Por: Marco Antonio Garcia Baz
Marco Antonio Garcia Baz, Promotor de Justiça (MP/SP)
A Lei 11.464/07 retirou, do artigo 2.º, Inciso II, da Lei 8.072/90, a vedação expressa à liberdade provisória aos crimes hediondos ou equiparados a tais. Isso, contudo, não engendra o cabimento, a partir de agora, da liberdade provisória sem fiança, tal como disciplinada no CPP, artigo 310, parágrafo único, aos flagrados na prática de tráfico ilícito de drogas.
As mesmas razões que outrora levaram a jurisprudência majoritária dos Tribunais a reconhecer v.g. que a Lei n.º 9.455/97 não revogou o artigo 2.º, § 1.º, da Lei dos Crimes Hediondos (em sua antiga redação, que previa cumprimento da pena em regime integral fechado) ao permitir a progressão prisional unicamente para o crime de tortura¹, também se aplicam mutatis mutandis para a conclusão de que a proibição ampla da liberdade provisória relativamente ao crime de tráfico ilícito de entorpecente continua em vigor, com base no artigo 44, cabeça, da Lei n.º 11.343/06.
Deveras, a nova lei não é incompatível com a anterior e dela difere apenas por questão de política criminal, ao não vedar expressamente, agora, espécie de liberdade provisória diferente da fiança a todos os crimes hediondos ou equiparados a tais. No regular exercício de sua competência constitucional (CF – art. 5.º, LXVI) o Legislador Ordinário disciplinou, na novel Lei Antitóxicos, que o tráfico ilícito de drogas, em especial, é crime que, expressamente, não comporta a liberdade provisória em quaisquer de suas espécies, certamente à vista da danosidade social ímpar desse delito no atual momento histórico de nossa sociedade, a exigir a manutenção da medida cautelar extrema para o agente preso em flagrante.
O Colendo Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento de que o artigo 5.º, XLIII, da Constituição Federal, não impõe tratamento unitário aos crimes de que trata a Lei 8.072/90. A respeito, em concordância, vide o julgamento do RE 285.157-4-SP – 1.ª Turma – 17.04.2001 - Relatora Min. ELLEN GRACIE – DJU 1.º.06.2001 (RT 791/548-49).
Outrossim, mesmo com o advento da Lei 11.464/07, para os crimes hediondos e equiparados a tais continua sendo incabível espécie de liberdade provisória menos gravosa que a fiança, tal qual a prevista no CPP – art. 310, parágrafo único, pena de inconstitucionalidade.
Como será visto, da proibição da concessão de fiança para os crimes hediondos (com fulcro em comando constitucional) é que sempre decorreu, logicamente, a proibição dessa espécie de liberdade provisória sensivelmente mais branda, que contempla condição única de comparecimento do beneficiado a todos os atos processuais, pena de revogação do benefício. Com o novel foral, apenas tornou-se possível ao Legislador Ordinário disciplinar, doravante, formas de liberdade provisória mais gravosas que a fiança, que, então, poderão ser aplicadas aos agentes dos delitos aludidos na Lei 8.072/90, sem maltrato à Constituição Federal.
Nesse diapasão, com o advento da Lei 11.464/07, apenas a inafiançabilidade dos crimes hediondos e equiparados a tais remanesceu prevista na Lei 8.072/90, artigo 2.º, II – em consonância, aliás, com mandamento constitucional (CF - art. 5.º, XLIII). A proibição ampla de “liberdade provisória” - pelo gênero do instituto - foi retirada da Lei dos Crimes Hediondos. Posto isso, perguntamos: agora, de lege lata, é possível juridicamente a concessão de liberdade provisória sem fiança ao flagrado por esses crimes, nos termos do artigo 310, parágrafo único, do CPP? Estamos que não.
Para enfrentar essa questão de direito, imprescindível é determinar o conceito do que seja a inafiançabilidade na matéria em testilha.
Como alhures discorremos, “A inafiançabilidade traduz a impossibilidade do acusado livrar-se da prisão durante o curso da instrução criminal mediante os vínculos com o processo definidos nessa espécie de liberdade provisória. A inafiançabilidade que decorre diretamente da Constituição não obsta a concessão de liberdade provisória, desde que os vínculos do acusado com o processo, determinados nessa hipótese, sejam mais gravosos do que o pagamento da fiança. Se a Magna Carta considerou insuscetíveis de fiança determinados crimes, a lei ordinária não poderá permitir hipóteses de liberdade provisória em que os vínculos do acusado sejam menos gravosos do que a própria fiança, pena de contrariar a proibição constitucional, por torná-la inócua.”²
Dessarte, antes dessa inovação legislativa, nenhuma hipótese de liberdade provisória poderia beneficiar os flagrados por crimes hediondos ou equiparados a tais. A proibição pelo gênero do instituto se estendia, por permissivo constitucional (CF – art. 5.º, LXVI) atodas as espécies de liberdade provisória. Agora, não mais. Se a lei criar espécie de liberdade provisória mais gravosa que a fiança, em tese os flagrados por crimes hediondos poderão, de lege ferenda, ser beneficiados por ela, sem vício de inconstitucionalidade.
Diferentemente, espécie de liberdade provisória menos gravosa que a fiança, já estava proibida pela própria inafiançabilidade decorrente de norma constitucional, pena de – repetimos - contrariar-se a própria proibição da Carta Política, por torná-la inócua.
Quanto à restrição de benefícios, foi no atinente – especificamente - à prática de racismo e à ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, que a Magna Carta optou por prever, ela própria, diretamente, hipóteses de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF – art. 5.º, XLII e XLIV, respectivamente). No mais, o Legislador Constituinte preferiu deixar a disciplina da liberdade provisória ao Legislador Ordinário (CF – art. 5.º, LXVI) e, nesse amplo campo, a definição dos crimes considerados hediondos, inclusive (CF – art. 5.º, XLIII – “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”).
Rigorosamente, a Constituição Federal, no artigo 5.º, XLIII, estabeleceu um teor de punitividade mínimo dos ilícitos a que alude, aquém do qual o Legislador Ordinário não poderá descer.
Nesse campo, a conclusão ora preconizada encontra eco na jurisprudência do Colendo Supremo Tribunal Federal, como v.g. anotado no HC 83.468-ES, Relator o Eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, ao tratar do benefício do artigo 310, parágrafo único, do CPP, verbis:
“(...) a proibição da liberdade provisória, nessa hipótese, deriva logicamente do preceito constitucional que impõe a inafiançabilidade das referidas infrações penais: como acentuou, com respaldo na doutrina, o voto vencido, no Tribunal do Espírito Santo, do il. Desemb. Sérgio Teixeira Gama, seria ilógico que, vedada pelo artigo 5.º, XLIII, da Constituição, a liberdade provisória mediante fiança, nos crimes hediondos, fosse ela admissível nos casos legais de liberdade provisória sem fiança (...)” - excerto do V. Acórdão - 1.ª Turma – j. 11.11.2003 – negrito do original.
Ante tais razões entendemos incabível a concessão, ao flagrado regularmente em crime de narcotráfico ou outros crimes tratados na Lei 8.072/90, da liberdade provisória sem fiança nos termos do artigo 310, parágrafo único, do CPP, mesmo após o advento da Lei 11.464/07.
¹. Nesse sentido, a Súmula 698, do Supremo Tribunal Federal, verbis: “Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura.”
². LUIZ OTÁVIO DE OLIVEIRA ROCHA e MARCO ANTÔNIO GARCIA BAZ, “FIANÇA CRIMINAL E LIBERDADE PROVISÓRIA”, EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS – RT - 2.ª edição, página 72.