A CONAMP publicou nesta quarta-feira (11) uma petição pública em que solicita aos parlamentares a manutenção dos vetos parciais feitos pelo presidente da República ao PL 7596/2017, que define crimes de abuso de autoridade.
No documento, a entidade elenca uma série de argumentos que justificam a necessidade dos vetos em favor da independência e a atuação funcional de Procuradores e Promotores de Justiça.
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Confira a íntegra:
Senhor (a) Parlamentar!
A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO – CONAMP, entidade de classe representativa de mais de 15.000 Membros dos Ministérios Públicos dos Estados, Distrito Federal e Militar, vem perante Vossa Excelência se manifestar de forma fundamentada e calcada no interesse público, para ao final requerer a manutenção de veto parcial feito por sua Excelência o Senhor Presidente da República ao PL 7596/2017.
1. Da análise realizada no conteúdo do PL n. 7596/2017 - Abuso de Autoridade, aprovado na Câmara dos Deputados no dia 14 de agosto de 2019, foi apresentado por esta entidade ao Presidente da República pedido de veto dos artigos 27, 30, 31, 38 e 43, sendo acatado, na ocasião, somente o pleito quanto aos artigos 30, 38 e 43.
2. Ocorre que, acaso não mantidos os vetos desses artigos (arts.30, 38 e 43), prevalecerá o uso abusivo de termos e conceitos imprecisos/indefinidos/subjetivos que, além de gerar insegurança jurídica, enfraquecerá a atuação das instituições responsáveis pelo combate à criminalidade e à violência. Entre as expressões que nos permitem afirmar a existência de tipos penais abertos, com referência aos dispositivos nominados e vetados, exemplificativamente, citamos o artigo 30 (sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente).
3. Portanto, conceituar o abuso de autoridade (e qualquer tipo penal incriminador) de forma vaga, imprecisa e recheada de subjetividades, conforme as expressões enumeradas acima de forma individualizada, artigo por artigo, importa em insegurança jurídica à atuação do agente público, expondo seu trabalho a interpretações
pessoais que podem gerar a sujeição a situações de retaliação a atuações legítimas de
juízes, promotores, procuradores e policiais.
4. Ao contrário do pretendido e noticiado na justificativa apresentada pelo Relator da matéria na CCJ, a aprovação do PL pode enfraquecer, e muito, o combate à corrupção e a todas as ilegalidades objeto da atuação do Ministério Público, do Poder Judiciário e das demais instituições do sistema de segurança pública.
5. Vejamos a seguir, os tipos penais criados pelo PL 7.596/2017 e vetados pelo Presidente da República, suas impropriedades e as consequências negativas dele advindas à segurança pública e ao combate à criminalidade.
Art.30 - Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa
6. A redação do art. 30, busca criminalizar uma prerrogativa inerente ao exercício funcional do Ministério Público. Sabemos que a Constituição preceitua de maneira expressa, como princípio institucional do Parquet, a sua independência funcional (art. 127, § 1º, da CF/88) e o exercício privativo da ação penal pública (art. 129, I, da CF/88).
7. As prerrogativas do Ministério Público, por vontade soberana dos constituintes, foram alçadas a preceitos constitucionais, não cabendo a qualquer lei infraconstitucional aboli-las ou restringi-las. A independência e a autonomia funcional existem justamente para que os membros da instituição trabalhem de forma imparcial e produtiva, indenes de medos ou outros tipos de pressões, sendo essa uma das garantias do Estado Democrático de Direito.
8. Cabe salientar que esse tipo penal, em sua maior parte, é abstrato e genérico, configurando um verdadeiro tipo penal aberto, sujeitando-se a interpretações convenientes a determinados momentos e pessoas, o que vem a macular o princípio da legalidade e também a exigência de taxatividade da norma incriminadora.
9. Ademais, a denúncia é peça obrigatória quando presentes indícios suficientes de autoria e materialidade, não existindo qualquer obrigação de resultado, na medida em que seu oferecimento apenas inicia um processo criminal. Manter esse artigo é querer que no curso de um procedimento persecutório o agente já tenha certeza do resultado.
10. Não se pode aceitar que seja definida como crime a oferta de denúncia ou ação civil se não for recebida pelo Judiciário, sob pena de se estar amordaçando o trabalho do Ministério Público. Se a ação penal fosse de per si uma condenação, o processo seria desnecessário, e a condenação ocorreria diretamente com a investigação. O processo traz a oportunidade de realização de provas e do contraditório, e dele, naturalmente, haverá uma sentença, seja absolutória, seja condenatória, dentro do devido processo legal.
11. Não se pode imputar ao Membro do Ministério Público a prática de crime se, depois de produzidas as provas, houver absolvição. O não recebimento da denúncia e a absolvição significam que uma tese prevaleceu, dentro de uma concepção de dialética comum e necessária a qualquer processo judicial civil ou penal. Não significa que houve dolo ao iniciar uma ação que se saberia improcedente ou que a atuação do
agente público tinha finalidade de causar prejuízo a outrem ou a terceiro.
12. Noutro aspecto, dadas as proporções e trazendo a incidência do artigo citado para, por exemplo, a área médica, seria o mesmo que exigir que todas as vezes que houvesse uma intervenção de um profissional da saúde para cuidados e tratamento de um paciente doente, aquele deve ser responsabilizado se o paciente tratado vir a falecer.
13. As garantias constitucionais do devido processo legal e do duplo grau de jurisdição pressupõem a análise dos fatos trazidos na petição inicial por um julgador e possibilitam a reforma da decisão por Órgão Judicial Colegiado, situações em que teses jurídicas são analisadas. O mero fato do julgador discordar da tese apresentada ou do Tribunal reformar a decisão anterior jamais pode ter como consectário a imputação de abuso de autoridade ao agente do Estado que entendeu diversamente.
Art.38 - Antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa
14. Conforme estabelecido em nossa Lei Maior, a República Federativa do Brasil constitui-se como Estado democrático, e apresenta, dentre seus fundamentos, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político (artigo 1º, caput e incisos II, III e V). A mesma Constituição da República aponta, ainda, como objetivos fundamentais do Estado Brasileiro "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (artigo 3º, I).
15. A Constituição prevê, ainda, ao tratar da ordem social, que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”, e ainda, que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (artigo 220, caput e § 1º).
16. A liberdade de consciência, crença e manifestação de pensamento, a difusão de opiniões e o debate de ideias são, portanto, da essência de um Estado democrático e da nossa ordem constitucional. Não havendo distinção de qualquer natureza entre os cidadãos brasileiros, a todos é assegurada a inviolabilidade do direito à liberdade de consciência e manifestação de pensamento, sendo que a violação a qualquer desses direitos constitui afronta à dignidade da pessoa humana, à sociedade plural que constituímos e à democracia.
17. O exercício de funções públicas impõe aos agentes estatais, dentre outros, os deveres de imparcialidade, moralidade, decoro e zelo pela coisa pública, mas não lhes retira, em qualquer hipótese, a liberdade de cidadãos brasileiros. Mais que isso. É precisamente por exercerem funções públicas que os agentes estatais têm, por vezes, no dever de dar publicidade a seus atos, a obrigação de informar, rendendo ensejo ao
debate democrático salutar à promoção da cidadania e da sociedade "livre, justa e solidária" que almejamos construir.
18. O texto da Convenção Interamericana de Direitos Humanos indica que o abuso de controles oficiais a manifestações de pensamento ou difusão de ideias de qualquer pessoa humana – sendo despiciendo referir que aí estão incluídos todos agentes estatais e, dentre estes, os membros do Ministério Público brasileiro – implica violação aos direitos humanos.
19. Nesse contexto, não há como se negar que o artigo supracitado criminaliza o cumprimento por parte dos membros do Ministério Público do dever de dar publicidade a seus atos, prestar informações à sociedade.
20. Ao membro do Ministério Público deve ser assegurada ampla liberdade de expressão, que se faz necessária ao cumprimento do dever de prestar informações acerca dos serviços públicos por ele prestados, em respeito aos postulados da publicidade, transparência e ao direito à informação, tão caros a uma sociedade democrática.
21. No magistério de Emerson Garcia, “o ofício ministerial deve ser livremente exercido, somente rendendo obediência ao ordenamento jurídico e à
consciência do membro do Ministério Público”. Pondera ainda o autor:
”O princípio da independência funcional está diretamente relacionado ao exercício da atividade finalística dos agentes ministeriais, evitando que fatores exógenos, estranhos ou não à Instituição, influam no desempenho de seu munus. Evitase, assim, que qualquer dos denominados 'Poderes do Estado', ou mesmo os órgãos da Administração Superior do próprio Ministério Público, realizem qualquer tipo de censura ideológica em relação aos atos praticados”1.
22. Portanto, além de impor indevido limite e visar criminalizar o exercício da liberdade de expressão do membro do Ministério Público, o dispositivo em comenta entra em rota de colisão com o preceito garantidor de que as ações do Estado e de seus agentes devem conter a mais ampla publicidade e transparência a fim de se cumprir o direito de toda a sociedade à informação.
Art.43 - A Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, passa a vigorar acrescida do seguinte:
art. 7º-B: “Art. 7º-B. Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II a V do caput do art. 7º2 : Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa
23. De se ressaltar, inicialmente, que, examinando o ordenamento jurídico pátrio, verifica-se que nenhuma profissão, por mais relevante que seja, goza de imunidades semelhantes ou inviolabilidade absoluta do tipo que a regra projetada pretende conferir aos advogados.
24. As ações humanas que eventualmente invistam contra liberdades profissionais não constituem, de per si, condutas criminosas. Embora merecedoras de
reprovação e punição, especialmente na esfera funcional, o mero desatendimento da
lei não é suficiente à caracterização de crime de tamanha gravidade. Deve-se exigir
mais, sob pena de criar uma odiosa espécie de responsabilidade penal objetiva.
25. A adoção de redação generalista é circunstância que, flagrantemente, viola inúmeros princípios constitucionais, em especial o princípio da reserva legal (na forma da taxatividade3), insculpido no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, e que pressupõe a definição precisa de todos os elementos integrativos da conduta incriminada.
26. A taxatividade é decorrência lógica da legalidade e da reserva legal, pois não há crime sem lei que o defina. Consequentemente, as condutas típicas devem ser precisas, pormenorizadas, taxativas, descritas minuciosamente de maneira a evitar qualquer dúvida ao destinatário da norma. A descrição da conduta não pode ser vaga e imprecisa, pena de ambiguidade, que gerará dúvidas na sua aplicação e, também se pode afirmar, benefício àquele que a infringe – dentre as interpretações possíveis do tipo penal vago, o interessado invocará aquela que mais lhe beneficia acrescida da presunção de inocência, o que dificultaria a aplicação da norma. De outro ângulo, a violação da taxatividade, a exemplo daquilo duramente vivenciado na vigência da revogada Lei de Segurança Nacional, abre largo espaço para injustiças e perseguições.
27. Noutro aspecto, as prerrogativas de advogados, assim como outros direitos conferidos aos cidadãos, não são ilimitados e geradores de imunidade absoluta, a exemplo do direito à inviolabilidade do escritório de advocacia e a própria Lei nº 8.906, de 1996, com redação dada pela Lei nº 11.767, de 2008. A limitação desse direito, ocorre quando o advogado seja suspeito da prática de crime, notadamente concebido e consumado no âmbito desse local de trabalho, sob pretexto de exercício da profissão, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (v.g. INQ. 2424, Rel. Min. Cezar Peluso, p., j. 26/11/2008).
28. Nesse prisma, há que se fazer referência também ao princípio da intervenção mínima do direito penal. Referido princípio, acentua que o direito penal deve ser acionado ou usado para tutelar bens jurídicos de maior magnitude e que não possuem tutela eficaz decorrente de outros ramos do direito. Não é esse o caso!
29. Eventuais descumprimentos de direitos ou prerrogativas conferidos constitucional ou infraconstitucionalmente aos advogados – carreira essencial à justiça, possuem, para sua eventual reparação ou cumprimento, instrumentos no âmbito correcional que podem ser manejados.
30. Não prevalecendo o veto presidencial a este artigo, o Congresso Nacional instituirá tipos penais para violação de prerrogativas e de direitos de uma única carreira no país, gerando desarrazoada criminalização e ensejando mitigação da independência e da atuação das instituições responsáveis pelo sistema de justiça criminal.
31. Assinale-se, por fim, que a parte do projeto sancionada já se projeta, a nosso ver de forma excessiva, na atuação funcional dos Membros do Ministério Público. Recusados os vetos, sem dúvidas, restarão severamente prejudicadas a independência e a atuação funcional de seus agentes, o que em nada contribuirá para a construção de uma sociedade livre e justa, como preconizado nos regramentos fundantes de nossa carta magna.
É o que se apresenta para o momento, na certeza de que, no Plenário do Congresso Nacional, por ocasião de Sessão Conjunta das duas casas legislativas, realizada nos termos da Resolução nº 01/1970 (Regimento Comum do Congresso Nacional), Vossa Excelência votará com consciência e no sentido de manter os vetos da Presidência da República aos artigos 30, 38 e 43 da Lei Federal nº 13.869, de 05 de setembro de 2019.
Renovamos a Vossa Excelência protestos de estima e consideração.
Brasília-DF, 10 de setembro de 2019.
Victor Hugo Palmeiro de Azevedo Neto,
Presidente da CONAMP