Entrevista com o presidente da CONAMP, Manoel Murrieta, é a capa da edição 245 da revista Justiça e Cidadania, publicado no mês de janeiro de 2021. Em foco está o aniversário de 50 anos da entidade.
Confira:
A Conamp nasceu no final da década de 1960, durante a ditadura militar, logo após o governo Castelo Branco enviar ao Congresso Nacional o projeto que viria a resultar na Constituição de 1967. A proposta inicial era centralizar o Ministério Público tendo como padrão o Ministério Público Federal, no qual os procuradores da República eram, ao mesmo tempo, membros do MP e advogados da União. Um modelo considerado prejudicial pelos promotores de então, que não concordavam em ter que representar o governo e, ao mesmo tempo, defender interesses sociais que poderiam entrar em conflito com planos governamentais.
Para garantir que o Ministério Público se dedicasse exclusivamente à defesa da sociedade, bem como para manter os direitos e prerrogativas que lhes eram assegurados pela legislação então vigente, os membros do MP perceberam a necessidade de criar uma entidade de classe de representação nacional. Nesse sentido, lançaram em dezembro de 1970, em Teresópolis (RJ), a “Carta de Princípios” que deu origem à Confederação das Associações Estaduais do Ministério Público (Caemp), que viria a ser oficialmente fundada em maio de 1971, em Ouro Preto (MG). Em 1978, com a adesão dos ramos do Ministério Público da União, o nome mudou para Confederação Nacional do Ministério Público, mantendo-se a sigla Caemp até dezembro de 1992, quando foi modificada para Conamp. Em 2000, quando alterou sua natureza jurídica em busca de legitimidade para propor ações diretas de inconstitucionalidade, passou a se chamar Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, mantendo porém a sigla Conamp, cujo uso já estava consagrado.
Para falar sobre a trajetória da entidade, que acaba de comemorar 50 anos, e comentar novos e antigos desafios do Ministério Público para a entrega de um serviço cada vez melhor à sociedade, o presidente da Conamp, Promotor de Justiça Manoel Victor Sereni Murrieta e Tavares, concedeu essa entrevista à Revista Justiça & Cidadania. (RJC)
Revista Justiça & Cidadania – A Conamp chegou aos 50 anos em dezembro passado. O que há a comemorar?
Manoel Murrieta – Nesses 50 anos temos a alegria de poder afirmar que toda a formatação surgiu do movimento classista do Ministério Público, porque desde Teresópolis, onde foi assinada a primeira Carta de Princípios da Conamp, era vista a necessidade de criar uma uniformidade entre os ministérios públicos do Brasil como um todo. Cinquenta anos após, principalmente após a Constituição de 1988, podemos afirmar que nós conseguimos ser responsáveis pela criação de um perfil institucional muito vigoroso e importante para o País.
RJC – O senhor está próximo de completar um ano na presidência. Qual é o balanço que faz da atuação da Conamp nesse período?
MM – Uma curiosidade é que iniciei minha gestão no dia 13 de março e no dia 14 começou o fechamento das instituições, do atendimento presencial. Passamos daquele mundo em que estávamos acostumados, com reuniões físicas, para um mundo virtual. Isso foi um grande desafio para a sociedade como um todo e também para o movimento classista. Naquele momento, desde o início, tivemos várias ameaças às prerrogativas e às ferramentas para a atuação dos membros do Ministério Público brasileiro. Posso citar situações que vêm ameaçando nossas prerrogativas constitucionais, como a irredutibilidade de vencimentos e a vitaliciedade. Nesse ano, conseguimos evitar prejuízos significativos à independência da Instituição e dos membros do Ministério Público brasileiro.
RJC – O senhor consegue localizar de onde partem essas ameaças e o que precisa ser feito para garantir a autonomia do Ministério Público?
MM – Diversos processos legislativos ameaçavam e ainda ameaçam a independência funcional, retiram a autonomia financeira e criam embaraços e muros para nossa livre atuação em busca do esclarecimento dos fatos e obtenção das informações necessárias para cumprirmos nossa missão. Posso citar vários exemplos, como o “pacote anticrime”, que tinha propostas de boas soluções para o Ministério Público e o Judiciário, mas que pelo meio da tramitação trouxe riscos, tanto é que fomos obrigados a ingressar com uma ação direta de inconstitucionalidade pedindo a suspensão de alguns artigos que a lei previa. Vamos adiante, com a PEC emergencial, o Plano Monsueto e várias situações que vêm tirar a autonomia e a independência plena do MP, algo fundamental para nossa atuação diante das obrigações e missões que a Constituição de 1988 nos traz.
RJC – O modelo constitucional do Ministério Público no Brasil criado em 1988 ainda carece de algum aperfeiçoamento?
MM – O modelo constitucional eu diria que não, mas o detalhamento infraconstitucional, logicamente, pode avançar e ser melhorado. O importante é que tenhamos uma perspectiva de que essas revisões e reformas têm que ter um objetivo, que é a melhoria da prestação do serviço e da qualidade do serviço entregue à sociedade, e não criar embaraços, burocratizar ou trazer dificuldades para que se obtenha um efetivo resultado das ações do Ministério Público.
RJC – Alguns críticos dizem que o Ministério Público ganhou muito poder com a Constituição de 1988 e que, em função disso, teria cometido alguns exageros. O senhor concorda? Acha que o MP soube usar de forma ponderada esse poder?
MM – Sinceramente não concordo com essa afirmação de que nós recebemos poderes exagerados. Posso reconhecer que podemos ter errado aqui e ali de maneira isolada, mas se você for buscar no todo do efetivo trabalho que o Ministério Público realizou pós-1988 até os dias atuais, o saldo com certeza é extremamente positivo em favor da sociedade e das mudanças que o Ministério Público propôs ao País e à República. Houve equívocos? Houve, mas eles são muito pequenos diante das conquistas e dos avanços que trouxemos para a sociedade brasileira.
RJC – Os recentes impasses entre a Procuradoria-Geral da República e a força-tarefa da operação Lava Jato revelam falta de unidade no corpo do Ministério Público Federal?
MM – O Ministério Público tem no Brasil uma formatação única, singular, peculiar. Somos responsáveis pela defesa do sistema democrático e somos a instituição que internamente tem o maior embate democrático. Gostaria de afirmar com toda clareza que essas divergências ou pontos contrastantes, enfim, entendimentos diferentes, internamente, são a força motriz do Ministério Público. Aí reside toda a vitalidade democrática do Ministério Público. É daí que nós buscamos nossa síntese, para ter essa vitalidade de atuação. É um processo duro, difícil, tudo o que é novo pode trazer alguma dificuldade, mas vejo isso de maneira muito tranquila, do ponto de vista do aperfeiçoamento da Instituição. A síntese dessas forças internas certamente vai nos levar a um momento melhor. Quero destacar isso, sem esquecer que a Lava Jato é um marco de grande importância para a sociedade brasileira. Não há aquele que possa afirmar que o Brasil pós-Lava Jato é igual há algum tempo atrás.
RJC – O senhor acredita que o Ministério Público tem atuado com o rigor necessário para, internamente, melhorar o seu sistema de cobrança de responsabilidades? O que poderia ser feito para aprimorar o trabalho das corregedorias e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)?
MM – Existe uma repetição equivocada de que o CNMP não tem exercido o seu papel, tanto orientador, que é muito importante para nós, quanto de correção disciplinar. O CNMP e a Corregedoria Nacional do Ministério Público têm dados que comprovam que os membros do Ministério Público têm recebido sim as sanções por equívocos ou quando se desviam em algum momento da forma correta de atuação. Tenho total segurança para afirmar que o Conselho Nacional do Ministério Público tem cumprido o seu papel de orientar, de uniformizar e de punir os excessos que estamos verificando. Agora, há sim a sensação de que existe um papel muito importante da corregedoria, mas que, ao nosso ver, esse é mais um papel orientador e uniformizador, para que se possa exigir do membro, ao haver uma regra anterior, que ele não transgrida. É muito difícil você exigir de alguém que não se equivoque em determinada situação quando ela não está bem disciplinada, não é clara ou não está bem definida. Mas posso dizer que o papel punitivo e disciplinar das corregedorias tem sido exercido e sou testemunha disso, porque a defesa cabe a nós enquanto entidade de classe.
RJC – O senhor acha que essa percepção equivocada se deve, em alguma medida, à cobertura da imprensa sobre as atividades do Ministério Público? Como é que o senhor avalia essa cobertura?
MM – A imprensa é vital para o Ministério Público, em todos os aspectos. Primeiro, para que tenhamos êxito em nossas atuações. Segundo, para que possamos cumprir o papel que o constituinte nos deu, de garantir o direito à informação. E terceiro, para denunciar esses eventuais excessos, para que nossa instituição possa corrigi-los. Então, vejo com muita tranquilidade o papel da imprensa nesse cenário junto ao MP. É uma aliada que não pode ser colocada de lado, muito pelo contrário, ela é fundamental para a vitalidade da nossa instituição.
RJC – Na sua opinião, os membros do Ministério Público têm o direito de se expressar livremente pelas redes sociais, inclusive a respeito das suas posições políticas individuais?
MM – A entidade de classe não trabalha a ideia de qualquer hipótese de censura. Não aceitamos censura prévia, nem para a imprensa, muito menos para outras instituições ou para nós. O que nós achamos é que o membro do Ministério Público não pode realmente se exceder no uso da linguagem, como qualquer cidadão não pode. Não pode injuriar, não pode ofender, mas essa correção tem que ser após o fato ocorrido, não uma censura prévia. Como posso conceber uma cidadania plena de qualquer pessoa sem ela poder ter a possibilidade de se expressar livremente? Esse é um legado da Constituição, um direito básico da cidadania, um direito fundamental. Não é possível entender que um membro do Ministério Público tenha uma cidadania limitada, por isso nós defendemos a liberdade de expressão.
RJC – O senhor acredita que a introdução no ordenamento jurídico de institutos que deem maior margem de poder aos membros do MP, a exemplo da plea bargaining, poderia causar algum incômodo aos membros do Poder Judiciário? Acha que os juízes teriam dificuldades para abrir mão do controle jurisdicional que hoje têm, por exemplo, sobre as provas utilizadas para embasar acordos ou os critérios para fixação de penas?
MM – O plea bargaining é uma experiência não criada no Brasil, mas sim uma experiência de outros países do mundo que tem se mostrado eficientíssima do ponto de vista de desafogar o Judiciário. Por isso, não creio que a magistratura tenha algum incômodo com esse instituto, pelo contrário, creio que os juízes, na formatação que foi proposta no Brasil, eles teriam um papel fundamental de fiscalização e contrapeso do plea bargaining, diferentemente de outros países, porque em nosso modelo não seria o plea bargaining puro. Isso traz várias vantagens, tanto para o acusado, quanto para a celeridade, para a reparação do dano social e, principalmente, não se trata de um empoderamento de uma instituição, se trata de entregar à sociedade a política criminal mais efetiva.
RJC – Embora o MP tenha corajosamente liderado as maiores ações e medidas de combate à corrupção, ao crime organizado e pela moralização da sociedade brasileira, seu poder de paralisar qualquer obra pública ou privada, questionar leis, decretos e normas de toda espécie é apontado como excessivo por alguns juristas. O que o senhor poderia comentar a respeito?
MM – O tema do ativismo judicial está em voga no momento. Há uma grande preocupação com a substituição de tarefas e atribuições legais entre as instituições. É importante ser dito que o Ministério Público não quer substituir nenhuma instituição, usurpar nenhuma competência ou atribuição. Temos sim condições de dizer se um modelo apresentado de política pública não está correto, não é o melhor, mas não podemos dizer qual é o que deve ser implementado. Nosso papel de fiscalização, na verdade, é fazer o contraponto àquilo que está apresentado. O que não pode ser encarado como ativismo judicial, quando se está cumprindo a missão constitucional de melhor garantir os direitos que estão ali inseridos desde 1988.
RJC – Voltando à questão do modelo constitucional, em outros países como, por exemplo, nos Estados Unidos, há promotores que são eleitos pelo voto popular e há aqueles que são escolhidos pelos governantes. Em ambos os casos, há forte conexão política, que leva os membros do MP a se conectarem de forma mais direta com as demandas populares. Eles acabam sendo mais majoritários do que contramajoritários, na medida em que podem ser destituídos ou não reeleitos. O senhor acha que esse modelo poderia ser adotado no Brasil?
MM – Sinceramente, não. Cada sociedade, cada forma de governo, cada república, cada modelo constitucional tem um compromisso com sua história e sua origem, para ser forjada da melhor maneira, diante da realidade que aquela nação ou país enfrenta. No início da minha fala disse que o Ministério Público brasileiro, a partir de 1988, teve uma formatação totalmente diferente de outros modelos pelo mundo. Nós temos dado exemplos e indicadores que demonstram que nosso modelo é muito mais moderno, seguro e avançado para a atuação pelas conquistas civilizatórias, em defesa da democracia, enfim, várias bandeiras que são importantes para a República, para o Brasil especificamente. Esse formato do MP americano atende à realidade, tradição e história democrática que lá existe. Em nosso caso, nossa história não nos autoriza a ter uma Instituição sem as garantias que o legislador lhe deu, que são a inamovibilidade, a independência funcional e a irredutibilidade como cláusulas pétreas. São ferramentas fundamentais para enfrentarmos problemas que são próprios do Brasil.
RJC – Hoje o Poder Judiciário já percebe um aumento, que era previsível, do número de demandas judiciais em função da pandemia de covid-19. O MP pretende adotar alguma medida ou postura para ajudar o Sistema de Justiça a atender a justa expectativa pela duração razoável dos processos?
MM – Desde que se deu conta das dificuldades da pandemia, o Ministério Público reformulou várias das suas atividades. Tivemos um incremento das nossas atividades judiciais, nossa produtividade e eficiência aumentaram em números vertiginosos. Saímos da nossa atuação ordinária nos fóruns judiciais e passamos a ter uma atuação de assistência judiciária, inclusive de reencaminhamento de investimentos e verbas públicas para atender as demandas que a covid-19 trouxe à sociedade, prioritariamente no sistema de Saúde. Mas, principalmente, o Ministério Público conseguiu ter uma lição de como, em um sistema híbrido de atuação, dar um atendimento mais eficaz à sociedade.
RJC – Certamente, a Instituição Ministério Público teve que aprender a lidar com esse novo cenário, hoje mais digital do que antes. O que fica desse aprendizado para o futuro?
MM – O Ministério Público teve que se reinventar na sua forma de atuação e as entidades de classe também. O Ministério Público saiu de um patamar de atuação judicial e extrajudicial e passou a atuar também na parte de assistência, dentro das diversas campanhas e das diversas realizações que as entidades de classe e as próprias entidades fizeram em razão da pandemia. Esse desafio nos trouxe também aprendizados, porque aumentou nossa produtividade forense. Pudemos verificar que apesar da dificuldade e de todo o sofrimento, a crise trouxe ensinamentos de como melhorar a agilidade, de como atuar em outros setores, e, principalmente, como atender melhor ainda e cada vez mais o cidadão. O meio virtual é uma ferramenta que veio para ficar, se estabeleceu e mostrou estratégias positivas para o atendimento de toda a sociedade.
RJC – Hoje no Judiciário foram incorporadas várias novas tecnologias, como o plenário virtual, as sessões por videoconferência e algumas ferramentas de inteligência artificial. O MP também teve que se adaptar e está usando recursos semelhantes. O senhor vê riscos ao devido processo legal ou às garantias fundamentais dos cidadãos nesses procedimentos eletrônicos?
MM – A informática é uma aliada. Não vejo nenhuma dificuldade e nenhuma resistência plausível a esses novos modelos trazidos para a nossa realidade. O que precisamos ter são garantias mínimas de que essas ferramentas não desrespeitarão garantias e direitos individuais. É importantíssimo termos isso em vista. As videoconferências, as audiências virtuais, hoje já discutimos no CNMP a figura do MP online, que seria uma atuação totalmente virtual, mas isso não pode enfraquecer algumas garantias da cidadania que são básicas. Posso dar vários exemplos. As sessões de um tribunal do júri por videoconferência negam algumas possibilidades que são importantes para garantir a realização de um sentimento de justiça naquelas questões. Não há condições de fiscalizar, por exemplo, a incomunicabilidade dos jurados ou ter as balizas mínimas necessárias para um processo seguro. Agora, onde não houver essas ameaças, temos que avançar com toda a tranquilidade, porque essas ferramentas só vêm para dar mais eficiência, principalmente, à entrega do serviço de nossa Instituição à sociedade.
RJC – Algum recado aos membros do MP, leitores da Revista, em todo o Brasil?
MM – Nossa instituição foi forjada por lutas, conquistas e desafios. (…) Os desafios são constantes, mas isso faz parte do nosso processo de amadurecimento e de busca de um modelo que sempre esteja atualizado e que, principalmente, possa corresponder aos anseios da sociedade. Nossa mensagem final é que nosso processo de construção não parou, mas é um processo verdadeiro e muito satisfatório para a sociedade brasileira.