Entrevista originalmente publicada na coluna Fausto Macedo do Estadão no dia 08 de março de 2022. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/manoel-murrieta-novo-mandato-presidente-conamp-independencia-promotores-procuradores/
Reeleito presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público para o biênio 2022-2024, promotor de Justiça acompanha debates em curso no Congresso e teme que PL do Novo Código de Processo Penal aumente impunidade
Por Rayssa Motta Rayssa Motta
O promotor de Justiça Manoel Murrieta assume nesta terça-feira, 8, o segundo mandato como presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) com a bandeira de proteção da independência da classe.
Aos 50 anos, ele tem a missão de comandar por mais mais um biênio a maior entidade de membros do Ministério Público, com 16 mil associados, em meio ao que avalia como um momento de enfraquecimento do sistema de justiça criminal.
“Queremos manter o nosso status constitucional para atuar em defesa da sociedade e trabalhar em defesa da democracia e do Estado democrático de direito”, afirma.
Além das questões de classe, a gestão acompanha com atenção os debates em curso no Congresso Nacional. É nas mãos de deputados e senadores que se concentram hoje os temas mais caros aos promotores e procuradores no combate ao crime. Um deles é o Projeto de Lei (PL) para reformar o Código de Processo Penal (CPP).
“Há um grande risco que o CPP se torne um instrumento de impunidade”, alerta Murrieta.
Reeleito para o cargo em ano eleitoral, o presidente da Conamp promete sentar à mesa com todos os nomes na corrida ao Planalto, assim que as candidaturas forem oficializadas, para transmitir as demandas da classe.
“Independente de siglas partidárias. Levaremos a nossa voz para um debate técnico sobre assuntos importantes para o País e para o sistema de Justiça, para a independência dos membros do Ministério Público, para a pauta de defesa do patrimônio público e de combate à criminalidade grave”, adianta.
É ao cenário político polarizado que Murrieta atribui as investidas contra o procurador-geral da República, Augusto Aras, que chegou a ser alvo de um pedido de investigação por prevaricação capitaneado pela cúpula da CPI da Covid.
“É preciso separar o debate democrático de ataques à independência funcional do PGR e de qualquer membro do MP e da magistratura”, afirma. “O procurador-geral da República vive um momento de exposição a um cenário em que o debate público
está muito mais contaminado e suscetível a esses radicalismos do que em períodos anteriores. Talvez nenhum outro PGR tenha se deparado com uma situação tão crítica quanto a atual.”
Perfil
Membro do Ministério Público do Pará desde 1995, Manoel Murrieta se especializou em políticas públicas e direito ambiental. É hoje promotor de Justiça do Tribunal do Júri em Belém e professor de processo penal na Escola Superior Madre Celeste (Esmac).
Nascido no mesmo dia em que a Conamp foi fundada (25 de agosto de 1971), Murrieta participa do movimento classista há nove anos. Foi duas vezes presidente da Associação do Ministério Público do Estado do Pará (Ampep). Na Conamp, foi uma vez vice-presidente e, agora, chega a seu segundo mandato no comando da entidade.
Leia a entrevista completa:
ESTADÃO: A despeito da campanha feita pelo Ministério Público, a Lei de Improbidade foi flexibilizada. O Supremo Tribunal Federal se prepara agora para analisar se as mudanças terão efeito retroativo. A Conamp vai se engajar no julgamento?
Manoel Murrieta: A Conamp está engajada neste processo de revisão da Lei de Improbidade desde o início. Foi formada uma comissão de juristas, coordenada pelo ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça, que elaborou um texto muito bom para atualizar a lei. Com a tramitação do texto, no entanto, o trabalho da comissão foi descaracterizado. O tema deverá ser analisado pelo STF e a Conamp já pediu habilitação como amicus curiae. Nós vamos nos engajar nesse caso e levar toda a voz e a preocupação da Conamp para fazer a correta defesa do patrimônio público, que se vê ameaçado com o novo texto.
ESTADÃO: A associação viu como uma vitória a extinção da comissão de juristas que elaborava o anteprojeto de reforma da Lei da Lavagem? Há preocupação que o assunto seja retomado?
Manoel Murrieta: Há uma preocupação grande com o texto que estava sendo proposto pela comissão de juristas. Haviam várias inconsistências e incongruências que, em vez de aperfeiçoar e trazer mais eficiência para os órgãos de controle na questão da lavagem de dinheiro, estavam flexibilizando e trazendo mais oportunidades em favor daqueles que procuram burlar a lei. Então, é visto, sim, com bons olhos a extinção da comissão porque não vemos necessária essa atualização do texto legal. O texto é atual, é válido, é eficiente e não há uma justificativa que fundamente essa mudança.
ESTADÃO: A Conamp chegou a se insurgir contra o chamado inquérito das fake news, sob o argumento de que houve violação das prerrogativas do Ministério Público no sistema acusatório. Uma análise semelhante é feita agora em relação ao projeto de lei do Novo CPP. Na avaliação do Sr., está em curso um processo de enfraquecimento do sistema de Justiça? Quais os principais pontos de preocupação no PL?
Manoel Murrieta: Na nossa avaliação, há sim um movimento muito claro de enfraquecimento do sistema de justiça criminal como um todo. E esse novo anteprojeto do Código de Processo Penal trazia institutos e instrumentos que há muito já eram superados. Ele limitava o nosso poder investigatório, criava vários embaraços para o combate ao crime, trazia instrumentos que, na verdade, trariam ainda mais impunidade e morosidade. Então, a preocupação com o PL 8045 não é de hoje. Ela está presente desde o início, até porque esse projeto vem sendo descaracterizado a cada momento em que se retoma o debate. Hoje, nós temos um
grupo de trabalho na Câmara discutindo novamente tudo que já foi discutido e temos indicativos claros de que, na verdade, não estamos partindo para uma modernização sob o aspecto da garantia da pessoa humana. Há um grande risco que o CPP se torne um instrumento de impunidade.
ESTADÃO: A Comissão de Proposição Legislativa da entidade elaborou a minuta de um PL para reconhecer o trabalho do membro do Ministério Público como atividade de risco. Qual o status da proposta? Houve retorno da PGR?
Manoel Murrieta: Esse é um tema que salta aos olhos de qualquer pessoa. Vários colegas pelo Brasil sofrem constantemente ameaças à vida e estão sob escolta policial. Como combater o crime organizado, a criminalidade grave sem considerar que exercemos uma atividade de risco? É uma lacuna do nosso sistema legal. O CNMP já reconheceu nossa atividade de risco, mas existe um projeto de lei para resolver definitivamente a situação para os membros do Ministério Público e do Judiciário. Essa proposta já foi encaminhada ao procurador-geral da República, que é quem tem a iniciativa de lei no caso do MP. Ele recebeu a matéria com muita simpatia, nos retornando que encaminharia para análise na comissão adequada dentro da PGR e levaria ao Congresso o projeto. Mas ainda não temos um calendário definido para o tema.
ESTADÃO: Uma vez que as candidaturas forem oficializadas, a Conamp vai se reunir com os nomes na disputa pela Presidência da República para levar as demandas da classe? Quais serão os principais pontos de atenção da associação em relação aos programas de governo?
Manoel Murrieta: Vamos nos reunir com todos candidatos, independente de siglas partidárias. Levaremos a nossa voz para um debate técnico sobre assuntos importantes para o País e para o sistema de Justiça, para a independência dos membros do Ministério Público, para a pauta de defesa do patrimônio público e de combate à criminalidade grave. Nós queremos levar aos candidatos uma voz que traga a possibilidade de modernização e aperfeiçoamento do sistema, com garantias individuais, mas sobretudo que possamos realmente realizar o nosso trabalho com independência e resultados para a sociedade.
ESTADÃO: No final do ano passado a Conamp pediu à ProcuradoriaGeral da República a adoção das medidas necessárias para a recomposição dos subsídios da classe. A PGR deu alguma sinalização de que vai atender a demanda? Qual a perda estimada nos últimos anos?
Manoel Murrieta: A questão da recomposição dos subsídios dos membros do Ministério Público é uma condição prevista na Constituição Federal. A última recomposição que pudemos verificar foi à época do governo Temer [2016-2018]. Tivemos várias perdas em relação ao aumento da carga tributária sobre os subsídios dos magistrados, dos membros do MP e dos servidores públicos das carreiras de Estado em geral. Essa pauta foi levada, no fim do ano passado, ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Ele nos colocou que aguarda uma sinalização do STF para poder encaminhar ao Congresso esse pleito.
ESTADÃO: A Conamp obteve recentemente uma vitória importante junto ao Supremo Tribunal Federal: o ministro Dias Toffoli atendeu a um pedido da associação e proibiu que promotores e procuradores sejam enquadrados no crime de prevaricação por atos praticados no exercício da função. Qual a expectativa para a análise do tema no plenário do STF?
Manoel Murrieta: A decisão do ministro Tofolli foi festejada porque afasta de vez qualquer possibilidade de criminalização da hermenêutica. Nós estamos vivendo em um país democrático quando se fala em liberdade de expressão, mas com constantes ameaças sobre a formação do convencimento do juiz e do promotor de Justiça. Isso é um retrocesso do ponto de vista da independência funcional. A decisão do ministro Toffoli, portanto, é um marco para garantir que os membros da magistratura e do Ministério Público são independentes e devem atuar de modo independente em sua formação de convicção. Temos a expectativa de que o STF venha a consolidar essa decisão de vital importância para a estrutura do Estado
Democrático de Direito.
ESTADÃO: A decisão liminar do ministro Dias Toffoli veio em um momento de pressão contra o procurador-geral da República, Augusto Aras, pela conduta em relação ao presidente Jair Bolsonaro. Como a Conamp avalia as investidas contra o PGR?
Manoel Murrieta: Nós ingressamos com a ADPF no Supremo Tribunal Federal em um momento bem anterior e o procedimento foi sendo instruído, segundo o rito legal. E só agora chegou ao gabinete do ministro Tofolli para que ele pudesse avaliar a medida cautelar. Então, essa decisão vem agora, mas ela não é ligada especificamente a ao momento atual. Temos várias discussões, desde quando surgiu a proposta de Lei de Abuso de Autoridade, sobre a possibilidade de criminalizar o convencimento do promotor. A Conamp avalia que o debate é saudável. Mas é preciso separar o debate democrático de ataques à independência funcional do PGR e de qualquer membro do MP e da magistratura.
ESTADÃO: As críticas dirigidas a Aras por um suposto alinhamento ao presidente, como inclusive vem apontando a ONG Transparência Internacional, voltaram a ser levantadas depois que ele contrariou a Polícia Federal e pediu o arquivamento do inquérito sobre o vazamento de informações do ataque hacker aos sistemas do Tribunal Superior Eleitoral. Qual a avaliação da entidade sobre a atuação do procuradorgeral da República?
Manoel Murrieta: O atual procurador-geral da República assumiu a chefia da instituição em um período político muito polarizado, inclusive em relação aos atos da própria PGR. Existe certo radicalismo exacerbado em alguns discursos por parte de quem pretende manifestar e defender suas convicções. Quando o procuradorgeral toma uma decisão, então, o que se segue inclui também manifestações radicais. O procurador-geral da República vive um momento de exposição a um cenário em que o debate público está muito mais contaminado e suscetível a esses radicalismos do que em períodos anteriores. Talvez nenhum outro PGR tenha se deparado com uma situação tão crítica quanto a atual. Nesse cenário, é preciso batalhar para preservar valores que são pilares do Estado de Direito, como a independência funcional.
ESTADÃO: O Sr. avalia que haveria menos desgaste se o presidente tivesse escolhido um nome dentro da lista tríplice votada pela classe? A Conamp é a favor de tornar a indicação pela lista obrigatória? Se sim, há alguma articulação recente para isso?
Manoel Murrieta: Existe uma proposta de emenda para colocar na Constituição a lista tríplice do Ministério Público da União. Nos Ministérios Públicos dos Estados já existe a lista prevista como obrigatória. Nós defendemos a lista tríplice e defendemos ainda a nomeação do mais votado, porque só assim conseguiremos realmente ter a autonomia necessária e estancar qualquer dúvida sobre a imparcialidade na instituição.
ESTADÃO: Aras ainda não se posicionou sobre as sugestões de indiciamento apresentadas pela CPI da Covid. A comissão parlamentar prestou um trabalho relevante? Há demora na análise do material entregue pelos senadores?
Manoel Murrieta: A comissão prestou um trabalho relevantíssimo à toda sociedade. Agora, temos notícias de que o material levantado é muito extenso, que precisa realmente ser analisado com cautela para que o procurador-geral da República decida pelo melhor caminho: colher novas provas, denunciar ou arquivar.
ESTADÃO: O Ministério Público ganhou um protagonismo diferente na história recente do nosso País. Após a Operação Lava Jato vimos, por exemplo, o procurador Deltan Dallagnol emergir como uma figura na arena política. Por que a Conamp foi contra a ampliação da quarentena imposta a juízes e membros do MP que abandonam as carreiras para disputar eleições?
Manoel Murrieta: A Conamp é favorável à possibilidade de candidatura de membros do Ministério Público e do Judiciário. A cidadania só é exercida plenamente se você puder votar ou ser votado. Não há justificativa para o promotor e o juiz serem limitados no exercício da sua cidadania. Independentemente disso, mesmo após aposentado, o sistema eleitoral brasileiro queria impor uma espécie de punição, de condenação a esses membros. Por que tolher esse direito dos promotores e magistrados?
ESTADÃO: Qual o balanço do Sr. sobre o modelo de combate ao crime inaugurado pela Lava Jato? Há correções a serem feitas? O que deve ser mantido?
Manoel Murrieta: A Operação Lava Jato é, sem dúvida, um marco na história da vida pública brasileira e do combate à corrupção, no Brasil e no mundo. Ela deve ser festejada, porque rompeu com uma forma de estabelecimento do debate público em
relação ao tema de maneira única. Toda operação que inova, é claro, ainda mais com a complexidade que atingiu a Lava Jato, tem pontos que podem e devem ser melhorados e aperfeiçoados. Mas é possível dizer que a Operação Lava Jato é uma
vitória para o povo brasileiro.
ESTADÃO: O Sr. avalia que a substituição das forças-tarefas pelos Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaecos) é positiva?
Manoel Murrieta: Eu posso afirmar, com toda segurança, que os Gaecos nos Estados foram bem sucedidos em todas as atuações que fizeram. A experiência do Gaeco nos Estados merece, sim, ser replicada por todas as unidades do Ministério Público. No Brasil, se falou muito em Operação Lava Jato, mas se você for olhar as operações do Gaeco nos Estados é perceptível o avanço e uma melhoria de atuação em relação a essa pauta do combate à criminalidade grave como um todo. A experiência do Gaeco merece, sim, ser levada para junto da Operação Lava Jato.
ESTADÃO: É possível fazer um balanço do seu primeiro mandato e adiantar o que dá para esperar da gestão daqui em diante?
Manoel Murrieta: Nós vivemos nestes dois anos um desafio muito grande para as entidades classistas com a pandemia. A Conamp tem 50 anos e nunca viveu um momento como este. O nosso primeiro desafio foi: como atuar, como fazer as reivindicações da classe, como sensibilizar com o trabalho remoto, como fazer nossos movimentos sem a possibilidade de aproximação social, com as casas legislativas, os centros do poder fechados? Então, nós desenvolvemos uma nova forma de atuar, usando a tecnologia, que se mostrou bastante eficiente, que já fica como um grande capital dessa diretoria. Há outros pontos muito importantes, como
a vitória que obtivemos com a ADPF que garantiu em definitivo o afastamento do crime de hermenêutica do sistema brasileiro e a ADPF que traz a garantia da independência funcional. Tivemos ainda a rejeição da PEC que queria reformatar o CNMP, outra grande ameaça ao Ministério Público. Conseguimos afastar do Código de Processo Penal outras dificuldades em relação às nossas atribuições e ao combate ao crime organizado. Em relação à nossa Lei de Lavagem de Capitais, ela não avançou graças ao trabalho da Conamp. Além disso, outra pauta que nos orgulha muito: durante esses dois anos, aprendemos a sair da questão judicial e extrajudicial e passamos a atuar na assistência judicial. Nós pudemos estabelecer a forma virtual como uma maneira viável de atuação. Nossa produtividade aumentou em mais de 40%. E para os próximos dois anos, nós queremos reafirmar a nossa
independência funcional e a nossa atividade como de risco. Queremos manter o nosso status constitucional para atuar em defesa da sociedade e trabalhar em defesa da democracia e do Estado democrático de direito.