando os melhores centros de cultura de sua época e teve por mestres e amigos a nata intelectual, política e econômica do Renascimento tais como Lorenzo de Médici, Marcílio Ficino e Savonarola. Segundo Denis Huisman, “Foi o próprio símbolo da erudição por sua impressionante capacidade de aprender, apoiada numa memória que se tornou lendária”.

Eclético, precoce, prodígio e genial, encarnou o espírito de universalização da cultura. Além de italiano, francês, latim e grego, Giovanni ainda praticou o árabe, o hebraico e o caldeu. Estudou Direito, Letras, Filosofia, Teologia e, sob as barbas da Santa Inquisição, ousou enveredar pela Magia e a universal linguagem dos cosmos através da leitura dos textos originais da Cabalah judáica (conhecimento hermético em cuja árvore, as copas sefirots correspondem, analogamente, aos astros. Difere da astrologia determinista medieval pois hierarquiza os planetas e acena com a possibilidade de evolução humana, rumo à instâncias astrais mais elevadas).

Em seu anseio pela liberdade, condição sine qua non da dignidade humana, opôs-se ao determinismo astrológico que vigorava até então. Resgatar o livre arbítrio conferindo poder ao homem para alterar a direção do destino, corroboraria sua aguçada e prometéica sabedoria de que os astros inclinam, mas não determinam o destino. No mundo em que Pico viveu, a constelação inscrita na abóbada celeste no momento do nascimento era inexorável: nasce-se nobre ou Rei e se é coroado pelo Papa porque essa fora a vontade de Deus. Igualmente, nada a fazer quando à si coube a limitada e intransponível casta de serviçal. E quem ousaria contestar que não fosse assim na terra como no céu?

O levante não parte de um oprimido. Nascido em berço de ouro, Pico qualifica-se como pesquisador indômito e insaciável, atribui a si mesmo o pendor pela busca da verdade completa e universal. Ceifado muito cedo, morreu aos 31 anos de idade, provavelmente envenenado por seu secretário. De existência breve, porém marcante, por sua vastíssima erudição nos diversos âmbitos dos saberes, foi denominado a fênix dos gênios.

Almejando a maior láurea do mundo da cultura, a fim de levar a cabo um ousado e árduo trabalho intelectual, Pico recolhe-se e compõe um sistema acabado de doutrinas constituído por (pasmem!!!) novecentas teses. Com estas Teses ou Conclusões (de omni re scibili), esse arrojado Pensador de apenas vinte e quatro anos, buscava o denominador comum a todas as correntes do pensamento, o utópico ideal cavalheiresco da unidade do gênero humano.

Assim que concluiu seu projeto, cumpriu as formalidades acadêmicas e submeteu-o à apreciação dos juízes da banca examinadora. Vale lembrar que as universidades como as conhecemos hoje, nasceram na reclusão dos mosteiros, durante a Idade Média. Os doutores de Roma analisavam as Teses e Pico, já muito ansioso com a morosidade (cerca de um ano), é informado de que treze de suas Teses haviam sido repugnadas. Em três semanas, ininterruptamente, sob o título de Apologia, escreve e, sigilosamente, envia as respostas aos teólogos da banca.

Essa precipitação desagrada ao Papa Inocêncio VIII que rejeita oficialmente a pertinência do projeto aventado por Pico. Segundo Luiz Feracine, “embora o documento papal aparentasse certa complacência com o idealismo acadêmico do jovem intelectual, o interessado não se sentiu seguro, junto às portas do Santo Ofício, que rejeitara a sua pretensa coerência doutrinal. Pressentindo o perigo, Pico deixou Roma e refugiou-se em Florença”. Perseguido por heresia, acenava-lhe a possibilidade de vir a ser entregue à fogueira da inquisição. 

Sabemos, de Galileu Galilei, Giordano Bruno, Tommaso Campanella e tantos outros imprudentes pensadores que, imiscuir-se em questões de religião era brincar com fogo. Teve sua prisão decretada. Valendo-se de seus relacionamentos com os eruditos que não compactuavam com as severas medidas das autoridades eclesiásticas, foi acolhido por Lorenzo, o Magnífico, Ficino, Poliziano e outros expoentes da cultura.

O fracasso nessa empreitada, embora não tenha abalado suas crenças, deixou Pico profundamente arrasado. Sentindo-se incompreendido, deprimido devido à intolerância, muda radicalmente de vida, renuncia aos bens materiais, trocando todo esplendor da vida às largas nos salões aristocráticos pelo isolamento da vivência mística de sua fé, no convento de S. Marcos. Segundo o testemunho de sua biografia, “Giovanni Pico, vive santamente como um religioso, reza o ofício comum aos sacerdotes, observa os jejuns e as maiores abstinências, sem pompa, cercado de poucos criados”.

Um ano antes de morrer, recebeu absolvição plena por parte de Alexandre VI, mas o Papa não retirou a reprovação enérgica (excomunhão) sobre sua Obra.

Sensível, para este humanista, o amor, fundamental na fé cristã, possui capacidade de superar divergências e promover a harmonia e a paz. Giovanni é cônscio de que todo homem é um ser consciente, dotado de valor inestimável, e que é na dignidade que repousa a nobreza humana pois, o que há de único nos seres humanos não é somente sua racionalidade (Aristóteles) ou sua imortalidade (cristianismo) mas a magnânima capacidade de autocriar-se livremente, podendo vir-a-ser sempre e muito mais do que já é por natureza.

Pico Della Miràndola, original em sua análise sobre no que constituiria então a essência da liberdade humana, sem menosprezar os fatores condicionantes interiores e exteriores ao homem, enfatizará o mecanismo psicológico da liberdade em si. A liberdade é vista como uma potencialidade inerente ao homem, cuja essência repousa em sua autodeterminação, ou seja, no soberano direito à opção. Mas saliento que à liberdade, importa muito mais o poder escolher do que a escolha em si mesma. O poder de opção resulta de se ser livre. Somente quem é livre pode escolher. Observada por esse prisma, a liberdade se desvencilha do dogma determinista (religioso e/ou astrológico) que a engessara, que a induzia a constituir um mero instrumento de luta entre forças opostas, adversas e passa a ser um princípio positivo de ação sobre a realidade. Desse modo, está explicitada a essência da liberdade. É justamente por possuir esse poder de escolha, situado no foro íntimo de sua consciência individual, essa instância absoluta de autonomia que o homem tem dignidade. Pico afirma: “exercendo sua liberdade, o homem decide sobre si e forma-se. Nesse sentido, o homem é causa de si mesmo. Mas ele o é a título de criatura e de imagem de Deus (...). É a imagem de Deus, no homem, que fundamenta a liberdade e a dignidade da pessoa do homem”.

Um ser inacabado, imperfeito, cuja possibilidade de perfectibilidade e desenvolvimento de suas potencialidades é, senão infinita, ao menos de inimaginável delimitação. Através do inalienável e soberano poder de sua vontade, é livre para ter o porte, a estatura moral, intelectual e profissional que desejar. É a essa autonomia que Pico se refere ao reconhecer impresso no homem o total poder de controle sobre a natureza. Racional, consciente de si, capaz de conhecer e desvelar os recônditos da realidade, ordenar a matéria e sobretudo livre para agir, o homem não é somente mero expectador da história, ele a protagoniza. Somos dignos porque somos livres.

*Luciene Félix é Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da Escola Superior de Direito Constitucional