conamp

Parecer sobre a LC 99/2007 (MG)

Por: José Alfredo Baracho de Oliveira Júnior

José Alfredo Baracho de Oliveira Júnior, Advogado 

EMENTA: Processo Legislativo. Iniciativa privativa ou reservada de lei. Emendas parlamentares: caráter acessório. Ilegitimidade de emendas que não observam a pertinência temática. Competências do Ministério Público. Inconstitucionalidade de normas que violam sua autonomia institucional. Princípios da inamovibilidade e do promotor natural. Autonomia do Parquet.

CONSULTA: A associação dos Membros do Ministério Público do Estado de Minas Gerais honra-nos com consulta acerca da inconstitucionalidade de normas constantes da Lei Complementar nº 99, de 14 de agosto de 2007, oriunda do Projeto de Lei Complementar nº 17, de iniciativa do Procurador-Geral de Justiça, que visa alterar dispositivos da Lei Complementar Estadual nº 34/1994, lei esta que dispõe sobre a organização do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e dá outras providências.

I – DO OBJETO DA CONSULTA

01) O Procurador-Geral de Justiça, no exercício de suas atribuições constitucionais, exerceu direito de iniciativa de projeto de lei perante a Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais com o objetivo de alterar dispositivos da Lei Complementar nº 34/1994 para instituir, em favor dos membros do Ministério Público, gratificação por acumulação de atribuições e indenização por plantões exercidos em finais de semana ou feriados ou em razão de outras medidas urgentes. Além disto, o projeto de lei visou a classificação das Comarcas de Igarapé e de Nova Serrana como de segunda entrância, bem como o acréscimo de uma Promotoria de Justiça em cada uma delas. Tal era, em apertada síntese, o Projeto de Lei Complementar nº 17/2007, convertido na Lei Complementar nº 99, promulgada pelo Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais em 14 de agosto de 2007.

Não obstante a clara delimitação das matérias que o projeto de lei contemplava, foram apresentadas diversas emendas parlamentares, setenta e uma no total, as quais promoveram verdadeira substituição do projeto principal, alterando diversas competências do Ministério Público, gerando aumento de despesas para a Instituição e, principalmente, criando prerrogativa procedimental para agentes políticos estaduais, que passariam a ser investigados apenas pelo Procurador-Geral de Justiça, o que é uma medida sensível à autonomia constitucional assegurada ao Ministério Público.

O Exmo. Sr. Governador de Estado vetou totalmente referido projeto, ao argumento de que as inovações à Lei Complementar nº 34/1994 incidiam em diversas inconstitucionalidades e afrontas ao interesse público, como usurpação de competência legislativa da União, lesão da autonomia constitucional do Parquet, desrespeito ao regime federativo, dentre outros.

O veto, contudo, não foi mantido no retorno da proposição à Assembléia Legislativa.

II – LEGITIMIDADE MEDIANTE LEGALIDADE: O PROCESSO LEGISLATIVO COMO REQUISITO LEGITIMADOR DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS BRASILEIRAS

02) A Constituição da República, em seu art. 1º, define que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Mais que uma expressão de cunho teórico, a norma que inaugura o texto de 1988 encerra um importante direcionamento no exercício das funções de Estado e no projeto de sociedade que se inaugurava em 5 de outubro daquele ano. O Estado Democrático de Direito é um paradigma jurídico, um pano-de-fundo de compreensões compartilhadas por quem ordena suas condutas pela norma que funda o ordenamento jurídico e por quem regulamenta e aplica tal norma. Trata-se, enfim, de um pano-de-fundo compartilhado entre cidadãos, sociedade, Estado, instituições político-jurídicas como o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, assim como o próprio Ministério Público[1].

03) Em sociedades pluralistas como a brasileira, um dos problemas a ser enfrentado é o da possibilidade de manter coesa uma agremiação de cidadãos com projetos e modos de vida extremamente díspares. Na atualidade, essa exigência é atendida pelo Direito. É ele, como sistema normativo, que evita a desintegração de uma sociedade com tal característica, uma vez que ele ordena expectativas de comportamento exigindo apenas que as pessoas conformem suas relações externas nos termos pelo Direito definidos. Neste passo dir-se-ia que o Direito é inabdicável (basta lembrar do tão referido exemplo de que até uma ditadura procura fazer parecer reger-se pela legalidade). Uma vez inexistente um consenso forte de fundo (como religião, origem étnica ou qualquer outro critério “externo” ao conjunto de pessoas), o Direito vem apresentar um consenso em termos mais abstratos que permita o convívio das diversas orientações de vida para que esse convívio não leve a um sufocamento de minorias, será o procedimento democrático que possibilitará o acesso de todos à definição do que seja aquele mesmo Direito.

04) O Direito nas sociedades complexas, contudo, precisa soar legítimo aos olhos dos cidadãos. Se não houvesse espaço para que os destinatários da lei pudessem discutir a racionalidade dos termos que ela estabelece, não poderíamos falar em Direito legítimo. Normas jurídicas não são respeitadas tão-somente por uma autoridade pré-estabelecida elas têm que, ao menos, deixar um espaço para que possam sê-lo.

Tal racionalidade, em termos jurídicos, é alcançada pela participação dos cidadãos e destinatários das normas na construção das mesmas. O que torna uma norma válida é a possibilidade de que seus destinatários possam se sentir autores das mesmas o que torna uma norma jurídica legítima é o recurso ao princípio da democracia, que possibilita justamente a participação na construção dos provimentos emanados dos poderes de Estado.

05) A partir destas premissas, a expressão Estado Democrático de Direito, aqui entendida como paradigma, não soa despropositada: só conseguimos manter unida uma sociedade recorrendo ao medium do Direito – insistimos, o Direito é inabdicável – ou seja, fazendo prevalecer o Estado de Direito de outra ponta, este mesmo Direito resulta do uso que os cidadãos fazem de seus direitos de participação política na sua definição – são os procedimentos democráticos. Não há Direito sem democracia, assim como não há democracia sem Direito. Basta lembrar que é a própria Constituição da República que garante a soberania popular mediante instrumentos jurídicos, por exemplo, o art. 14, quando menciona o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular por outro lado, é esta mesma Constituição que regula a forma de sua alteração pelo exercício democrático/representativo do procedimento legislativo especial de Emenda Constitucional – sendo ainda necessário destacar que é o mesmo texto constitucional que prevê as regras basilares do processo legislativo.

O que se quer colocar em relevo, pois, é o fato de que em tal paradigma o procedimento é a base de legitimidade do uso que se quiser fazer do poder político. O que possibilita uma ampla legitimidade dos provimentos legislativo e judiciário é o fato de que possam os destinatários da norma jurídica participarem, no procedimento, da construção de tais provimentos.

“A almejada coesão interna entre direitos humanos e soberania popular consiste assim em que a exigência de institucionalização jurídica de uma prática civil do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida justamente por meio dos direitos humanos. Direitos humanos que possibilitam o exercício da soberania popular não se podem impingir de fora, como uma restrição.” (HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. Paulo Asthor Soethe e George Sperber. São Paulo: Loyola, 2002, p. 292)

A coesão entre direito e democracia, portanto (ou direitos humanos e soberania popular ou, ainda, entre autonomia privada e autonomia pública), é um ganho do paradigma do Estado Democrático de Direito sobre os paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social, ganho este que não pode ser de forma alguma desprezado:

“Ambos planteamientos [ambas as exigências, do Estado Liberal e do Estado Social] quedan demasiado atenidos a las implicaciones normativas del funcionamento social o del modo de funcionamento de un status negativo protegido jurídicamente y, por tanto, a la cuestión de si basta con garantizar la autonomía privada mediante derechos de libertad, o de si el que se produzca la autonomía privada ha de quedar asegurado mediante el otorgamiento de derechos relativos a prestaciones sociales. En ambos casos se pierde de vista la interna conexión entre autonomía privada y autonomía ciudadana y, por tanto, el sentido democrático de la autoorganización de una comunidad jurídica”( HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoria del discurso. Trad. Manuel Jimenez Redondo. Madri: Trotta, 1998, p. 490)

É possível, pois, dizer que os paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social detinham uma preocupação por demais “privatista”em garantir direitos fundamentais, seja pela omissão estatal (liberdade e igualdade formais), seja pelo oferecimento contínuo de prestações sociais como se estas fossem bens não se deu a devida atenção à participação democrática, algo requerido por uma concepção do Estado Democrático de Direito que leve na devida conta a importância dos procedimentos de participação política.

06) Diante destas considerações iniciais, torna-se evidente que o processo legislativo detém importância fundamental no estabelecimento dos rumos a serem seguidos pelos poderes políticos. Diante da supremacia constitucional é preciso, com isso, que as espécies normativas que venham a regulamentar os dispositivos constitucionais possuam sede na própria Constituição e procedimento de aprovação também por ela delimitado. Só assim poder-se-ia falar na legitimidade dos atos normativos primários constantes do art. 59 da Constituição da República que, a partir de então, trata do processo legislativo na Seção VIII do Capítulo I do Título IV.

O processo legislativo compreende um conjunto de normas constitucionais, infraconstitucionais e regimentais que disciplinam a sucessão de atos tendentes à produção das espécies normativas constantes do art. 59 da Constituição da República, com a observância da participação dos destinatários das normas jurídicas. Os conceitos de processo e procedimento são, nesta seara, de suma importância, uma vez que demarcam o papel do Poder Legislativo no Estado Democrático de Direito. O procedimento consiste justamente na sucessão de atos tendentes à produção do ato final – o que significa que a impropriedade de um dos atos do movimento sucessório pode comprometer toda a cadeia. Este conceito requer ainda algum refinamento no paradigma do Estado Democrático de Direito. É preciso somar a ele participação dos destinatários da norma jurídica. No âmbito da Teoria Geral do Processo a questão já ganha contornos consolidados:

“Procedimento sem norma de comando estrutural é um amontoado de atos não-jurídicos sem qualquer legitimidade, validade e eficácia. Mesmo que o procedimento se realize pelo modelo normativo, se não contiver o dado legal do contraditório em sua estrutura jurídica espácio-temporal, conforme em obra científica e incomparável relata o prof. Aroldo Plínio Gonçalves em estudo pioneiro no Brasil, não há PROCESSO. De outra face, a sentença (provimento) não é, nessa teoria, um ato sentimental e solitário do juiz, mas uma conseqüência e expressão jurídica, racionalizada e categoricamente conclusiva, dos atos realizados do procedimento em contraditório entre as partes” (LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 80-81, destaques do original)

Se a exigência já se consolida no âmbito da Teoria Geral do Processo, ela é muito maior no que se refere ao processo legislativo. Isto porque não temos no âmbito no Poder Judiciário representantes eleitos mas se, mesmo assim, ainda exigimos de juízes que garantam participação nos atos que proferem, o que dizer dos representantes na seara das Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas e Congresso Nacional.

Com isto torna-se imperiosa a rígida observância dos ditames constitucionais do processo legislativo, para que um eventual ato praticado no decorrer do iter processual não comprometa toda a ordem sucessória e, muito mais do que isto, para que não haja a incidência da chamada inconstitucionalidade formal. Daí se falar em um devido processo legislativo[2].

07) Diante desta evidente importância do processo legislativo, foi necessário que tal axioma fosse adequado ao sistema federativo adotado pelo Constituinte de 1988. Daí que as normas estabelecidas para o processo legislativo na União passem pelo crivo do paralelismo das formas, encontrando disposições semelhantes também nos demais entes federados, Estados, Distrito Federal e Municípios. As normas do processo legislativo são tidas como normas de repetição nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Distrital e Municipais que aparecem como elementos de aglutinação no sistema federativo brasileiro. Especificamente, a Constituição do Estado de Minas Gerais de 1989 disciplina o processo legislativo a partir do art. 63 de seu texto.

III – PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO: O RESPEITO À INICIATIVA PRIVATIVA OU RESERVADA COMO CONSECTÁRIO DO DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO

08) Justamente com base na necessária observância do devido processo legislativo e no cumprimento do princípio democrático, exigido pelo paradigma do Estado Democrático de Direito – no sentido de que os destinatários de uma norma jurídica possam se sentir como seus co-autores – é que a Constituição Federal, reproduzida pela Constituição Estadual, consagrou a chamada iniciativa privativa ou reservada.

A iniciativa é o ato pelo qual se deflagra o processo legislativo. Aceitando-se o conceito de procedimento como sucessão de atos tendentes à produção de um ato final, o comprometimento da iniciativa pode resultar em claro prejuízo para todo o decorrer do conjunto de atos. Isto não significa se posicionar de forma cega àquilo que pode fazer o ato de iniciativa: é certo que ele é um ato que, em uma gama de outros atos que compõem o procedimento, tem a função clara de dar propulsão ao procedimento legislativo. Não se está a defender aqui uma importância inata da iniciativa. Contudo, pretende-se destacar como, em certos casos, tal qual o que é objeto da presente consulta, pode haver uma lesão ao procedimento pela malversação de outros atos que compõem o conjunto da obra.

É possível arrolar diversas espécies de iniciativa de leis. A doutrina menciona, por exemplo, a iniciativa conjunta interessa-nos, especialmente, a chamada iniciativa privativa ou reservada e, ainda, a iniciativa concorrente:

“Prevê, ainda, a Constituição a iniciativa reservada ou exclusiva, pela qual determinadas matérias somente poderão ser objeto de lei, se apresentado por um único proponente legislativo. A iniciativa reservada se revela assim pela matéria que determina o órgão competente para o depósito do projeto de lei (...)” (CARVALHO, Kildare Gonçalves. Técnica legislativa. 4ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 138).

Em obra já clássica sobre o tema, o Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho externa a mesma posição:

“Reserva, todavia, a Constituição a iniciativa em certas matérias a título determinado, excluindo-as, pois, da regra geral acima [a da iniciativa geral] (...). O aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 207-208, destaques nossos)

Nota-se, pois, que o critério para o estabelecimento da iniciativa privativa ou reservada é material, ou seja, a vinculação de determinada matéria à autoridade que sobre ela tenha especial competência ou interesse preponderante.

Neste ponto faz-se importante discutir o conceito de pertinência temática, aqui entendida como a vinculação necessária entre os direitos e interesses a serem defendidos pelo proponente do projeto de lei e a matéria a ser regida no projeto.

E assim realmente o é. A iniciativa privativa ou reservada denuncia justamente a necessidade de que os destinatários primários de uma norma possam se sentir como seus co-autores, ou seja, a necessidade de que os sujeitos dos direito e obrigações a serem estabelecidos participem do procedimento legislativo que levará à sua produção. Isto porque a matéria a ser disciplinada no projeto é de interesse imediato dos proponentes. O que não significa uma restrição da participação democrática representativa, a chamada iniciativa parlamentar, mas tão-somente que os sujeitos de direitos e obrigações diretamente envolvidos em questões que lhe dizem respeito dêem início ao processo legislativo. Ao se transpor os limites da iniciativa reservada há clara inconstitucionalidade formal do projeto de lei que vier a ser aprovado.

09) Na esteira da consolidação do paradigma do Estado Democrático de Direito, a Constituição de 1988 estabeleceu uma série de normas tendentes a tornar plenamente autônoma a instituição Ministério Público. Dentre elas temos a desvinculação deste órgão da defesa dos interesses estatais em juízo – criando, para a esta função, a Advocacia de Estado – e a garantia das autonomias administrativa, funcional e financeira, numa clara distinção, necessária ao paradigma democrático, entre o público e o estatal. Como forma de garantir tal autonomia, previu a Constituição da República a iniciativa privativa ou reservada para a criação ou extinção de cargos da instituição e dos serviços auxiliares do Ministério Público, bem como, aos Procuradores-Gerais de Justiça de cada Estado Federado, a iniciativa de lei complementar sobre a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público[3]. Veja-se:

“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

(...)

Art. 128.

(...)

§ 5º - Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros:

(...)”.

O emprego de expressão que aponta iniciativa facultativa do Procurador-Geral de Justiça, para lei que disponha sobre a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, poderia conduzir ao entendimento de que a iniciativa de lei que disponha sobre a organização da instituição seja de iniciativa concorrente, visto que as expressões competência privativa ou competência exclusiva não aparecem. Doutrinadores brasileiros, não obstante, são claros ao interpretar o dispositivo constitucional, como expõe Alexandre de Moraes:

“Da mesma forma, faculta-se com exclusividade aos Procuradores-Gerais de Justiça de cada Estado-membro a iniciativa para lei complementar que estabelecerá a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 625, destaques nossos).

Em que pese esta manifestação doutrinária, vamos assim mesmo considerar que a expressão iniciativa facultativa comporte alguma ambigüidade e possa vir a designar a atribuição de iniciativa concorrente no âmbito estadual, nos moldes do que ocorreria no âmbito federal, sobre a organização do Ministério Público da União. No Estado de Minas Gerais esta tese tem pouca plausibilidade, pois ao contrário do que acontece na Constituição da República quando dispõe sobre a iniciativa privativa do Presidente da República (art. 61, § 1º, II, d), a Constituição Mineira, ao dispor sobre a iniciativa privativa do Governador (art. 66, III), não faz referência à iniciativa de lei que disponha sobre a organização do Ministério Público do Estado, fato que reforça a propriedade da opinião doutrinária acima exposta ao caso em exame.

É também fundamental verificarmos que a autonomia garantida ao Ministério Público deve nortear as interpretações acerca de sua iniciativa legislativa, visto que a regra de iniciativa é um corolário da estrutura constitucional conferida à instituição. Neste ponto devemos lembrar da integridade como virtude da ordem jurídica[4], em decorrência da qual as garantias institucionais do Ministério Público se refletem na interpretação das regras constitucionais a ele atinentes, inclusive a da iniciativa legislativa.

Neste sentido, é insustentável defender que a garantia de autonomia conferida ao Ministério Público possa comportar a desfiguração do órgão através de mudanças limitadoras de suas ações, sem que para tanto tenha concorrido uma proposta legislativa que tenha sua origem no Procurador Geral de Justiça.

Duvidosa seria até mesmo, sob o ponto de vista da inconstitucionalidade material, uma proposta limitadora das funções do Ministério Público que surgissem de iniciativa do próprio Procurador Geral de Justiça, pois a razão da autonomia da instituição é a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis, cuja titularidade não é do Ministério Público, mas da sociedade. Não está portanto em foco um interesse corporativo, mas a efetividade dos direitos fundamentais, através de um de seus órgãos de defesa.

10) O Poder Constituinte Decorrente de 1989, em Minas Gerais, ao dispor sobre a iniciativa de leis sobre o Ministério Público, previu:

“Art. 66 – São matérias de iniciativa privativa, além de outras previstas nesta Constituição:

(...)

§ 2º – Ao Procurador-Geral de Justiça é facultada, além do disposto no art. 125, a iniciativa de projetos sobre a criação, transformação e extinção de cargo e função públicos do Ministério Público e dos serviços auxiliares e a fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias e o disposto nos arts. 24, §§ 1º e 2º, e 32.

(...)

Art. 125 – É facultada ao Procurador-Geral de Justiça a iniciativa de lei complementar que disponha sobre:

I – organização, atribuições e Estatuto do Ministério Público, observado o seguinte:

a) ingresso na carreira mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado de Minas Gerais, em sua realização e observada, nas nomeações, a ordem de classificação

b) promoção, por antigüidade e merecimento, alternadamente, de uma para outra entrância ou categoria, e da entrância mais elevada para o cargo imediato de Procurador de Justiça, aplicado, no que couber, o disposto no art. 98, II

c) vencimentos fixados com diferença não excedente a dez por cento de uma para outra das entrâncias ou categorias da carreira, não podendo exceder, a qualquer título, os atribuídos ao Procurador-Geral de Justiça, cuja remuneração não poderá ser superior à que perceber, a qualquer título, o Desembargador

d) aposentadoria com proventos integrais, compulsória por invalidez ou aos setenta anos de idade e facultativa aos trinta anos de serviço, após cinco anos de exercício efetivo na carreira, observado o disposto no art. 36, § 4º

e) os direitos previstos no art. 7º, VIII, XII, XVII, XVIII e XIX, da Constituição da República no § 4º e no inciso I do § 6º do art. 31 e no § 5º do art. 36 desta Constituição

II – controle externo da atividade policial, por meio do exercício das seguintes atribuições, entre outras:

a) fiscalizar o cumprimento dos mandados de prisão

b) receber, diretamente da autoridade policial, os inquéritos e quaisquer outras peças de informação

c) fixar prazo para prosseguimento de inquérito policial

d) requisitar diligência à autoridade policial

e) inspecionar as unidades policiais civis ou militares

f) receber cópia de ocorrência lavrada pela Polícia Civil ou pela Polícia Militar

g) avocar, excepcional e fundamentadamente, inquérito policial em andamento

III – procedimentos administrativos de sua competência

IV – manutenção de curadorias especializadas para atuação na defesa do meio ambiente, dos direitos do consumidor e do patrimônio cultural do Estado.”

Não havendo previsão de iniciativa legislativa sobre organização do Ministério Público atribuída ao Governador, não há que se falar em iniciativa legislativa concorrente, efetivando-se por tais fundamentos a opinião doutrinária acima exposta. Mas ainda que considerássemos a iniciativa legislativa geral (artigo 61 da Constituição da República e artigo 65 da Constituição Mineira) como sustentação para uma iniciativa legislativa concorrente sobre organização do Ministério Público, o que fazemos apenas com o propósito de abordar a matéria em todos os seus desdobramentos, ainda assim teríamos dificuldade em justificar as emendas parlamentares apresentadas ao Projeto de Lei Complementar nº 17.

11) O Projeto de Lei enviado pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais à Assembléia Legislativa versava sobre vantagens a serem pagas aos membros do Ministério Público Estadual, quando exercendo funções adicionais às de seu cargo, bem como sobre a classificação de Promotorias de Justiça. Não versava sobre as atribuições do Procurador Geral de Justiça, dos Procuradores de Justiça ou dos Promotores de Justiça.

Ao versar apenas sobre tais temas, o Projeto de Lei Complementar nº 17 recaiu em seara sobre a qual o Supremo Tribunal Federal já se posicionou, no sentido de que ela é um consectário lógico da autonomia do Parquet:

“(...) a iniciativa da criação por lei de cargos do Ministério Público é predicado explícito da sua autonomia (CF, art. 127, § 2º) e, por isso, iniludivilmente privativa dos seus próprios órgãos diretivos, em particular, do seu chefe.” (STF, MS 21.239, RTJ 147: 126)

12) O exercício da iniciativa privativa ou reservada não exclui a participação do Poder que tem como função típica a de legislar. É dizer: a utilização por outros poderes (Judiciário e Executivo) ou pelo Ministério Público da iniciativa privativa, como parte das funções atípicas que exercem no sistema constitucional de freios e contrapesos, não significa que o Poder Legislativo, pura e simplesmente, aprovará ou rejeitará o projeto. A prática legiferante confere aos membros deste Poder a possibilidade de apresentar emendas parlamentares.

A emenda parlamentar é um acessório diante do principal, que é o projeto de lei em tramitação:

“Emenda é a proposição apresentada, com exclusividade, pelos parlamentares, como acessória de outra, sendo a principal as propostas de emenda à Constituição os projetos de lei ordinária os projetos de lei complementar os projetos de decreto legislativo os projetos de resolução.” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 629-630)

O que se denota é que as emendas parlamentares, em hipótese alguma, podem desvirtuar o projeto principal, por uma simples questão: elas são apenas acessórias ao mesmo. Diante, então, da iniciativa privativa ou reservada, as emendas parlamentares obedecem a um rigoroso critério de pertinência temática. Uma vez que elas visem alterar o projeto para regulamentar matérias diversas daquela a que se destina a proposta principal de lei, há uma evidente inconstitucionalidade e ilegalidade, já que corrompem às claras o processo iniciado por quem detém exclusividade para tanto. Alterações deste quilate provocam uma lesão ao princípio democrático, vez que passa o projeto de lei a representar a vontade parlamentar e não a vontade do exercente da iniciativa exclusiva. Com isto o que se tem é uma ausência de correspondência entre a autoria da norma jurídica e os destinatários que serão subordinados a ela. Inconstitucionalidade e ausência de legitimidade democrática ao mesmo tempo.

O próprio art. 228, inc. I, da Resolução da Assembléia Legislativa de Minas Gerais nº 5.176/1997, seu Regimento Interno, determina que não será recebida emenda que não for pertinente ao assunto versado na proposição principal. Ou seja, a Assembléia Legislativa, ao apresentar setenta e uma emendas parlamentares ao Projeto de Lei Complementar nº 17, emendas com conteúdos os mais diversos possíveis, estava em descompasso mesmo com o seu Regimento Interno.

13) Além do requisito da pertinência temática entre a emenda parlamentar e o projeto decorrente do exercício da iniciativa privativa ou reservada, a Constituição de 1988 ainda estabeleceu outro requisito: a emenda parlamentar não poderá resultar em aumento de despesa. Diz o texto constitucional federal (destaques nossos):

“Art. 63. Não será admitido aumento da despesa prevista:

I – nos projetos de iniciativa exclusiva do Presidente da República, ressalvado o disposto no art. 166, §§ 3º e 4º

II – nos projetos sobre organização dos serviços administrativos da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, dos Tribunais Federais e do Ministério Público.”

A norma constitucional em apreço visa manter a incolumidade do princípio constitucional da separação dos poderes, bem como a necessária autonomia do Ministério Público. Tanto é assim que foi repetida pelo Constituinte Mineiro de 1989 (destaques nossos):

“Art. 68 – Não será admitido aumento da despesa prevista:

I – nos projetos de iniciativa do Governador do Estado, ressalvada a comprovação da existência de receita e o disposto no art. 160, III

II – nos projetos sobre organização dos serviços administrativos da Assembléia Legislativa, dos Tribunais e do Ministério Público.”

Assim, se a emenda parlamentar altera os rumos do projeto de lei em trâmite – no que respeita à matéria a ser tratada – ou se ela provoca aumento de despesa, conseqüência imediata será a sua inconstitucionalidade.

O Excelso Supremo Tribunal Federal já se posicionou a respeito (destaques nossos):

“RE 134278 / SP - SÃO PAULO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE

Julgamento: 27/05/2004 Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Publicação DJ 12-11-2004 PP-00006 EMENT VOL-02172-02 PP-00354

LEXSTF v. 26, n. 312, 2005, p. 250-260

Parte(s)

RECTE.(S) : JAIR ASSAF E OUTROS

ADV.(A/S) : PEDRO ESTEVAM ALVES PINTO SERRANO E OUTROS

RECDO.(A/S) : PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE OSASCO

ADV.(A/S) : KLEBER AMANCIO COSTA

EMENTA: Servidores da Câmara Municipal de Osasco: vencimentos: teto remuneratório resultante de emenda parlamentar apresentada a projeto de lei de iniciativa reservada ao Poder Executivo versando sobre aumento de vencimentos (L. mun. 1.965/87, art. 3º): inocorrência de violação da regra de reserva de iniciativa (CF/69, art. 57, parág. único, I CF/88, art. 63, I). A reserva de iniciativa a outro Poder não implica vedação de emenda de origem parlamentar desde que pertinente à matéria da proposição e não acarrete aumento de despesa: precedentes.”

A posição é confirmada em outros arestos:

“ADI 2350 / GO - GOIÁS

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA

Julgamento: 25/03/2004 Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Publicação: DJ 30-04-2004 PP-00028 EMENT VOL-02149-04 PP-00761

Parte(s)

REQTE. : PARTIDO TRABALHISTA BRASILEIRO - PTB

ADVDOS. : JOSÉ BALDUÍNO DE SOUZA DÉCIO E OUTROS

ADVDO.(A/S) : ARTHUR DE CASTILHO NETO

ADVDO.(A/S) : OSCAR LUÍS DE MORAIS E OUTROS

REQDA. : ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE GOIÁS

REQDO. : GOVERNADOR DO ESTADO DE GOIÁS

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS. LEI ESTADUAL 13644/2000, ARTIGO 51, §§ 1º E 2º. OFENSA AOS ARTIGOS 22, XXV, E 236 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. EMENDA PARLAMENTAR. PERTINÊNCIA TEMÁTICA. ACUMULAÇÃO DE ATIVIDADE CARTORIAL DE NOTAS E DE REGISTRO. INVASÃO DE COMPETÊNCIA. NORMA DE NATUREZA SECUNDÁRIA. CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. EXAME. IMPOSSIBILIDADE. 1. A Constituição Federal veda ao Poder Legislativo apenas a prerrogativa da formalização de emendas a projeto originário de Tribunal de Justiça, se delas resultar aumento de despesa pública, observada ainda a pertinência temática, a harmonia e a simetria à proposta inicial. 2. Lei pertinente à organização judiciária do Estado e destinada a preencher as necessidades de pequenas comarcas, incapazes de suportar o ônus de mais de uma serventia extrajudicial. Norma editada segundo os limites da competência do Estado-membro. Legitimidade. 3. Acumulação de atribuições cartorárias de notas e de registro. Harmonia entre a lei estadual e a Lei Federal 8935/94, que apenas excepcionalmente admite a possibilidade de acumulação de serviços. Norma de natureza secundária. Controle concentrado de constitucionalidade. Exame. Impossibilidade. Ação conhecida em parte e, nesta parte, julgada improcedente.

ADI 2887 / SP - SÃO PAULO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO

Julgamento: 04/02/2004 Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Publicação: DJ 06-08-2004 PP-00020 EMENT VOL-02158-02 PP-00204

RTJ VOL-00194-03 PP-00848

Parte(s)

REQTE.(S) : GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO

ADV.(A/S) : PGE-SP - ELIVAL DA SILVA RAMOS

REQDO.(A/S) : ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ADV.(A/S) : JORGE L. GALLI

PROJETO - INICIATIVA - SERVIDOR PÚBLICO - DIREITOS E OBRIGAÇÕES. A iniciativa é do Poder Executivo, conforme dispõe a alínea "c" do inciso II do § 1º do artigo 61 da Constituição Federal. PROJETO - COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO EXECUTIVO - SERVIDOR DO ESTADO - EMENDA - AUMENTO DE DESPESA. Resultando da emenda apresentada e aprovada aumento de despesa, tem-se a inconstitucionalidade, consoante a regra do inciso I do artigo 63 da Constituição Federal. PROJETO - COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO EXECUTIVO - EMENDA - POSSIBILIDADE. Se de um lado é possível haver emenda em projeto de iniciativa do Executivo, indispensável é que não se altere, na essência, o que proposto, devendo o ato emanado da Casa Legislativa guardar pertinência com o objetivo visado (...).”

14) É da própria lógica da emenda parlamentar que ela não comprometa a iniciativa exclusiva ou reservada. Qualquer interpretação divergente desta resulta em inconstitucionalidade. o que regula a forma de sua altera referendo e a iniciativa popular) por outro lado, soas conformem suas relaE não há outro critério para se aferir a legitimidade da emenda parlamentar que não seja o da pertinência temática. A emenda, de fato, é uma iniciativa apenas acessória.

15) Não foi esse, entretanto, o rumo seguido pelas emendas parlamentares apresentadas na Assembléia Legislativa de Minas Gerais. Contrariando os pressupostos do processo legislativo aqui elencados, os representantes no Legislativo estadual deturparam a iniciativa reservada de lei exercida pelo Procurador-Geral de Justiça no Projeto de Lei Complementar nº 17/2007. Ao invés de se aterem às questões que fizeram parte da proposta apresentada pelo Chefe do Parquet – gratificação por cumulação de atribuições, indenização por plantões exercidos em finais de semana ou feriados ou em razão de outras medidas urgentes e classificação das Comarcas de Igarapé e de Nova Serrana como de segunda entrância, bem como o acréscimo de uma Promotoria de Justiça em cada uma delas – os parlamentares apresentaram, em plenário, emendas sobre diversas questões, todas elas comprometendo evidentemente a autonomia alcançada pelo órgão ministerial após a Constituição de 1988.

As alterações perpetradas geram aumento de despesa, uma vez que passam a exigir dos órgãos do Ministério Público que cumpram normas como a publicação em órgãos oficiais e a disponibilização na internet de relatórios sobre inquéritos civis e procedimentos investigatórios realizados no mês, bem como das ações ajuizadas e seu trâmite processual, ou seja, uma série de determinações que ferem a autonomia administrativa do Ministério Público e para as quais o projeto emendado não determinou a forma de sanar as despesas.

A questão torna-se ainda mais grave uma vez que o Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais apresentou dissenso manifesto quanto às alterações feitas mediante as emendas parlamentares. Isto se deu com o encaminhamento do Ofício GAB/1655/2007, pelo qual ele requereu a retirada da Proposição de Lei Complementar nº 17/2007. O pedido foi ignorado pela Assembléia Legislativa, que insistiu em se contrapor à manifesta vontade do Ministério Público.

16) Não há outra conclusão que não seja a inconstitucionalidade formal do projeto de lei complementar aprovado. De um lado, a inconstitucionalidade formal, quanto ao processo legislativo, é evidente pela lesão aos dispositivos constitucionais federais e estaduais sobre a iniciativa privativa ou reservada. As emendas parlamentares apresentadas se substituem nas determinações constituintes para incorrerem em real nova iniciativa, lesando o princípio democrático (uma vez que colocam os reais destinatários da norma fora do seu processo de construção), descumprindo a necessidade de observância da iniciativa privativa ou reservada do Ministério Público (com claro comprometimento de sua autonomia) – art. 128, § 5º, da Constituição da República e arts. 66 e 125 da Constituição do Estado de Minas Gerais -, gerando aumento de despesa – art. 63 da Constituição da República e art. 68 da Constituição do Estado de Minas Gerais – e ignorando o fato de que deve haver clara pertinência temática entre a emenda apresentada e o projeto principal.

IV – DA AUTONOMIA CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO – INCONSTITUCIONALIDADE DA PRERROGATIVA DE INVESTIGAÇÃO E PROCESSAMENTO PELO PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DE DETERMINADOS AGENTES POLÍTICOS

17) O Substitutivo que ora se critica incide em uma série de inconstitucionalidades materiais a serem abordadas. Chama a atenção, em primeiro lugar, a inovação inconstitucional levada a efeito pelos parlamentares, que passa a determinar a prerrogativa de certos agentes políticos de serem investigados tão-somente pelo Procurador-Geral de Justiça. Trata-se do art. 8º da Proposição de Lei Complementar nº 105/2007, no qual se convertera a antiga Proposição de Lei Complementar nº 17/2007, hoje Lei Complementar nº 99, de 14 de agosto de 2007, que alterou o art. 69, inc. XIII, da Lei Complementar nº 34/1994:

“Art. 8º – Ficam acrescentados ao "caput" do art. 69 da Lei Complementar nº 34, de 1994, os seguintes incisos XIII, XIV e XV, passando seus incisos XIII e XIV a vigorar, respectivamente, como incisos XVI e XVII:

“Art. 69 – [Além das atribuições previstas na Constituição Federal, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, na Constituição Estadual e em outras leis, compete ao Procurador-Geral de Justiça:]

(...)

XIII – instaurar procedimentos investigatórios e promover o inquérito civil nas hipóteses previstas no art. 129, II, da Constituição Federal, e para a defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, quando a responsabilidade for decorrente de ato praticado pelo Vice-Governador do Estado, pelo Advogado-Geral do Estado, pelo Defensor Público-Geral ou por Secretário de Estado, membro da Assembléia Legislativa, Magistrado, membro do Ministério Público ou Conselheiro do Tribunal de Contas, em razão de suas funções ”

O dispositivo toca aspectos sensíveis da Constituição da República. Ele estabelece uma prerrogativa de investigação não prevista nem pelo Constituinte Federal e nem pelo Constituinte Estadual, o que é duvidoso diante do princípio da igualdade, do princípio da isonomia e perante normas fundamentais do paradigma do Estado Democrático de Direito.

18) Igualdade, democracia, princípio republicano, todas estas são questões extremamente imbricadas diante do paradigma do Estado Democrático de Direito. O uso que se faz do poder político deve também levar em consideração o fato de que os cidadãos devem poder participar com iguais chances dos processos de criação e aplicação do Direito. Assim, como já ressaltado, eles devem, de modo equânime, participar tanto dos processos que levam à formação dos provimentos jurisdicionais quanto daqueles que levam aos provimentos legislativos. Além disto, tanto cidadãos quanto aqueles que fazem um uso direto do poder têm que se apresentar como co-partícipes do mesmo projeto: têm que ser, todos, tratados com igual respeito e consideração:

“No entanto devemos perceber, em primeiro lugar, que qualquer teoria adequada de igualdade política precisa comparar o poder político em duas dimensões: não só horizontalmente, comparando o poder dos diversos cidadãos ou grupos de cidadãos, mas também verticalmente, comparando o poder individual dos cidadãos com o de cada autoridade. Se a democracia é uma questão de igualdade de poder político, é preciso que ambas as dimensões sejam contempladas. A igualdade horizontal do poder não é suficiente para proporcionar algo que reconheçamos como uma democracia genuína. Nas ditaduras totalitárias: todos os cidadãos têm o mesmo poder político: nenhum. Cínicas e fingidas democracias, com apenas um partido político, geralmente são meticulosas ao oferecer a cada cidadão um, e somente um, voto para tal partido. Assim, é preciso que entre em cena a dimensão vertical” (DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 262).

 

Nenhum regime democrático é legítimo se ele não viabiliza que cidadãos e representantes políticos vejam-se, mutuamente, como participantes que se tratam de modo igualitário.

19) Como aceitar, então, o privilégio de que certas autoridades políticas sejam investigadas apenas pelo Procurador-Geral de Justiça? Há alguma exigência que possa afastar a incidência da igualdade e do tratamento isonômico em relação aos demais cidadãos neste caso? Por certo que não.

E isto não é apenas teoria constitucional. Tanto a Constituição da República (art. 3º, inc. IV) quanto a Constituição Estadual (art. 1º, § 2º) enunciam a exigência de cumprimento deste princípio normativo. A determinação de respeito às diferenças, de se tratar desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade, constitui uma imposição possível apenas quando haja um requisito fático forte o bastante para afastar o tratamento igualitário geral, o que não ocorre no caso.

As exceções à norma geral de igualdade e isonomia entre os cidadãos são apenas aquelas que estão expressas na Constituição, inserindo-se aí o foro por prerrogativa de função. No caso das emendas parlamentares em comento, entretanto, avançou-se muito além das prerrogativas decorrentes do texto maior.

20) Como outrora ressaltado, a Constituição de 1988 foi pródiga em procurar estabelecer a autonomia do Ministério Público. O primeiro passo neste sentido foi desvincular a defesa dos interesses estatais em juízo das funções exercidas pelo Parquet. Além disto, o texto constitucional contempla diversos dispositivos que denunciam o claro intento do Poder Constituinte em estabelecer o Ministério Público como representante dos interesses da sociedade, apresentando-o como uma das principais funções essenciais à Justiça, cabendo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A necessária autonomia para o cumprimento destas incumbências de relevo constitucional pode ser verificada no texto constitucional federal (destaques nossos):

“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

§ 1º - São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

§ 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira a lei disporá sobre sua organização e funcionamento. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)

Art. 128. O Ministério Público abrange:

I - o Ministério Público da União, que compreende:

a) o Ministério Público Federal

b) o Ministério Público do Trabalho

c) o Ministério Público Militar

d) o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

II - os Ministérios Públicos dos Estados.

(...)

§ 5º - Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros:

I - as seguintes garantias:

a) vitaliciedade, após dois anos de exercício, não podendo perder o cargo senão por sentença judicial transitada em julgado

b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

c) irredutibilidade de subsídio, fixado na forma do art. 39, § 4º, e ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 150, II, 153, III, 153, § 2º, I (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)”

Como outrora observado, a Constituição Mineira de 1989, em seus arts. 66 e 125, seguiu o texto federal para também pôr em relevo a autonomia do Parquet. Esta foi a principal preocupação tanto do Poder Constituinte federal quanto do Poder Constituinte Decorrente. Tanto é assim que mesmo a discussão sobre a posição constitucional da instituição caiu por terra, vez que a grande questão era a de assegurar a independência necessária dos membros para fiscalizarem a aplicação do texto constitucional, tanto pelo Estado quanto pela própria sociedade. Do texto da Emenda Constitucional nº 1/1969, que alocava o órgão dentro do Poder Executivo, passou a Constituição de 1988 a fazer valer a sua independência:

“Ao contrário, muito mais adequada foi a solução encontrada na Constituição de 1988. Como se viu e é bem sabido, a divisão tripartite do Poder é antes política e pragmática que científica. Ora, na verdade, pouca ou nenhuma importância teria colocar o Ministério Público dentro de qualquer Poder do Estado, ou até utopicamente erigi-lo a um quarto Poder (como queria Valladão), a fim de que, só por isso, se pretendesse lhe conferir independência. Esta não decorrerá basicamente da colocação do Ministério Público neste ou naquele título ou capítulo da Constituição, nem de denominá-lo Poder de Estado autônomo ou não antes, primordialmente dependerá das garantias e instrumentos de atuação conferidos à instituição e a seus membros” (MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: RT, 1989, p. 45).

Com isto, qualquer tentativa de menosprezar as determinações de autonomia do órgão ministerial implicam em inconstitucionalidade. Esta inconstitucionalidade, como fartamente demonstrado, fica clara pelo aspecto formal, colocando-se de lado as regras básicas do processo legislativo previstas pelas Constituições da República e Estadual da ótica material, a inconstitucionalidade aparece com a quebra da autonomia do Ministério Público, ao dispor o legislador estadual sobre matérias afetas ao funcionamento adequado do órgão na sua afirmação como função essencial à Justiça, assim como ao ferir o princípio constitucional da igualdade.

21) Além disto, a fixação de prerrogativas para o julgamento e processamento de autoridades políticas, sem a necessária e anterior previsão constitucional, tem sido, desde sempre, alvo de sérias críticas. Basta lembrar que o próprio controle jurisdicional de constitucionalidade nasce com a censura do Justice John Marshall ao Judiciary Act de 1789, quando ele se recusa a declarar o direito de William Marbury a tomar posse no cargo de Juiz de Paz do Condado de Washington por estar obstacularizado pela questão preliminar de uma prerrogativa de foro instituída ao arrepio do texto constitucional, não havendo outra coisa a fazer senão exercer o múnus judiciário do reconhecimento da inconstitucionalidade.

“Passando ao largo do que seria uma hipótese evidente de parcialidade do juiz, Marshall principiou o julgamento pelo mérito, proclamando o direito de Marbury à posse do cargo para o qual fora nomeado. Assim, ficava consignada perante a opinião pública a posição da Suprema Corte acerca da ilegalidade do Presidente Jefferson e de seu Secretário de Estado. Nada obstante, a ordem era denegada por força de uma preliminar de incompetência da Corte, com que se afastava o risco de uma crise entre os Poderes. Para o reconhecimento da preliminar, entretanto, foi necessário declarar inconstitucional a lei que atribuía competência à Suprema Corte para julgar casos como aquele em exame. O argumento utilizado foi de que as competências da Suprema Corte estavam elencadas na Constituição, sendo insuscetíveis de ampliação por lei”[5] (BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 30-31).

O combate a tais privilégios foi objeto de recente análise pelo Supremo Tribunal Federal. Primeiramente, com o cancelamento da Súmula nº 394, que estabelecia a perpetuação da competência por prerrogativa de foro das autoridades elencadas no art. 102, inc. I, alínea b, mesmo com o fim do exercício do mandato ou cargo. Em segundo lugar, com a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/2002: tal lei alterara o art. 84 do Código de Processo Penal para estender a competência por prerrogativa de função dos tribunais para os atos de improbidade administrativa previstos pela Lei 8.429/1992, ainda que o inquérito ou a ação judicial tivessem início após a cessação do exercício da função pública. Ou seja, inovavam-se as competências jurisdicionais do Supremo Tribunal Federal sem a atuação do Poder Constituinte Reformador. Antevendo a posição do Supremo, veja-se a lição da doutrina:

“Nessa esteira, inadmissível pretender-se o emprego de analogia ou de interpretação analógica, sob pena do Supremo transformar-se em um Poder Constituinte esdrúxulo e anômalo. A primeira, entendida como modalidade de integração jurídica, isso é, técnica de supressão de anomia do ordenamento jurídico, exige para seu adimplemento a coincidência axiológica entre as hipóteses que seriam merecedoras de idêntico tratamento jurídico, o que seguramente não ocorre no caso em estudo. Primeiro porque o foro privilegiado do crime de responsabilidade advém de mera reprodução de paradigmas constitucionais passados. Depois porque a distinção de esfera de controle para esses ilícitos é mais consentânea com as exigências do Estado Democrático de Direito, atendendo o sentimento popular de repulsa à corrupção e à impunidade. Por último, Hércules[6], como um romancista de uma obra já iniciada, examinaria pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido do descabimento de alargamento das competências originárias dessa Corte pelo emprego da analogia.

Por outro lado, Hércules entenderia vedada também interpretação analógica que pretendesse estender o foro privilegiado do crime de responsabilidade para a apuração de ato de improbidade, visto que essa forma de interpretação não deve ser tolerada quando se trata de relação ou situação excepcional, tal como a derrogação dos princípios da isonomia e republicano em favor da instalação de foro privilegiado” (CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Privilégio de foro e improbidade administrativa. In CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (coord.). O Supremo Tribunal Federal Revisitado: o ano judiciário de 2002. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 54-55).

Julgando as ADIn’s nº 2.797/DF e 2.860/DF, o Supremo Tribunal Federal foi categórico em rechaçar a prática reiterada do legislador ao tentar colocar de lado o princípio do juízo natural, na tentativa de estabelecer privilégios de julgamento, bem como ao tentar superar a interpretação do Supremo Tribunal Federal, consolidada no cancelamento da referida súmula, por lei ordinária ulterior:

“80. O que se impugna, no caso, é a declaração por lei de competência originária não prevista na Constituição.

81. Ora, como livre criação de competências originárias dos tribunais federais, a lei é inválida, dada a taxatividade do rol constitucional delas.

82. E, quando se pretenda sustentar a validade da lei como mera explicitação de competências originárias implícitas na Lei Fundamental, à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões anteriormente aventadas contra a pretensão de imposição por lei ordinária de uma dada interpretação constitucional.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIn 2.297/DF. Relator Ministro Sepúlveda Pertence. Disponível em . Capturado em 13/08/2007).

O que as decisões recentes do Supremo Tribunal Federal denunciam é a censurabilidade do estabelecimento de privilégios de julgamento não previstos pelo Poder Constituinte, em clara afronta aos princípios da igualdade e da isonomia processual, não havendo outro caminho senão o do reconhecimento da inconstitucionalidade da alteração perpetrada pelo art. 8º da Proposição de Lei Complementar Estadual nº 17/2007.

22) A posição do Supremo Tribunal Federal chega a ser ainda mais clara em julgados envolvendo matéria semelhante à que aqui se discute. Na ADIn nº 1.285-1/SP, discutia-se a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Estadual paulista nº 736/1993 que, em seu art. 116, inc. V, estabelecia o privilégio de processamento pelo Procurador-Geral de Justiça de inquérito civil e ação civil pública tendentes a investigar atos praticados por autoridades políticas como Secretário de Estado, Membro de Diretoria ou Conselho de Administração de Entidade da Administração Indireta do Estado, Deputado Estadual, Membro do Ministério Público, Membro do Poder Judiciário e Conselheiro do Tribunal de Contas. O Supremo Tribunal Federal deferiu o pedido de liminar para suspender a eficácia do ali disposto:

“No tocante à legitimação ativa para propor a ação civil pública, tenho como relevante o fundamento da argüição de inconstitucionalidade com base no art. 22, I, da Constituição Federal sob a alegação de que essa matéria diz respeito a processo e não a procedimento, razão por que, a esse propósito, se insere na competência exclusiva da União para legislar sobre processo civil” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 1.285-1/SP. Relator Ministro Moreira Alves. Disponível em . Capturado em 12/08/2007).

Neste caso o Ministro Relator Moreira Alves apresentou uma longa análise sobre a natureza do inquérito civil – se processo, competência privativa da União (Art. 22 – CF), ou procedimento, competência concorrente da União e dos Estados (CF, art. 24).

Sabemos que a Teoria Geral do Processo, de forma geral, entende o inquérito como procedimento, eis que na submetido ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, fato que colocaria o inquérito como sujeito a normas procedimentais, as quais seriam, como afirmou o Ministro Moreira Alves, também da alçada dos Estados, como dispõe o artigo 24 da Constituição da República.

Não obstante, temos que de acordo com o parágrafo primeiro do artigo 24 da Constituição da República, no âmbito da competência concorrente cabe à União dispor sobre normas gerais e aos Estados suplementa-las. E neste ponto a lei estadual não pode fugir ao que preceitua o artigo 29, inc.VIII, da Lei Federal nº 8.625/1993, o qual define a prerrogativa de investigação pelo Procurador Geral de Justiça apenas para o Governador de Estado, o Presidente da Assembléia Legislativa e os Presidentes de Tribunais. A Lei Complementar nº 99/2007, ao expandir o número de agentes políticos detentores da prerrogativa, ultrapassa os limites da norma geral estabelecida pela União, violando por via reflexa a própria norma constitucional.

Assim, ainda que tenhamos por pertinentes as distinções feitas pelo Ministro Moreira Alves entre processo e procedimento, entre inquérito civil e ação civil pública, a distinção torna-se secundária à luz das normas gerais federais sobre a matéria, às quais estão sujeitos os Estados Federados, ainda que tenham a prerrogativa de legislar sobre procedimentos em matéria processual (art. 24, XI, CF).

Quando o art. 128, § 5º, da Constituição da República, estabelece a iniciativa privativa dos Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados para, mediante lei complementar, fixar a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, ele está delimitando a chamada repartição de competências vertical concorrente. A leitura há de ser conjugada com a do disposto no art. 127, § 2º, que determina que lei disporá sobre a organização e o funcionamento do Ministério Público.

A repartição de competências legislativas em um Estado de forma federal define o próprio caráter da distribuição geográfica do poder. É o termômetro da federação, pois delimita o espaço de atuação de cada um daqueles que a integram[7].

A Constituição de 1988 articula a repartição de competências entre União e Estados de forma conjugada, estabelecendo competências exclusivas e privativas, além das comuns e concorrentes. Adotou-se, desde a Carta de 1934, um regime que contempla não apenas a forma horizontal de repartição de competências, mas também a vertical, pelo que se tornou possível um federalismo de cooperação mediante o uso de competências comuns e concorrentes.

A Constituição da República, no que respeita à competência legislativa em relação às normas sobre o Ministério Público, adota eminentemente o critério de repartição concorrente de competências. Isto significa que cabe à União estabelecer normas gerais, ou normas centrais, devendo os Estados, como entes federativos que adotam, segundo o princípio da predominância do interesse, a perspectiva regional, pormenorizar a legislação federal segundo as suas peculiaridades. Dada a preocupação do Constituinte com a matéria, a prevalência é das competências concorrentes, já que a autonomia de cada Ministério Público depende da atuação livre e independente de cada órgão junto à Justiça Comum Estadual.

Havendo, desse modo, confronto entre a legislação estadual complementar e a legislação federal central sobre normas gerais, o que se tem não é uma ilegalidade, mas uma inconstitucionalidade, por ter o legislador estadual invadido competência estabelecida constitucionalmente para outro ente federativo.

Como já apontado, o art. 29, inc. VIII, da Lei Federal nº 8.625/1993, define a prerrogativa de investigação apenas para o Governador de Estado, o Presidente da Assembléia Legislativa e os Presidentes de Tribunais ao expandir o número de agentes políticos detentores da prerrogativa temos uma séria inconstitucionalidade, com lesão ao sistema federativo brasileiro definido na Constituição da República de 1988, sistema este protegido pela impossibilidade de supressão mesmo pela ação do Poder Constituinte Reformador (art. 60, § 4º, inc. I, da Constituição da República).

23) Importante ainda destacar que também na ADIn nº 1.916-9/MS deferiu o Supremo Tribunal Federal pedido de liminar para suspender a eficácia de dispositivo da Lei Complementar nº 72/1994, do Estado do Mato Grosso do Sul, que estabelecia idêntico privilégio, incorrendo o legislador estadual em usurpação de competência privativa da União para legislar sobre direito processual civil (art. 22, inc. I, da Constituição da República) (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 1.916-9/MS. Relator Ministro Nelson Jobim. Disponível em . Capturado em 12/08/2007).

24) O art. 5º, inc. LIII, da Constituição Federal, estatui que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. O Constituinte assegurou, pois, como direito fundamental, a observância dos princípios constitucionais do promotor natural e do juiz natural. O princípio do promotor natural estabelece a exigência de que não ocorram designações arbitrárias de promotores para oficiar em inquéritos ou ações específicas. Dada a necessária autonomia do Parquet, já enfatizada diversas vezes aqui, deve ele estar munido de garantias que permitam uma atuação apenas vinculada pela ordem jurídico-constitucional vigente. Isto está presente, por exemplo, no princípio constitucional da independência funcional, assim como na garantia do promotor natural.

Fica proscrita, pois, a existência da figura do promotor de exceção, assim como a do promotor ad hoc. E isto se estende também às designações arbitrárias feitas pelo próprio legislador, ignorando o disposto na lei federal (repartição concorrente de competências), ou o disposto na própria Constituição (inexistência de privilégio de processamento). O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade para se manifestar a respeito do caráter fundamental do princípio:

“O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu oficio, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas clausulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemonico e incontrastável” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC nº 67.759/RJ. Relator Ministro Celso de Mello. Disponível em . Capturado em 12/08/2007).

Também o Superior Tribunal de Justiça afirmou a necessidade do respeito ao princípio do promotor natural:

“CONSTITUCIONAL - PROCESSUAL PENAL - MINISTÉRIO PÚBLICO - PROMOTOR NATURAL - O promotor ou o procurador não pode ser designado sem obediência ao critério legal, a fim de garantir julgamento imparcial, isento. Veda-se, assim, designação de promotor ou procurador ad hoc, no sentido de fixar previa orientação, como seria odioso indicação singular de magistrado para processar e julgar alguém. Importante, fundamental é prefixar o critério de designação. O réu tem direito público, subjetivo de conhecer o órgão do ministério público, como ocorre com o juízo natural” (RESP 11722/SP, Relator Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, 6ª Turma, 08/09/1992)

O que ocorre no presente caso é que a independência da atuação do Ministério Público, concretizada por meio de seus diversos Promotores e Procuradores de Justiça, fica prejudicada pela atuação de um único de seus representantes. E não se diga que se há uma prerrogativa de foro para o julgamento perante o Tribunal de Justiça, tal prerrogativa, por uma interpretação errônea do paralelismo das formas, deva ser estendida ao inquérito. Caso isto fosse possível, o que se admite apenas por respeito ao princípio da eventualidade, a mudança realizada pela Lei Complementar nº 99/2007 só seria justificável por alteração constitucional, pois esta é a sede de fixação do foro por prerrogativa de função.

V – DA AUTONOMIA CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO – INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE OUTROS DISPOSITIVOS DA PROPOSIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR Nº 17/2007

25) Além do estabelecimento da prerrogativa para a investigação, os parlamentares apresentaram também outras emendas que igualmente comprometem a autonomia do Ministério Público Estadual, como veremos.

A consolidação do Estado Democrático de Direito passa pela afirmação de instituições sólidas e aptas a dar seguimento ao projeto inaugurado pela Constituição da República. Sem que existam tais instituições, responsáveis por efetivar o cumprimento das normas constitucionais, o princípio do Estado Democrático de Direito tende a sucumbir, cedendo lugar às políticas fugazes das maiorias eventuais.

O mesmo problema se apresenta quando as instituições políticas não prestam tributo ao sistema constitucional[8]. Na história brasileira não faltam exemplos de substituição do projeto constitucional em curso por abruptas mudanças no poder político, que muito pouco respeito deveram ao Estado de Direito.

Não foi despropositado, pois, que a Ditadura Militar tenha situado, através da Emenda Constitucional nº 1/1969 à Constituição de 1967, o Ministério Público como um órgão do Poder Executivo. Faltava-lhe, à época, as características das necessárias isenção e autonomia para atuar em prol da consagração do regime jurídico-constitucional e dos interesses da sociedade, até porque não eram estes, claramente, os objetivos da autocracia militar.

A ruptura promovida, pois, pelo Poder Constituinte de 1988 deveria ser radical, e o foi. O Ministério Público foi reformulado com o intento de figurar como uma das instituições estatais qualificadas para a consolidação do Estado Democrático de Direito[9]:

“Reconheceu o constituinte de 1988 que a incipiente abertura democrática que vivemos não poderia dispensar um Ministério Público forte e independente, que efetivamente possa defender as liberdades públicas, os interesses difusos, o meio ambiente, as vítimas não só da violência como as da chamada criminalidade do colarinho branco – ainda que o agressor seja muito poderoso ou até mesmo se o agressor for o governo ou o governante. Reconheceu, aliás, que o Ministério Público é um dos guardiões do regime democrático” (MAZZILLI, Hugro Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 20).

As alterações promovidas pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais colocam em cheque os avanços perpetrados pela Constituição da República de 1988, assim como pelas legislações infraconstitucionais federal e estadual.

26) O art. 2º da Lei Complementar nº 99/2007 alterou o art. 33, inc. XIX, da Lei Complementar nº 34/1994, para dar-lhe a seguinte redação:

“Art. 33 – [Ao Conselho Superior do Ministério Público compete:]

XIX – determinar a suspensão do exercício funcional de membro do Ministério Público, em caso de verificação de incapacidade física ou mental ou por participação em atividade político-partidária, salvo quando em decorrência de suas funções institucionais ”

Na redação anterior, competiria ao Conselho Superior do Ministério Público determinar a suspensão do exercício funcional de membro apenas nas hipóteses de incapacidade física ou mental. A alteração promovida passa a incluir também a hipótese de “(...) participação em atividade político-partidária, salvo quando em decorrência de suas funções institucionais”. A inconstitucionalidade é clara. A Emenda Constitucional nº 45/2004 modificou o disposto na alínea e do inc. II do art. 128 da Constituição da República para excluir qualquer possibilidade de exercício de atividade político-partidária por membro do Ministério Público. Se a redação anterior à emenda constitucional abria exceções[10] à atuação do legislador ordinário, a redação atual veda expressamente qualquer tipo de atividade. O Tribunal Superior Eleitoral já se posicionou enfaticamente a respeito (destaques nossos):

“Relator(a) MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO Relator(a) designado(a)

Publicação DJ - Diário de Justiça, Volume 1, Data 26/08/2005, Página 176

RJTSE - Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 16, Tomo 1, Página 378

Ementa: COMPETÊNCIA - CONSULTA - REGÊNCIA E NATUREZA DA MATÉRIA. A teor do disposto no inciso XII do artigo 23 do Código Eleitoral, a competência do Tribunal Superior Eleitoral para responder consulta está ligada ao envolvimento de tema eleitoral, sendo desinfluente a regência, ou seja, se do próprio Código, de legislação esparsa ou da Constituição Federal.

MINISTÉRIO PÚBLICO - ATIVIDADE POLÍTICO-PARTIDÁRIA - ALÍNEA "e" DO INCISO II DO ARTIGO 128 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - EMENDA CONSTITUCIONAL nº 45/2004 - APLICAÇÃO NO TEMPO. A proibição do exercício de atividade político-partidária ao membro do Ministério Público tem aplicação imediata e linear, apanhando todos aqueles que o integram, pouco importando a data de ingresso.

Catálogo EL0152 : MATÉRIA PROCESSUAL - COMPETÊNCIA

EL0222 : PARTIDO POLÍTICO - FILIAÇÃO PARTIDÁRIA - MINISTÉRIO PÚBLICO

Indexação Competência, (TSE), resposta, consulta, exercício, atividade política, filiação partidária, membros, Ministério Público, matéria eleitoral, disciplinamento, Constituição Federal.

Aplicação, proibição, atividade política, filiação partidária, membros, Ministério Público, ingresso, carreira, anterioridade, promulgação, emenda constitucional, alteração, dispositivo, Constituição Federal, disciplinamento, matéria.”

Para além da flagrante inconstitucionalidade material, há que se lembrar que a alteração não fazia parte do projeto decorrente do exercício da iniciativa privativa pelo Procurador-Geral de Justiça, pelo que se configura também a inconstitucionalidade formal da norma jurídica modificadora.

27) O art. 2º da Lei Complementar Estadual nº 99/2007 também acrescentou ao art. 33 da Lei Complementar Estadual nº 34/1994 o seguinte dispositivo:

“Art. 33 –

(...)

§ 7° – O convênio com os Poderes Executivo ou Legislativo do Estado ou de Município que envolva a cessão de bens ou de servidores desses poderes será firmado pelo Procurador-Geral de Justiça, mediante aprovação prévia do Conselho Superior do Ministério Público.”

Há no texto clara ingerência na autonomia administrativa do Ministério Público, garantida constitucionalmente pelo art. 128, § 2º da Constituição da República e pelo art. 122 da Constituição do Estado de Minas Gerais. Tal autonomia administrativa é essencial para um funcionamento adequado e imparcial da instituição. Materialmente inconstitucional, pois, se mostra a norma da Lei Complementar nº 99/2007.

Além disto, como sói ocorrer com a inteireza da lei complementar inquinada, há, novamente, inconstitucionalidade formal por usurpação da iniciativa privativa do Procurador-Geral de Justiça para propor projeto de lei tratando da organização do Ministério Público Estadual (Constituição da República, art. 128, § 5º, e Constituição do Estado de Minas Gerais, art. 125, inc. I).

28) O art. 3º da Lei Complementar nº 99/2007 também promove uma série de mudanças ao arrepio das Constituições da República e Estadual:

“Art. 3º – Ficam acrescentados ao art. 39 da Lei Complementar nº 34, de 1994, os seguintes incisos XXVIII a XXXII, renumerando-se o inciso XXVIII como XXXIII, e os seguintes §§ 3º e 4º, ficando a lei acrescida dos Anexos II e III, na forma do Anexo desta lei, e passando o Anexo da Lei Complementar nº 34, de 1994, a vigorar como Anexo I:

"Art. 39 – (...)

XXVIII – examinar em até noventa dias as informações e os relatórios encaminhados por Comissão da Assembléia Legislativa relativos a denúncia ou reclamação apresentada por qualquer pessoa sobre irregularidade ou abuso cometido por membro do Ministério Público, dando o encaminhamento que for de direito e instaurando, se for o caso, o devido processo disciplinar, cujo ato de abertura será publicado no órgão oficial do Estado

XXIX – receber denúncia ou reclamação fundamentada apresentada por qualquer pessoa sobre irregularidade ou abuso cometido por membro do Ministério Público, dando o encaminhamento que for de direito e instaurando, se for o caso, o devido processo disciplinar, cujo ato de abertura será publicado no órgão oficial do Estado

XXX – publicar no órgão oficial do Estado e manter disponível na internet, a partir do dia 15 de cada mês, a relação dos inquéritos civis e dos procedimentos investigatórios não concluídos no prazo de cento e vinte dias contados da data de sua instauração, com os respectivos número, data de abertura e nome do membro do Ministério Público responsável

XXXI – manter disponível na internet, a partir do dia 15 de março de cada ano, relatório contendo as ações ajuizadas por membro do Ministério Público no ano anterior e informações sobre sua tramitação processual, conforme o Anexo II desta lei, e o resumo do dispositivo das sentenças prolatadas no ano anterior relativas a ações propostas pelo Ministério Público em anos anteriores, na forma do Anexo III, bem como o percentual de ações impetradas por membros do Ministério Público julgadas procedentes e improcedentes, em cada Comarca

XXXII – manter disponível na internet a relação dos processos em andamento em todas as Comarcas que, nos termos do art. 74, XV, e do art. 72, VIII, não tenham sido devolvidos no prazo legal, com pareceres ou manifestações cabíveis, identificando a espécie e o número do feito, o nome das partes, salvo nos casos de segredo de justiça, e a data de recebimento dos autos

(...)

§ 3º – Decorrido o prazo de noventa dias previsto no inciso XXVIII do "caput" deste artigo sem decisão final do Corregedor-Geral, a denúncia e o respectivo processo disciplinar serão encaminhados, na situação em que se encontrarem, ao Conselho Nacional do Ministério Público.

§ 4º – Serão encaminhados ao Conselho Nacional do Ministério Público:

I – o processo disciplinar instaurado em razão das denúncias e reclamações a que se referem os incisos XXVIII e XXIX, após a sua conclusão

II – as denúncias e reclamações a que se referem os incisos XXVIII e XXIX que não tenham ensejado a abertura de processo disciplinar.".”

Em vários dos incisos e parágrafos acrescentados o que se almeja é o cerceamento da atividade autônoma do Parquet, tanto na perspectiva de sua autonomia funcional quanto de sua autonomia administrativa[11]. O comprometimento da autonomia equivale a uma ineficiência total da instituição ministerial. No dizer de Sampaio Dória (In MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 592):

“Retire-se da autonomia a idéia de autodeterminação ou governo próprio e competência própria, mas que lhe fixam, e nada mais lhe sobrará. São os seus dois elementos essenciais e irredutíveis: as raias invioláveis em que lhe circunscrevem a ação, e o poder de agir livremente dentro dessas raias”.

As alterações levadas a efeito levaram a uma lesão à autonomia funcional e administrativa do Ministério Público. Além desta inconstitucionalidade material, em prática reiterada, a mudança não fez parte da proposta inicial do Procurador-Geral de Justiça, o que gera inconstitucionalidade formal. Mais que isto, as exigências implicam em apresentação de emenda que gera aumento de despesa: a Assembléia Legislativa passa a exigir do Ministério Público o cumprimento de uma série de atribuições sem apresentar a origem dos recursos que atendam às mesmas. A inconstitucionalidade, assim, diante disposto no do art. 63, inc. II, da Constituição da República, é patente.

29) Situação semelhante ocorre em relação às alterações perpetradas pelo art. 5º da Lei Complementar nº 99/2007:

“Art. 5º – Ficam acrescentados ao art. 66 da Lei Complementar nº 34, de 1994, os seguintes §§ 2º a 4º, passando seu parágrafo único a vigorar como § 1º:

"Art. 66 – (...)

§ 2º – Nas hipóteses do inciso VI do "caput" deste artigo, poderá o Ministério Público propor a celebração de Compromisso de Ajustamento de Conduta.

§ 3º – O Compromisso de Ajustamento de Conduta firmado será publicado na íntegra no órgão oficial do Estado e produzirá efeitos após a sua publicação.

§ 4º – O pagamento das despesas com a publicação da matéria a que se refere o § 3º será feito pelo Ministério Público, com recurso orçamentário próprio, observadas as tabelas de cobrança da Imprensa Oficial e vedada a transferência do ônus para o compromitente."”

Também aqui a alteração parlamentar gerará aumento de despesa: tal aumento, contudo, não derivou do exercício de iniciativa privativa pelo Procurador-Geral de Justiça, mas tão-somente de emendas parlamentares apresentadas ao projeto principal, o que, como já apontado, viola o disposto no artigo 63, II, da Constituição da República.

A mesma inconstitucionalidade pode ser verificada nos arts. 6º, 9º e 10 da Lei Complementar Estadual nº 99/2007:

“Art. 6º – Os incisos VII e IX do "caput" do art. 67 da Lei Complementar nº 34, de 1994, e os §§ 1º e 9º do mesmo artigo passam a vigorar com a seguinte redação, ficando acrescentados ao artigo os §§ 10 a 13 a seguir:

"Art. 67 – [No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:]

VII – solicitar, fundamentadamente, meios materiais e servidores públicos, por prazo não superior a noventa dias, para o exercício de atividades técnicas ou especializadas, nos procedimentos administrativos afetos à sua área de atuação

(...)

IX – requisitar, no exercício de suas atribuições, a proteção de força policial em caso de ameaça de violência física

(...)

§ 1º – As notificações e requisições previstas neste artigo, quando tiverem como destinatários exclusivos para a prática do ato o Governador do Estado, os membros do Poder Legislativo estadual, os Magistrados, o Vice-Governador do Estado, os Conselheiros do Tribunal de Contas, os Secretários de Estado, o Advogado-Geral do Estado ou o Defensor Público-Geral serão encaminhadas pelo Procurador-Geral de Justiça, mediante requerimento de membro do Ministério Público.

(...)

§ 9º – Na hipótese do inciso XIV do "caput" deste artigo, as notificações e requisições, quando tiverem como destinatários exclusivos para a prática do ato o Governador do Estado, os membros do Poder Legislativo estadual, os Magistrados, o Vice-Governador do Estado, os Conselheiros do Tribunal de Contas, os Secretários de Estado, o Advogado-Geral do Estado ou o Defensor Público-Geral serão requeridas pelo Procurador-Geral de Justiça.

§ 10 – Os inquéritos civis e os procedimentos investigatórios terão início após a publicação, no órgão oficial do Estado, da portaria de abertura, contendo o respectivo número, a data de abertura e o nome do membro do Ministério Público responsável.

§ 11 – Os inquéritos civis e os procedimentos investigatórios serão autuados e receberão numeração seqüencial.

§ 12 – Nos procedimentos previstos nas alíneas "a", "b" e "c" do inciso I do "caput" o membro do Ministério Público portará cópia da publicação, no órgão oficial do Estado, da portaria de abertura do respectivo inquérito civil ou procedimento investigatório.

§ 13 – O não cumprimento do previsto no § 12 implicará falta grave e afastamento imediato do membro do Ministério Público do respectivo inquérito civil ou procedimento investigatório."

Art. 9º – Fica acrescentado ao art. 72 da Lei Complementar nº 34, de 1994, o seguinte inciso XII, passando seu inciso XII a vigorar como inciso XIII:

"Art. 72 – [Além das atribuições previstas na Constituição Federal, na Constituição Estadual, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e em outras leis, compete aos Procuradores de Justiça, no âmbito de suas atribuições:]

XII – informar, mensalmente, ao Corregedor-Geral do Ministério Público, para efeito de publicação no órgão oficial, a relação dos inquéritos civis e dos procedimentos investigatórios não concluídos no prazo de cento e vinte dias contados da data de sua instauração, identificando a espécie, o número, a data de abertura e o nome do membro do Ministério Público responsável "

Art. 10 – Os incisos VIII, IX, XI e XXIII do art. 74 da Lei Complementar nº 34, de 1994, passam a vigorar com a seguinte redação, ficando o artigo acrescido do inciso XXXI que segue e passando seu inciso XXXI a vigorar como inciso XXXII:

"Art. 74 – [Além das atribuições previstas na Constituição Federal, na Constituição Estadual, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e em outras leis, compete aos Promotores de Justiça:]

VIII – expedir notificações e requisições e instaurar procedimentos investigatórios nos casos afetos à sua área de atuação, salvo os que tenham como destinatárias as autoridades a que se referem os §§ 1º e 9º do art. 67 e o inciso XIII do art. 69

IX – inspecionar e fiscalizar cadeias públicas, manicômios judiciários, estabelecimentos prisionais de qualquer natureza, hospitais públicos ou conveniados e locais que abriguem idosos, crianças, adolescentes, incapazes ou pessoas portadoras de deficiência, mediante comunicação fundamentada ao dirigente da instituição, adotando as medidas cabíveis

(...)

XI – fiscalizar e inspecionar as fundações privadas e as instituídas pelo poder público, mediante comunicação fundamentada ao dirigente da instituição, adotando as medidas cabíveis

(...)

XXIII – inspecionar, periodicamente, estabelecimentos e órgãos de tratamento e amparo à criança ou ao adolescente, públicos ou privados, mediante comunicação fundamentada ao dirigente da instituição, adotando as medidas cabíveis

(...)

XXXI – informar, mensalmente, ao Corregedor-Geral do Ministério Público, para efeito de publicação no órgão oficial, a relação dos inquéritos civis e dos procedimentos investigatórios não concluídos no prazo de cento e vinte dias contados da data de sua instauração, identificando a espécie, o número, a data de abertura e o nome do membro do Ministério Público responsável ".

Mais uma vez matérias que não guardam pertinência temática com o que havia sido proposto no Projeto de Lei Complementar Estadual nº 17/2007, atual Lei Complementar nº 99/2007, foram objeto de emendas parlamentares, fato que, como já foi repetidamente destacado, compromete a autonomia do Ministério Público.

A doutrina especializada se opõe com veemência à quebra da autonomia da instituição:

“É justamente para que hoje, sob democracia, as mais importantes instituições civis cumpram o papel de defesa dos interesses da coletividade – que não se confundem com os do governo ou dos governantes –, é para isso que essas instituições, que detêm parcela da soberania do Estado, devem ser dotadas de instrumentos que lhe assegurem autonomia e independência.” (MAZZILLI, Hugo Nigro.Introdução ao Ministério Público. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 56)

A necessidade de comunicação prévia ao dirigente da instituição de atos a serem praticados pelo representante do Ministério Público, como, por exemplo, a inspeção e a fiscalização de fundações privadas, coloca em risco o princípio constitucional da independência funcional do membro do Ministério Público. Mais que isso, compromete a eficiência do cumprimento de tais atos.

30) Além das inconstitucionalidades formais e materiais acima apontadas, devemos destacar que a Lei Complementar nº 99/2007 incorre em outro vício formal, pois dispõe:

“Art. 7º – Fica acrescentado à Lei Complementar nº 34, de 1994, o seguinte art. 68-A:

"Art. 68-A – Nas causas em que for vencido o Ministério Público, as despesas processuais que o órgão for condenado a ressarcir, na forma da legislação processual civil, correrão por conta de dotação orçamentária específica do orçamento do Ministério Público.

Parágrafo único – Nos casos de dolo ou culpa de membro do Ministério Público, este responderá pelas despesas a que se refere o "caput" deste artigo, nos termos da Lei n° 11.813, de 26 de janeiro de 1995.".”

Sucumbência é, como sabido, matéria de Direito Processual. Sobre tal matéria, apenas a União Federal poderá exercer competência legislativa, nos termos do art. 22, inc. I, da Constituição da República. A competência do Estado é concorrente, acerca de procedimento em matéria processual, conforme preceitua o artigo 24, XI. Há, neste sentido, inconstitucionalidade formal, por ter a Lei Complementar nº 99/2007 versado sobre matéria de competência privativa da União.

31) Há, por fim, dispositivos da Lei Complementar nº 99/2007 que inovam quanto às hipóteses de perda do cargo por membro do Ministério Público, bem como vedam a atuação do Parquet relativamente a determinadas matérias. O art. 12 da Lei Complementar Estadual nº 99/2007 estabelece:

“Art. 12 – Fica acrescentado ao art. 111 da Lei Complementar nº 34, de 1994, o seguinte inciso VII:

"Art. 111 – [Ao membro do Ministério Público é vedado:]

VII – fiscalizar as finanças e a contabilidade de pessoa jurídica de direito privado que não receba recurso público, ressalvadas as fundações privadas, as entidades públicas constituídas na forma do direito privado e as prestadoras de serviço público.".”

A Constituição da República incumbiu o Ministério Público da defesa da ordem jurídica. Isto não exclui a fiscalização de entidades privadas e nem limita a atividade do Parquet a organizações privadas que recebam recursos públicos. No paradigma do Estado Democrático de Direito é preciso lembrar que, em muitos casos, a rígida distinção entre público/privado pode levar à ineficácia da norma constitucional, que é o que justamente quer evitar o Ministério Público. Nesta seara, apenas à guisa de exemplo, casos como os de sonegação fiscal restariam impunes.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, entendemos que há inconstitucionalidade dos dispositivos abordados, todos da Lei Complementar do Estado de Minas Gerais nº 99/2007, que visou alterar a Lei Complementar Estadual nº 34/1994, tanto sob o ponto de vista formal, com lesão aos artigos 22, I, 24, XI, 63, inc. II, da Constituição da República e ao art. 125 da Constituição do Estado de Minas Gerais, quanto sob o ponto de vista material, pelo fato de que a Lei Complementar Estadual nº 99/2007 não se coaduna com o art. 1º, art. 61, § 1º, d, art. 127, caput, e §§ 1º e § 2º e o art. 128, § 5º, inc. II, e, todos da Constituição da República, bem com o art. 119 e art. 122 da Constituição do Estado de Minas Gerais.

É este o nosso parecer, salvo melhor juízo.

Belo Horizonte, 20 de agosto de 2007.

José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior - OAB/MG 55.150


1. “Os paradigmas do direito permitem diagnosticar a situação e servem de guias para a ação. Eles iluminam o horizonte de determinada sociedade, tendo em vista a realização do sistema de direitos. Nesta medida, sua função primordial consiste em abrir portas para o mundo. Paradigmas abrem perspectivas de interpretação nas quais é possível referir os princípios do Estado de direito ao contexto da sociedade como um todo. Eles lançam luz sobre as restrições e as possibilidades para a realização de direitos fundamentais, os quais, enquanto princípios não saturados, necessitam de uma interpretação e de uma estruturação ulterior” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 181).

2. “A elevação das normas do processo legislativo ao plano da Constituição confere a essas regras a rigidez e a supremacia da norma constitucional. Galeotti, partindo certamente do plano secundário das regras regimentais, anotou que durante largo tempo as regras relativas à formação das leis não eram consideradas direito certo e obrigatório, desprovidas do caráter de normas imperiosas e capazes de acarretar sanção nos casos de violação. A concepção de que a formação das leis não se sujeitava a limitações jurídicas projetou, na observação de Galeotti, o procedimento legislativo “nel limbo di uma giuridicità incompiuta e, comunque, sfumata”. A consagração constitucional das normas regimentais superou esse período de incerteza” (HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 546).

3. Note-se que a iniciativa legislativa concorrente existente entre o Procurador-Geral da República e o Presidente da República (arts. 61, § 1º, II, d, e 128, § 5º) é apenas para a apresentação de projeto de lei federal dispondo sobre a organização do Ministério Público da União, do Distrito Federal e dos Territórios, o que não é a hipótese discutida aqui.

4. DWORKIN, Ronald. Law´s Empire. Cambridge, MA: Harvard University, 1986.

5. O caso, em apertada síntese, envolvia os seguintes fatos: o ex-Presidente John Adams, antes do fim de seu mandato, mas já ciente da sua derrota para Thomas Jefferson (Adams foi Presidente dos Estados Unidos de 1797 a 1801), fez uma série de nomeações de correligionários seus para o Judiciário americano, entre eles, John Marshall, seu ex-Secretário de Estado, para a Presidência da Suprema Corte, e William Marbury, para o cargo de Juiz da Paz no Condado de Washington, Distrito de Columbia. A nomeação de Marbury ficou, no entanto, a depender de um título de posse que lhe seria entregue, supostamente, pelo próximo Secretário de Estado, James Madison. A recusa deste último se impôs. Contra tal ato, Marbury aviou um writ of mandamus na Suprema Corte, orientando-se pelo que dispunha do Judiciary Act de 1789, lei infraconstitucional que estabelecia competências para a Suprema Corte que só a Constituição poderia fazê-lo.

6. O autor aqui se refere à figura de retórica adotada pelo filósofo do Direito norte-americano Ronald Dworkin como paradigma para uma devida atuação jurisdicional. O Hércules de Dworkin é um juiz que prima pela coerência nas decisões que toma, almejando sempre uma resposta correta para cada caso concreto, ou seja, atendendo a ambas as exigências do Direito, segurança jurídica e justiça.

7. “A Constituição Federal como responsável pela repartição de competências, que demarca os domínios da Federação e dos Estados-Membros, imprimirá ao modelo federal que ela concebeu ou tendência centralizadora, que advirá da amplitude dos poderes da União, ou a tendência descentralizadora, que decorrerá da atribuição de maiores competências aos Estados-Membros. Por isso, a repartição de competências é encarada como a “chave da estrutura do poder federal”[Loewenstein], “o elemento essencial da construção federal”[Douin], a “grande questão do federalismo”[Aubert], “o problema típico do Estado Federal”[Verdú]” (HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 306).

8. “Todavia, é certo que o êxito do Estado Constitucional não depende apenas, ou, então, só depende em primeiro lugar, da qualidade das normas e sentenças. O mais importante é que a população se identifique com a Constituição e não honre violações constitucionais por parte das instâncias políticas. Para políticos que sempre recaem em situações nas quais as vinculações constitucionais perturbam seus planos políticos, não pode valer a pena desprezar a Constituição. Isso pressupõe um enraizamento da Constituição na sociedade, incluindo as elites políticas [...]” (GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 94-95).

9. “Sentinela da coisa pública, é o Ministério Público da Sociedade, do cidadão, do povo, do governante constitucional o Ministério Público que padece da animadversão de um Executivo depravado porque nunca a corrupção do Poder foi alvo de investigações tão rentes às esferas mais elevadas da administração pública quanto ora acontece” (BONAVIDES, Paulo. Os dois Ministérios Públicos do Brasil: o da Constituição e o do Governo. In MOURA JÚNIOR, Flávio Paixão de. ROCHA, João Carlos de Carvalho. DOBROWOLSKI, Samantha Chantal. SOUZA, Zani Tobias de (orgs.). Ministério Público e a ordem social justa. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 352).

10. Redação anterior do art. 128, inc. II, alínea e, da Constituição da República:

“Art. 128

(...)

II – as seguintes vedações:

(...)

e) exercer atividade político-partidária, salvo as exceções previstas na lei”.

Redação atual (após a Emenda Constitucional nº 45/2004):

“Art. 128

(...)

II – as seguintes vedações:

(...)

e) exercer atividade político-partidária”.

11. “A autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, portanto, é o seu poder de agir, livremente, nas raias da legalidade, dirigindo-se por um governo próprio, sem intromissões na esfera de competência que a Constituição da República lhe outorgou. Trata-se de um reforço à independência mesma do Parquet, que possui capacidade de gerir negócios próprios, como reconheceu a Lei n. 8.625/93, ao prever a possibilidade de o órgão (art. 3º, I a XII):

● praticar atos próprios de gestão

(...)

● organizar suas secretarias e os serviços auxiliares das Procuradorias e Promotorias de Justiça

(...)

● exercer outras competências dela decorrentes” (BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva: 2007, p. 1.142).


Imprimir