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Tribunal do Júri: O quesito absolutório e a tese exclusiva de negativa de autoria

Por: Manoel Torralbo Gimenez Júnior

O artigo 482, caput, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.689/08, dispõe que: "O Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido".

O mesmo diploma legal consigna, em seu artigo 483, § 2º, que, respondidos afirmativamente, por mais de três jurados, os quesitos relativos à materialidade do fato e à autoria ou participação (artigo 483, incisos I e II, do Código de Processo Penal), será formulado, na seqüência, quesito com a seguinte redação: "O jurado absolve o acusado?".

Interessante e importante questão surge quando a tese absolutória sustentada pela defesa, tanto pessoal como técnica, é, exclusivamente, a mais comum: negativa de autoria.

Como o quesito referente à autoria é votado antes do quesito absolutório, se respondido afirmativamente, por conseqüência, a única tese absolutória defensiva já teria sido negada. Assim, necessariamente, por coerência, os jurados deveriam responder negativamente ao quesito absolutório.

Relevante mostra-se aferir se o jurado poderia, nesse caso, afirmar, também, o quesito absolutório, ocasião em que absolveria o réu por qualquer outro motivo, sequer objeto de sustentação da defesa, pessoal e técnica, importando ressalvar, desde logo, que o presente texto prende-se à análise das situações em que não haja, efetivamente, qualquer outra tese jurídica passível de sustentação, não se cogitando de deficiência de defesa.

Para a solução do problema aventado, é fundamental o estudo da soberania dos veredictos.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, reconhece a instituição do júri, assegurando, em sua letra 'c', a soberania dos veredictos.

Esse dispositivo constitucional está inserido no Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos -, do Título II da Carta Magna – Dos Direitos e Garantias Fundamentais.

De plano, assume relevo a conceituação dos direitos e garantias fundamentais no Texto Magno. Esta a lição do prestigiado constitucionalista Alexandre de Moraes:

"Os direitos humanos fundamentais não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).

Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas" (Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 7ª edição, 2007, São Paulo, Editora Atlas, págs. 101/102).

No mesmo título da Lei Maior, aqui invocado, em seu artigo 5º, caput, é consagrado que: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

Garante o texto constitucional a igualdade de direitos dos cidadãos perante a lei e a inviolabilidadade do direito à vida.

Consoante o ensinamento do eminente constitucionalista, acima transcrito, a soberania dos veredictos deve harmonizar-se com a igualdade de todos perante a lei e a inviolabilidade do direito à vida, sendo por esses direitos limitada.

Disso resulta que os jurados, no exercício da soberania de suas decisões, não devem favorecer ou prejudicar qualquer cidadão que seja submetido ao seu julgamento, sob pena de desrespeito ao princípio da igualdade de todos perante a lei.

Outrossim, sendo competentes para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida – cuja objetividade jurídica, a vida, é consagrada como direito inviolável -, devem os jurados proceder ao julgamento de molde a respeitar e valorizar esse direito, sendo responsáveis, ademais, pela sua efetivação.

Nesse sentido, o saudoso Desembargador Adriano Marrey, em preciosa obra escrita em conjunto com Alberto Silva Franco e Rui Stoco:

"Em termos atuais – deve o preceito relativo à instituição do Júri ser compreendido em consonância com os demais da Lei Magna. Se nesta se garante a 'inviolabilidade do direito à vida' (art. 5º, caput), torna-se incompatível a decisão que absolva o homicida confesso, ou provadamente autor da morte, infringindo-se aquele dispositivo, que garante o respeito à vida.

Ponderou, em parecer, o douto Prof. José Frederico Marques, 'se o Júri, em crime doloso contra a vida, decide contra a prova dos autos de modo manifesto, absolvendo o réu, o direito à vida, um dos direitos fundamentais da pessoa humana, não estará sendo assegurado, mas, ao contrário, rudemente atingido, com o perigo evidente de tornar a proteção à vida um puro mito ou autêntica ficção'" (Teoria e Prática do Júri, 6ª edição, 1997, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, págs. 67/68).

Em abono a essa reflexão, entendendo que o exercício da soberania dos veredictos não se reveste de um poder incontrastável e ilimitado, já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal:

"A soberania dos veredictos do Júri – não obstante a sua extração constitucional – ostenta valor meramente relativo, pois as decisões emanadas do Conselho de Sentença não se revestem de intangibilidade jurídico-processual. A competência do Tribunal do Júri, embora definida no texto da Lei Fundamental da República, não confere, a esse órgão especial da Justiça comum, o exercício de um poder incontrastável e ilimitado. As decisões que dele emanam expõem-se, em conseqüência, ao controle recursal do próprio Poder Judiciário, a cujos Tribunais compete pronunciar-se sobre a regularidade dos veredictos. A apelabilidade das decisões emanadas do Júri, nas hipóteses de conflito evidente com a prova dos autos, não ofende o postulado constitucional que assegura a soberania dos veredictos do Tribunal Popular" (STF – 1ª T. - HC nº 70.193-1/RS – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 6, nov. 2006, p. 37).

Nesse mesmo sentido, o renomado processualista Fernando da Costa Tourinho Filho, ao explicar o que se entende por soberania dos veredictos:

"Obviamente, para o nosso CPP, não significa, nem traduz, uma onipotência desenfreada e descomedida. E tanto isso é exato que, embora os legisladores constituintes de 1946 houvessem proclamado a soberania das decisões do Júri, eles mesmos, quando alteraram o CPP, na parte atinente à instituição dele, para adaptá-lo às exigências constitucionais, por meio da Lei n. 263, de fevereiro de 1948, deixaram claro que, se a decisão dos jurados for manifestamente contrária às provas dos autos, poderá o juízo ad quem, desde que provocado, determinar a realização de novo julgamento. Não permitiram, em nenhum caso, pudesse a instância superior reexaminar a causa e proferir a decisão adequada. Autorizaram ao Tribunal ad quem corrigir as distorções, quando o erro partir do Presidente do Júri. Jamais quanto ao pronunciamento do Conselho de Sentença" (Processo Penal, 4o Volume, 14a edição, 1993, São Paulo, Editora Saraiva, págs. 56/57).

A esse respeito, clássica a lição de Adriano Marrey:

"...não são os jurados 'onipotentes', com o poder de tornar o quadrado redondo e de inverter os termos da prova. Julgam eles segundo os fatos objeto do processo mas, exorbitam se decidem contra a prova. Não é para facultar-lhes a sua subversão que se destina o preceito constitucional" (obra citada, pág. 66).

Desse modo, é consenso na doutrina e jurisprudência pátria a célebre definição do saudoso José Frederico Marques:

"'Soberania dos veredictos' é uma expressão técnico-jurídica que deve ser definida segundo a ciência dogmática do processo penal e não de acordo com uma exegese de lastro filológico, alimentada em esclarecimentos vagos de dicionários.

Se soberania do júri, no entender da communis opinio doctorum, significa a impossibilidade de outro órgão judiciário substituir o júri na decisão de uma causa por ele proferida, soberania dos veredictos traduz, mutatis mutandi, a impossibilidade de uma decisão calcada em veredicto dos jurados ser substituída por outra sentença sem esta base. Os veredictos são soberanos porque só os veredictos é que dizem se é procedente ou não a pretensão punitiva" (Elementos de Direito Processual Penal, Volume III, 1997, Campinas, Editora Bookseller, pág. 238).

Verificamos, assim, ser relativo o conceito de soberania dos veredictos, não traduzindo, de forma alguma, poder absoluto, ilimitado, mas que deve harmonizar-se com outros direitos fundamentais também previstos na Carta Magna.

Por outro lado, além das balizas constitucionais, já referidas, a lei que organiza a instituição do júri também traz parâmetros para o julgamento da causa pelos jurados. Relembremos o disposto no artigo 472 do Código de Processo Penal:

"Art. 472. Formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e, com ele, todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação:

Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça.

Os jurados, nominalmente chamados pelo presidente, responderão:

Assim o prometo.

Parágrafo único. O jurado, em seguida, receberá cópias da pronúncia ou, se for o caso, das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação e do relatório do processo".

Dessa forma, a legislação ordinária ressalta que as decisões dos jurados devem ser imparciais, de acordo com suas consciências e os ditames da justiça. Impõe limites e fixa parâmetros aos julgadores populares.

Tendo que decidir com imparcialidade, devem os jurados despir-se de preconceitos, não podendo, outrossim, favorecer ou prejudicar indevidamente os réus submetidos a seu julgamento, mas sim proferir com isenção suas decisões, que devem ser o produto da detida análise das provas carreadas ao processo.

Decisão de acordo com as consciências dos julgadores leigos, só pode ser entendida como julgamento desprendido de qualquer influência externa, pois já foi visto que os jurados não têm poder ilimitado para decidirem como bem entenderem, tanto que devem fazê-lo seguindo os ditames da justiça, como os exorta, na seqüência imediata, o texto infraconstitucional.

Aristóteles, na Antiguidade, ressaltava na justiça a marcante característica da proporcionalidade. Oswaldo Henrique Duek Marques, a propósito, leciona:

"Para Aristóteles, ademais, a pena tinha por objetivo restabelecer a igualdade entre os indivíduos, violada pelo ato delituoso, dentro de uma proporção aritmética, entre justo e o injusto. Consoante sustenta em sua obra Ética a Nicômacos, o justo é a proporção e injusto o que viola a proporcionalidade. Assim, se uma pessoa infligiu as normais penais e a outra sofreu um dano, há uma injustiça pela desigualdade na proporção. Então, por meio da penalidade, o juiz tenta igualizar as coisas... O equilíbrio da Justiça, rompido pela prática do crime, deve ser restabelecido pela punição proporcional ao dano causado pelo agente" (Fundamentos da Pena, 2000, São Paulo, Editora Juarez de Oliveira, pág. 23).

Os romanos, com seu espírito prático, assim definiram a justiça: "Dar a cada um o que é seu".

André Franco Montoro afirma que a consideração do direito como exigência da justiça, "é o significado fundamental do vocábulo direito", para explicar, em seguida, que: "Os latinos o chamavam jus e não o confundiam com a lex. Nesse sentido, direito é propriamente aquilo que é 'devido' por justiça a uma pessoa ou a uma comunidade... A essa acepção corresponde a expressão clássica: 'dar a cada um o seu direito'" (Introdução à Ciência do Direito, 21ª edição, 1993, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, págs. 123/124).

Santo Tomás de Aquino, citado pelo Desembargador Ricardo Dip, em primorosa obra escrita em co-autoria com o saudoso Desembargador Volney Corrêa Leite de Moraes Jr., pondera, "diz-se que, num princípio, antes que se instituíssem as leis, em nada diferenciava fazer isto ou aquilo. Mas, uma vez instituídas as leis, as coisas mudaram, porque desde então o justo consistirá em observá-las, e o injusto, em marginá-las..." (Crime e Castigo: Reflexões Politicamente Incorretas, 2002, Campinas, Editora Millennium, pág. 228 nota 9).

Essa a visão expressa por Maria Helena Diniz, ao sustentar que: "Como, em regra, o dever de dar a cada um o que é seu vem imposto por norma jurídica, pode-se afirmar que o justo é o que exige o direito. Daí ser a justiça o próprio ordenamento jurídico e o ideal a que deve tender o direito" (Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 3ª edição, 1991, São Paulo, Editora Saraiva, pág. 365).

Oswaldo Henrique Duek Marques nos ensina que o crime, na visão de Emmanuel Kant, "configura uma transgressão ao direito de cidadania", sendo que a "pena, por sua vez, constitui uma exigência de justiça absoluta, com o objetivo de restaurar a ordem social violada pela transgressão". (obra citada, págs. 60 e 61). 

Paulo Dourado de Gusmão assevera que "o direito pode ser considerado o veículo para a realização da justiça, que é, ou deve ser, a meta da ordem jurídica" (Introdução ao Estudo do Direito, 10ª edição, 1984, Rio de Janeiro, Editora Forense, pág. 91).

De tudo quanto visto acerca do conceito de justiça e sua íntima relação com o direito, constata-se ser o direito a materialização do ideal de justiça, produzido por um povo em um determinado momento histórico.

Outro parâmetro da legislação ordinária imposto aos jurados, para o julgamento da causa que lhes for submetida, encontra-se no já invocado artigo 593, inciso III, letra 'd', do Código de Processo Penal: será anulada, pelo Tribunal de Justiça, a decisão dos jurados caso ela seja manifestamente contrária à prova dos autos.

De todo o analisado, chega-se à conclusão que os jurados devem julgar a causa que lhes for submetida com respeito à inviolabilidade do direito à vida, à igualdade dos cidadãos perante a lei – consagrados constitucionalmente -, com imparcialidade, de acordo com suas consciências e os ditames da justiça, além de não poder ser essa decisão manifestamente contrária à prova dos autos.

Desse modo, entendo não poderem os jurados julgar movidos por sentimentos de piedade, indulgência ou clemência. Se assim o fizerem, estarão, incontestavelmente, desrespeitando o direito à vida e à igualdade dos cidadãos perante a lei, bem como serão parciais, injustos e desrespeitarão, de forma manifesta, as provas constantes do processo.

Em resumo: por soberania dos veredictos não se compreende poder absoluto, desmedido, sem regras ou parâmetros.

Destaco, aqui, a observação do jusfilósofo Santo Tomás de Aquino: "...a lei da natureza estatui que quem peque seja punido".

É de Platão o seguinte ensinamento: "O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas julgar segundo as leis".

Realizada a análise do que significa soberania dos veredictos, conclui-se que os jurados não podem responder afirmativamente ao quesito absolutório tendo, anteriormente, afirmado a autoria, sendo a negativa dessa a única tese absolutória sustentada pela defesa, técnica e pessoal. Se assim agirem, respondendo afirmativamente a esses dois quesitos, haverá contradição nas respostas entre eles, caso em que o Juiz Presidente deverá, a teor do disposto no artigo 490 do Código de Processo Penal, submeter novamente à votação ambos os quesitos.

A fim de evitar essa contradição, em caráter preventivo, portanto, o Juiz Presidente deverá dar por prejudicada a votação do quesito absolutório, com fundamento no § único do próprio artigo 490.

Não adotando o Presidente do Conselho de Sentença nenhuma dessas medidas, previstas no artigo 490 e § único da lei que organiza o Júri, ocorrerá a nulidade prevista no artigo 564, § único, do diploma processual penal referido, nulidade essa que é absoluta, conforme o entendimento de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho (cf. As Nulidades no Processo Penal, 7ª edição, 2001, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, págs. 271 e 274), bem como de Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (cf. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal a da Lei de Trânsito, 2008, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, pág. 230).

*Manoel Torralbo Gimenez Júnior é promotor de Justiça do Tribunal do Júri de São Vicente / SP e pós-graduado em Criminologia pela PUC Minas