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A federalização da competência para julgamento dos crimes praticados contra os direitos humanos

Por: Jorge Assaf Maluly

Jorge Assaf Maluly. Promotor de Justiça (MP/SP)

A reforma do Poder Judiciário consagrada na Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004, introduziu no nosso ordenamento jurídico a possibilidade de modificação da competência para julgamento dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos, deslocando-a da Justiça Estadual para a Justiça Federal.

Dessa forma, o artigo 109, inciso V-A, da Constituição Federal, ao tratar da competência da Justiça Federal, passou a dispor o seguinte:

“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

(...) v-A – As causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo

(...) §5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal”.

A expressão direitos humanos decorre diretamente da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, emanada no curso da Revolução Francesa, e também pode ser encontrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, produzida com o término da Segunda Guerra Mundial, bem como em tratados e convenções internacionais e outros documentos políticos.

A nossa Constituição Federal de 1988, já em seu artigo 1º, inciso III, declina que um dos fundamentos da nossa República, constituída em um Estado Democrático de Direito, é a dignidade humana.

A CF emprega, também, a expressão direitos e garantias fundamentais (Título II, artigos 5º a 16), que abrangem os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, a nacionalidade e os direitos políticos. Neste conjunto de direitos podem ser compreendidos os direitos humanos.

A internacionalização das questões relativas aos direitos humanos e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para reprimir as violações a esses direitos, bem como a percepção de que em muitos casos os mecanismos internos existentes para a sua apuração e punição não são eficientes justificaram a modificação constitucional (art. 109, §5º).

A concepção dessa federalização da competência para julgamento dos crimes contra os direitos humanos está inserida em um sistema de cooperação de competências jurisdicionais desencadeada em determinadas situações, quando as instâncias de poder dos entes subnacionais (Estados e Distrito Federal) se revelam insuficientes para cumprir os objetivos inscritos na Constituição Federal e os entes federais são convocados para atuar . A propósito, a possibilidade de intervenção da União nos Estados e Distrito Federal, para assegurar os direitos da pessoa humana, já estava prevista no artigo 34, inciso VII, da CF. Da mesma forma, convém lembrar que a Polícia Federal, antes mesmo da reforma do Poder Judiciário, já podia proceder à investigação das infrações penais relativas à violação a direitos humanos, que o país se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte, fundada no disposto na Lei nº 10.446, de 2002 (art. 1º, inciso III).

Os defensores desta providência modificadora da competência apresentam, em especial, os seguintes argumentos: a) o Estado Brasileiro pode ser responsabilizado perante Cortes Internacionais por violação de direitos humanos e, contudo, não detém a responsabilidade nacional para investigar, processar e punir os autores da violação b) o sistema judicial federal pode dispor de melhores instrumentos para enfrentar a impunidade e a afronta à ordem jurídica, muitas vezes ausentes nos órgãos estaduais de repressão criminal.

Com entendimento diverso, os opositores do deslocamento da competência destacam que esta fere os princípios do juiz e do promotor natural e possibilita a criação de tribunais de exceção, além de lesar o pacto federativo, porque ressuscita o antidemocrático instituto da avocatória. Assim, ocorreria uma intervenção da União nos Estados fora das situações previstas no art. 34 da Constituição Federal, violando-se, portanto, cláusula pétrea, que não pode sofrer uma modificação por meio de emenda .

Importante destacar, em desfavor da modificação da competência, que o texto da Lei nº 10.446/2002 admitiu a realização da investigação pela Polícia Federal de infrações penais que resultem grave violação de direitos humanos. Esta lei assegura a efetividade da apuração policial dos casos previstos em tratados internacionais, sem que se impeça a atuação das polícias estaduais. Desse modo, quando a investigação realizada pela Polícia Civil dos Estados não se mostra satisfatória, a Polícia Federal sempre pode atuar em conjunto ou não para esclarecer o fato criminoso e sua autoria. Nesta hipótese, se não há comprometimento do Ministério Público ou da Justiça Estaduais, torna-se desnecessária a federalização da competência para processar e julgar tais delitos.

Outra crítica importante sobre o incidente de deslocamento da competência é apresentada pelo eminente advogado JOSÉ CARLOS DIAS , que entende que então proposta de emenda constitucional feria o princípio da legalidade, porque não esclarecia o que eram as graves violações aos direitos humanos e como se mediria tal gravidade, pelo impacto social, pelo estrépito na sociedade ou na opinião pública. Disserta sobre o tema o autor:

“É muito perigoso dar ao Procurador ou a quem quer que seja o pode de subtrair do Judiciário a função de julgar. E, mesmo o tribunal, no caso o STJ, incumbido de operar o deslocamento de competência, teria que emitir decisão que não infundisse um juízo valorativo sobre o mérito da causa. E isto porque não se pode, em nome de um direito fundamental que se estima gravemente ofendido, ferir outro também protegido por lei ordinária, Constituição e tratados internacionais, ou seja, o direito de defesa e o da presunção de inocência”.

Releva o destaque feito pelo nobre advogado em relação à falta de um regramento que permita identificar com segurança quais serão as causas deslocadas da Justiça Estadual para a Federal. A atual redação do §5º do art. 109 da CF faz alusão apenas à existência de grave violação de direitos humanos. Fica evidente que será a jurisprudência que irá delimitar as situações e os critérios para a incidência deste dispositivo constitucional.

No mesmo sentido, preleciona TATIANA BICUDO que a então proposta de reforma constitucional não aponta quais são os delitos que devem ser objeto de possível deslocamento de competência e, também, quais são as hipóteses que podem constituir grave violação.

A provocação do incidente pelo Procurador-Geral da República não pode se generalizar, não só porque isto sim ofenderia o pacto federativo e os aludidos princípios constitucionais do juiz e do promotor natural como também porque a própria atuação dos órgãos federais de repressão criminal poderia ficar comprometida pelo crescimento do número de feitos, prejudicando a eficácia das investigações policiais.

Além do que, não se pode empregar como critério do deslocamento da competência apenas a ocorrência da grave violação de direitos humanos. É preciso lembrar as razões que motivaram a reforma constitucional nesse aspecto, isto é, a ineficácia, em muitos casos, das instâncias estaduais para a apuração das infrações penais que violam os direitos humanos, de modo a comprometer o esclarecimento, a repressão criminal desses fatos criminosos. Além disso, o incidente de deslocamento de competência é, de um modo ou outro, intervencionista, provoca fraturas na Federação, recomendando-se, portanto, a sua adoção excepcional.

Com efeito, não é incomum que o fato criminoso cause um estrépito na sociedade, na opinião pública, mas se não há desconfiança das instâncias estaduais de persecução penal, também não há motivo para que ocorra o aludido deslocamento de competência. Mesmo em uma situação em que a polícia civil estadual mostre-se ineficaz, não se deve imediatamente iniciar-se o processo de modificação da competência. Não se pode esquecer, primeiro, que a Polícia Federal sempre poderá intervir no procedimento investigatório e, por último, que o Ministério Público e a Justiça Estaduais podem estar empenhados na solução da infração penal.

É oportuna a lembrança de que o Brasil aceitou a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como aderiu ao Estatuto do Tribunal Internacional Criminal Permanente, para julgamento dos crimes contra a humanidade. Contudo, a responsabilização internacional do nosso Estado Federal somente ocorrerá se este não obtiver sucesso na responsabilização interna dos autores dos delitos cometidos contra os direitos humanos. Como se vê, não é ocorrência destas infrações penais que determina a “censura internacional” do país, mas a falta ou insuficiente repressão a essa espécie de violação.

O texto constitucional empregou um critério autorizador do deslocamento de competência, quando há uma grave violação dos direitos humanos, mas também apontou qual é o objetivo da medida, isto é, a de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte. Portanto, a conveniência da “federalização da jurisdição” deve ser aceita apenas quando o cumprimento dessas obrigações internacionais assumidas pelo país ficar prejudicado.

Alguns critérios poderiam ser empregados para essa avaliação, como, por exemplo, a reiterada violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou com a sua conivência, quando a justiça estadual competente está comprometida ou quando ocorre uma demora injustificada na prestação jurisdicional . Em outras palavras, somente se observadas determinadas circunstâncias se provocaria o incidente em questão, evitando-se, assim, uma violação a princípios constitucionais, igualmente voltados para a proteção dos direitos e garantias do cidadão, como o do juiz e do promotor naturais e o da proibição da criação de tribunais de exceção, pelo uso injustificado e banal do incidente de “federação da competência”.

Assim como se observa na intervenção federal (quando ocorre um conflito entre a posição da União, que atua para garantir os princípios do art. 34, CF, e dos Estados e Distrito Federal, que possuem a autonomia federativa), a análise da viabilidade do deslocamento da competência deve sujeitar-se ao princípio da proporcionalidade, que incide sobre todos os atos dos poderes públicos, vinculando o legislador, a Administração e o Judiciário.

A aplicação desse princípio, como lembra o Min. Gilmar Mendes, “se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Tal como já sustentei em estudo sobre a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (“A Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, in Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, Estudos de Direito Constitucional, 2ª ed., Celso Bastos Editor: IBDC, São Paulo, 1999, p. 72), há de perquirir-se na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto)” .

Dessa forma, somente se justifica a alteração da competência para a Justiça Federal, quando este ato for capaz de produzir o resultado esperado, ou seja, assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, objetivo expresso na Constituição Federal desse instituto.

Deve, igualmente, esse procedimento de federalização ser insubstituível, ou seja, na possibilidade de adoção de outras medidas que possam garantir a repressão às condutas ofensivas aos direitos humanos, não se justifica a sua incidência. Nesse diapasão, novamente destaco a hipótese exemplificativa em que não há um comprometimento do Ministério Público ou da Justiça Estaduais, mas apenas ineficiência ou demora das investigações conduzidas pela Polícia Civil do Estado. Para este caso, o ordenamento jurídico apresenta uma medida alternativa, menos gravosa ao pacto federativo e apta a produzir o mesmo resultado desejado, isto é, o esclarecimento do fato delituoso, que é a possibilidade de intervenção da Polícia Federal na fase investigativa.

Mesmo que houvesse uma demora da Polícia Civil no esclarecimento do fato delituoso, é bom destacar, tal circunstância não bastaria para justificar a federalização, se esta não foi provocada por ato arbitrário ou intencional de embaraço ou impedimento ao procedimento investigatório. E esta falta, frise-se, sempre pode ser suprida pela atuação conjunta da Polícia Federal.

Por fim, o incidente de deslocamento da competência deve atender uma proporcionalidade em sentido estrito, que entendo estar compreendida na existência da grave violação aos direitos humanos, que naturalmente deverá ser identificada, caso a caso, para que não se verifique a generalização dessa medida constitucional.

Concluindo, cumprirá à jurisprudência estabelecer os critérios que justifiquem a provocação do incidente de deslocamento de competência, porque os parâmetros estabelecidos na Constituição Federal são insuficientes e, para evitar a banalização de sua adoção, é imprescindível que se sujeite ao princípio constitucional da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade).


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