Por: Karin Sohne Genz e Julio Cesar Finger
A inconstitucionalidade da Lei nº 11.448/2007
Karin Sohne Genz e Julio Cesar Finger, Promotores de Justiça (MP/RS).
Este breve estudo visa apontar a inconstitucionalidade da inclusão da Defensoria Pública como legitimada a propor ação civil pública, em face da modificação introduzida pela Lei nº 11.448/2007 no art. 5º da Lei nº 7.347/85, nos seguintes termos:
“Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
I - o Ministério Público
II - a Defensoria Pública
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista
V - a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. ........” (grifamos)
A Lei nº 11.448, de 15/01/2007, veio a inovar a redação do art. 5º da Lei nº 7.347/85, conferindo à Defensoria Pública legitimidade ativa para o ajuizamento de ações civis públicas.
A legitimidade atribuída pela lei ordinária desborda completamente das atribuições da Defensoria Pública, tal qual estão elas definidas na Constituição da República. Com efeito, a Defensoria Pública é instituição destinada a concretizar a garantia fundamental do acesso à justiça e da ampla defesa (art. 5º, incisos XXXVI e LV) a todos quantos não puderem fazer por recursos próprios, sem prejuízo de sua subsistência. Outra conclusão não se retira dos dispositivos constitucionais pertinentes:
Art. 5º ........
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos
..........
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
Portanto, a importante missão constitucional da Defensoria Pública destina-se a aproximar o cidadão se condições financeiras da prestação jurisdicional e da assistência jurídica.
A ação civil pública, prevista constitucionalmente como “função institucional” do Ministério Público, embora não exclusiva (art. 129, III e parágrafo 1º), destina-se à proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Não é difícil vislumbrar, nesse quadrante, que a categoria “cidadão necessitado”, que constitucionalmente autoriza a legitimidade processual da Defensoria Pública, não se comunica com a categoria “titular de interesses difusos e coletivos”. É possível divisar que um cidadão possa ser ao mesmo tempo “necessitado” e titular de direito coletivo (nunca difuso), mas também não é difícil de verificar que defender um interesse difuso e coletivo na esfera judicial, não permitiria verificar a sua condição de necessitado.
Enquanto os interesses difusos e coletivos são transindividuais, normalmente sem a possibilidade de identificação de seus titulares, um “necessitado” é sempre alguém cuja condição pode e deve ser verificável concretamente.
A Lei Complementar nº 80, de 12/01/94, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios, além de prescrever normas gerais para sua organização nos Estados, define em seu art. 4º as funções institucionais daquela instituição, elencando como tal:
I – promover, extrajudicialmente, a conciliação entre as partes em conflito de interesses
II – patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública
III – patrocinar ação civil
IV – patrocinar defesa em ação penal
V – patrocinar defesa em ação civil e reconvir
VI – atuar como Curador Especial, nos casos previstos em lei
VII – exercer a defesa da criança e do adolescente
VIII - atuar junto a estabelecimentos policiais e penitenciários, visando assegurar às pessoas o exercício dos direitos e garantias individuais
IX – assegurar a seus assistidos, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa
X – atuar junto a Juizados Especiais de Pequenas Causas
XI – patrocinar os interesses e direitos do consumidor lesado.
Observa-se, assim, que a Defensoria Pública é instituição que tem por atribuição, constitucionalmente definida, a defesa dos interesses individuais das pessoas que não podem suportar o pagamento de custas e demais ônus processuais, em nome próprio.
Traçando um paralelo com as atribuições definidas constitucionalmente ao Ministério Público nos arts. 127 e 129, da Carta Magna, é de fácil constatação a total diversidade da natureza dos interesses que são tutelados por uma e por outra instituição, bem como a que título cada uma destas atua no regular exercício de tais atribuições.
Enquanto cabe à Defensoria Pública, única e exclusivamente, promover a defesa dos interesses individuais disponíveis ou indisponíveis em nome do próprio titular do direito, cabe ao Ministério Público a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis na qualidade de substituto processual.
Portanto, fazem-se necessárias algumas digressões quanto ao tema da legitimação ad causam nas ações coletivas, gênero da qual é espécie a ação civil pública. Afinal, o objeto da presente representação vem a ser exatamente o descompasso entre o teor do art. 2º, da Lei nº 11.448/07, e o do art. 134, caput, da Constituição Federal.
A busca de um legitimado que represente em juízo o interesse dos grupos (no pólo ativo ou passivo), de forma adequada, é um dos tópicos mais polêmicos na tutela jurisdicional coletiva, tendo despertado o interesse dos juristas de forma a ensejar vasta produção intelectual sobre o assunto.
Segundo a clássica regra de legitimação expressa, o autor é sempre o próprio titular do direito afirmado, de sorte que quando o titular do direito subjetivo invocado se identifica com o autor, temos a chamada legitimação ordinária. Porém, quando o direito subjetivo é defendido por terceiro, alheio à relação de direito material suscitada, em nome próprio ou alheio, temos a chamada legitimação extraordinária.
A doutrina, ao tentar justificar a legitimação para defesa nas ações coletivas, elaborou três correntes principais, a saber:
a) a legitimação extraordinária por substituição processual
b) a legitimação ordinária das “formações sociais”, decorrente de uma leitura ampla do art. 6º/CPC
c) a legitimação extraordinária autônoma para condução do processo.
A tese de substituição processual em ações coletivas como forma de legitimação extraordinária foi desenvolvida pelo ilustre jurista Barbosa Moreira, que defende que tal legitimação se depreende do todo do sistema jurídico, e independe de expressa autorização legal. Para o autor, o sistema poderia aceitar que a simples menção de legitimado diverso do titular de direito, ou a existência de expressa autorização legal (como por exemplo ocorre no art. 513/CLT), significa a abertura para a legitimação extraordinária.
Segundo FREDIE DIDIER JR. e HERMES ZANETI JR.¹, o sistema jurídico brasileiro adotou a substituição processual exclusiva e autônoma. Esclarecem ditos autores asseverando que nosso sistema “deixou, assim, a titularidade definida em lei: 1) a pessoas indeterminadas, ligadas pelas circunstâncias do fato originário da lesão ou ameaça (direitos difusos, art. 81, § único, I, do CDC) 2) aos grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis pela sua relação jurídica base entre si ou com a parte contrária (direitos coletivos, art. 81, § único, II, do CDC) e, 3) considerou direitos individuais homogêneos, para fins de tratamento especial, molecular e coletivo, aqueles decorrentes de origem comum (art. 81, § único, III, do CDC), que não significa circunstâncias especiais nem temporais, e, sim, o mesmo agente lesivo e o mesmo tipo de lesão, ensejando tutela basicamente igual. Para proteção desses direitos atribuiu a tutela processual a outros agentes que entendeu mais bem ‘aparelhados’ para a ação.” (grifos no original).
Para ALUISIO GONÇALVES DE CASTRO MENDES², “a expressão ‘substituição processual’ tem sido utilizada, com freqüência, na doutrina e na vida forense, como sinônimo para a legitimação extraordinária. A equiparação sofreu, no entanto, a ressalva precisa e pertinente de José Carlos Barbosa Moreira: ‘No rigor da lógica, a denominação parece unicamente adequada aos casos de legitimação extraordinária autônoma exclusiva: só nesses, com efeito, é que a lei na verdade substitui o legitimado ordinário pelo legitimado extraordinário, se por substituir se entende retirar coisa ou pessoa de determinado lugar para aí colocar outra.’ . . . No âmbito dos legitimados previstos no art. 5º, da Lei da Ação Civil Pública, e no art. 82, do Código de Defesa do Consumidor, no entanto, não se pode dizer que os legitimados, entes políticos, Ministério Público, órgãos estatais e associações, estejam defendendo direitos que lhes são próprios. O interesse é ideológico, no sentido da pessoa, jurídica ou formal, estar exercendo um papel de verdadeiro paladino do meio ambiente, dos consumidores, do patrimônio histórico etc., cuja atribuição foi conferida pela lei e, no caso das associações, também pelos respectivos estatutos.”
Fazendo uma analogia com a legitimação do Ministério Público no processo penal, MARIA HILDA MARSIAJ PINTO³ ressalta que a legitimidade conferida à instituição para a propositura da ação civil pública reside no interesse público primário, no órgão como “longa manus da sociedade” e decorre da própria organicidade do Parquet. Assevera, em conclusão, que “pode-se afirmar que a legitimação oficial para mover a ação civil pública (gênero no qual incluída a ação de improbidade administrativa) foi o meio adotado pela ordem jurídica brasileira para . . .garantir o controle concreto da legalidade extrapenal, sempre que a conduta desviada (ativa ou omissiva) merecer alta reprovabilidade em razão de sua carga lesiva potencial ou efetiva, seja no que respeita à qualidade do bem atingido, seja no tocante à abrangência dos ofendidos.”
Por conseguinte, forçoso é concluir pela total inconstitucionalidade da novel legislação que, olvidando ser atribuição única da Defensoria Pública a defesa de interesses individuais em nome do próprio titular do direito, numa clara atividade de exercício da legitimação ordinária, conferiu a tal instituição o exercício de legitimação extraordinária como substituto processual, dando-lhe legitimidade ativa para propor ações civis públicas que busquem a tutela de interesses difusos e coletivos.
Ao ampliar a esfera de atribuições da Defensoria Pública para a defesa de interesses metaindividuais, o legislador ordinário suplantou a definição constitucional das atividades da instituição, conferindo-lhe atuação totalmente desvirtuada.
O egrégio Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar, pelo seu Tribunal Pleno, em controle de constitucionalidade concentrado, acerca dos limites em que deve ser exercitada a legitimidade da Defensoria Pública, na ADI 3.022-1/RS, ementada nos seguintes termos:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RITO DO ART.12 DA LEI 9.868. ART. 45 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ALÍNEA A DO ANEXO II DA LEI COMPLEMENTAR 9.230/1991 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ATRIBUIÇÃO, À DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, DA DEFESA DE SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS PROCESSADOS CIVIL OU CRIMINALMENTE EM RAZÃO DE ATO PRATICADO NO EXERCÍCIO REGULAR DE SUAS FUNÇÕES. OFENSA AO ART. 134 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
1. Norma estadual que atribui à Defensoria Pública do estado a defesa judicial de servidores públicos estaduais processados civil ou criminalmente em razão do regular exercício do cargo extrapola o modelo da Constituição Federal (art. 134), o qual restringe as atribuições da Defensoria Pública à assistência jurídica a que se refere o art. 5º, LXXIV.
2. Declaração da inconstitucionalidade da expressão “bem como assistir, judicialmente, aos servidores estaduais processados por ato praticado em razão do exercício de suas atribuições funcionais”, contida na alínea a do Anexo II da Lei Complementar estadual 10.194/1994, também do estado do Rio Grande do Sul. Proposta acolhida, nos termos do art. 27 da Lei 9.868, para que declaração de inconstitucionalidade tenha efeitos a partir de 31 de dezembro de 2004.
3. Rejeitada a alegação de inconstitucionalidade do art. 45 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.
4. Ação julgada parcialmente procedente.”
No julgado em questão se discutia a constitucionalidade da legitimidade dada pela Lei que instituiu a Defensoria Pública no Rio Grande do Sul, ao atribuir a ela o encargo do Estado (previsto no art. 45 da Constituição Estadual) de defender os servidores públicos estaduais processados civil e criminalmente em razão de regular exercício do cargo.
O Excelso Pretório entendeu de não considerar a regra da Constituição Estadual inconstitucional, mas assim considerou o dispositivo da lei que atribuiu tal função à Defensoria, porquanto a esta incumbe a defesa dos “necessitados” ou “hipossuficientes”, situação que nem sempre se encontram os servidores públicos, bem como se constituir em desvirtuamento da missão constitucional da Defensoria Pública.
Vale colacionar excertos do voto condutor do Ministro Joaquim Barbosa:
“Sr. Presidente, o art. 134 da Constituição Federal é claro ao restringir a finalidade institucional da Defensoria Pública à orientação jurídica e defesa dos necessitados, clareza essa reforçada pela remissão desse dispositivo ao art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, o qual impõe ao Estado o dever de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. (...)
A meu ver, porém, não basta a afirmação de que o Constituinte estadual se desviou das referências da Carta Magna. É necessário também ressaltar que, ao alargar as atribuições da Defensoria estadual, ele – o Constituinte estadual - extrapolou o modelo institucional preconizado pelo Constituinte de 1988.
É de se indagar em que extensão essa extrapolação viola o modelo federal. Pode-se argumentar que em nada a assistência jurídica gratuita tenha sido prejudicada pelo acréscimo de atribuições contido na legislação gaúcha. Mas entendo, Sr. Presidente, que a atribuição de quaisquer outras atribuições à Defensoria tende a desvirtuar sua missão institucional vinculada à concretização de um direito fundamental específico, cujo fim último é a democratização do acesso à justiça.
A defesa de servidores pela Defensoria gaúcha leva à desnaturação da missão institucional do órgão tal como a quis a Constituição de 1988.”
Também o Ministro Carlos Ayres Britto foi enfático:
“Senhor Presidente, pelos fundamentos já lançados pelo Ministro Sepúlveda Pertence, acredito que a Lei Complementar Estadual desfigurou o modelo visado pela Constituição para atuação da Defensoria Pública, porque não se cuida aí de pessoa necessitada, carente de recursos materiais, e sim de todo e qualquer servidor público, indistintamente, desde que no exercício regular de seu cargo.”
Cabe mencionar também a advertência lançada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no julgado em comento, no sentido de que “essa atribuição indiscriminada à Defensoria Pública do patrocínio da defesa de servidores públicos acaba comprometendo a sua finalidade constitucional específica.”. O mesmo poderia ser dito da lei ora impugnada
A Defensoria Pública, com a legitimidade processual indevidamente concedida pela Lei nº 11.448/2007, está se desviando de sua missão constitucional, incorporando uma outra função que lhe é estranha, qual seja a de patrocinar interesses de pessoas que não se enquadram na qualificação de “necessitados”.
Vale lembrar que à Defensoria Pública não é defeso, em princípio, patrocinar interesses de associações legitimadas a propor ações civis públicas, tal qual previsto no art. 5º da Lei nº 7.347/85. Neste caso, a associação é que é legal e constitucionalmente legitimada e pode ser assistida pela Defensoria Pública, desde que possa ser qualificada como “necessitada”.
¹. em “Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo”. Salvador:Juspodivm, 2007, p. 195.
². em “Ações coletivas no direito comparado e nacional”. São Paulo:RT, 2002, p. 242/245.
³. em “Ação civil pública: fundamentos da legitimidade ativa do Ministério Público”. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2005, p. 142.