conamp

Lei 11.343/06. A despenalização da posse de drogas para o consumo pessoal.

Por: Jorge Assaf Maluly

Jorge Assaf Maluly, Promotor de Justiça (MP/ SP)

O artigo 28 da Lei nº 11.343, de 2006, inovou no tratamento penal para aqueles considerados usuários de drogas, punindo-os mais brandamente. O anterior artigo 16 da Lei nº 6.368/76, reprimia igual conduta, com uma pena de detenção, de seis a dois anos, além do pagamento de multa, para aquele que adquirisse, guardasse ou trouxesse consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar.

Agora dispõe o artigo 28 da Lei nº 11.343, de 23-08-2006, o seguinte:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas 
II - prestação de serviços à comunidade 
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Como se vê, a parte sancionatória do artigo 28 da Lei Antidrogas não prevê mais qualquer pena corporal. Este tipo penal pune o infrator somente com penas alternativas (advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo).

Em razão deste tratamento mais brando, alguns julgados e doutrinadores, como Luis Flavio Gomes, passaram a sustentar que ocorreu uma descriminalização “formal” de tal conduta, ou seja, uma abolitio criminis, embora a posse de droga para uso próprio não tenha sido legalizada.

Para tanto, argumenta-se que a infração prevista no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 não pode ser tratada nem como crime nem como contravenção, porque a sua parte sancionatória não se enquadra nas definições previstas no artigo 1º da Lei de Introdução do Código Penal, para o qual crime é a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente quer alternativamente ou cumulativamente com a sanção de multa, enquanto que contravenção penal é a infração a que a lei cominada, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

Assim, como as sanções impostas no tipo penal em apreço são apenas alternativas, a posse de droga para consumo pessoal não pode ser classificada nem como crime nem como contravenção, a partir do advento da Lei nº 11.343, 2006, tratando-se, sim, de uma infração sui generis.

Contudo, não é esse o entendimento que deve prevalecer.

Em primeiro lugar, o título do Capítulo III do Título III da Lei Antidrogas está nomeado como “DOS CRIMES E DAS PENAS”, o que deixa claro que as infrações penais ali previstas continuam tendo um caráter criminoso.

Aliás, o capítulo somente prevê um outro delito, que pune aquele que, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colher plantas, destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica, igualmente com penas alternativas.

O mesmo capítulo prevê, também, a prescrição penal desses delitos no prazo de dois anos (art. 30).

A disposição da conduta de posse de droga para consumo pessoal na Lei nº 11.343/06 no Capítulo III deixa manifesto o entendimento de que o artigo 28 continua sendo um crime, independentemente do que dispõe o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, podendo-se, por isto, até se falar em derrogação deste dispositivo. Surge, assim, a possibilidade de se punir um crime apenas com penas alternativas, o que, aliás, é um reclamo de muitos críticos da legislação penal brasileira, que observam a falta de mais penas principais não privativas da liberdade.

Além disso, convém destacar que as penas dispostas no artigo 28 da Lei Antidrogas estão entre aquelas previstas no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, quais sejam: a) privação ou restrição da liberdade b) perda de bens c) multa d) prestação social alternativa e) e suspensão ou interdição de direitos. A Carta Magna, da mesma forma, admite outras espécies de sanções penais, desde que respeitadas as vedações do inciso XLVII (pena de morte, de caráter perpétuo, de trabalho forçado, de banimento ou cruéis).

Por tal motivo, também, não tem sentido o argumento de que ocorreu uma descriminalização do porte ou posse de drogas, para consumo pessoal, porque somente há previsão de penas alternativas na parte sancionatória do art. 28.

Para outros doutrinadores, a Lei nº 11.343/06 criou uma terceira espécie de infração penal, distinta do crime e da contravenção penal, sem que tenha ocorrido, portanto, uma descriminalização da conduta aludida.

Para JOÃO JOSÉ LEAL, “... a Lei Antidrogas criou uma nova infração penal, que não se enquadra na classificação legal de crime, nem de contravenção penal. Criou, simplesmente, uma infração penal inominada, punida com novas alternativas penais e isto não contraria a diretiva genérica de classificação das infrações penais, emanada do referido dispositivo da Lei de Introdução ao Código Penal” (cf. Nova Lei nº 11.343/2006: Descriminalização da conduta de porte para consumo pessoal de drogas?”, Boletim do IBCCrim nº 169, dezembro, 2006).

GUILHERME DE SOUZA NUCCI mantém a definição de crime do art. 28 da Lei nº 11.343/06, mas dá-lhe uma designação doutrinária específica, de crime de ínfimo potencial ofensivo, em vista do tratamento mais brando conferido pela lei (cf. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, p. 369).

No mesmo sentido, LEVY EMANUEL MAGNO afirma:

“Analisando os dispositivos em estudo (art. 28 e seu §1º), não parece adequada a sustentação jurídica da tese sobre eventual descriminalização em qualquer de suas modalidades, com a retirada do caráter ilícito do fato”.

A roupagem jurídica do art. 28 e §1º mais se amolda ao instituto da despenalização, com a utilização exclusiva de penas socialmente alternativas.

Uma investigação específica sobre a questão permite afirmar que perdura a ilicitude do fato, tal como outra infração penal (cf.Nova Lei Antidrogas Comentada – Lei nº 11.343, São Paulo, Ed. Quartier Latin, 2007, p. 118).

Já REINALDO DANIEL MOREIRA lembra que o Deputado Paulo Pimenta, relator do Projeto de Lei que deu origem ao diploma em apreço, claramente não deu a entender que o intuito da lei era a descriminalização do uso. Conclui o doutrinador:

“Trata-se, de fato, o artigo 28 da Lei nº 11.343, de previsão singular no ordenamento secundário da descrição típica de penas distintas das privativas de liberdade e, de multa, medida de caráter nitidamente despenalizador. Contudo, ao que parece, este fator, por si só, não pode conduzir ao entendimento de que a conduta ali prevista fora descriminalizada” (cf. Algumas considerações acerca da pretensa descriminalização do uso de entorpecentes pela Lei nº 11.343/2006, Boletim do IBCCrim nº 169, dezembro de 2006).

É bom lembrar que o artigo 1º da LICP não prevê conceitos absolutos, imodificáveis, de crime ou de contravenção penal ou mesmo impede a criação de uma terceira categoria de infração penal.

MIRABETE lembra que as infrações penais na França, Alemanha, Bélgica, Áustria, Japão e Grécia, dentre outros países, são classificadas em crimes, delitos e contravenções. Trata-se de um sistema tricotômico, ou divisão tripartida. Ensina que “Não há, na realidade, diferença de natureza entre as infrações penais, pois a distinção reside apenas na espécie da sanção cominada à infração penal (mais ou menos severa) ...” (cf. Manual de Direito Penal, Parte Geral, São Paulo, ed. Atlas, 2005, 22ª ed., 1º vol., p. 128).

Portanto, mesmo que não se queira considerar mais como um crime a posse de drogas para consumo pessoal, por força de uma interpretação restritiva do artigo 1º da LICP, estar-se-ia diante de uma terceira classificação de infração penal, uma inominada, como sustentado por alguns autores.

Intervindo nesse debate, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de Questão de Ordem nos autos do Recurso Extraordinário nº 430.105 – RJ, rejeitou as teses de abolitio criminais e infração penal sui generis, afirmando a natureza de crime da conduta perpetrada pelo usuário de drogas (Informativos nºs 456 e 465 do STF). O critério adotado neste precedente foi bem resumido nesta ementa:

”I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 - nova lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP - que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção - não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime - como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 - pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo "rigor técnico", que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado "Dos Crimes e das Penas", só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão "reincidência", também não se pode emprestar um sentido "popular", especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de "despenalização", entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário julgado prejudicado”.

E é bem expressivo o voto condutor, redigido pelo Ministro Sepúlveda Pertence, do qual se extraem as passagens fundamentais:

“...a conduta antes descrita no art. 16 da L. 6.368/76 continua sendo crime sob a lei nova. Afasto, inicialmente, o fundamento de que o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a L. 11.343/06 criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou detenção. A norma contida no art. 1º do LICP – que, por cuidar de matéria penal, foi recebida pela Constituição de 1988 como de legislação ordinária – se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção. Nada impede, contudo, que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 – pena diversa da “privação ou restrição da liberdade”, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de serem adotadas pela “lei” (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). IV De outro lado, seria presumir o excepcional se a interpretação da L. 11.343/06 partisse de um pressuposto desapreço do legislador pelo “rigor técnico”, que o teria levado – inadvertidamente - a incluir as infrações relativas ao usuário em um capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas” (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). Leio, no ponto, o trecho do relatório apresentado pelo Deputado Paulo Pimenta, Relator do Projeto na Câmara dos Deputados (PL 7.134/02 – oriundo do Senado), verbis (www.camara.gov.br): “(...) Reservamos o Título III para tratar exclusivamente das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Nele incluímos toda a matéria referente a usuários e dependentes, optando, inclusive, por trazer para este título o crime do usuário, separando-o dos demais delitos previstos na lei, os quais se referem à produção não autorizada e ao tráfico de drogas – Título IV. (...) Com relação ao crime de uso de drogas, a grande virtude da proposta é a eliminação da possibilidade de prisão para o usuário e dependente. Conforme vem sendo cientificamente apontado, a prisão dos usuários e dependentes não traz benefícios à sociedade, pois, por um lado, os impede de receber a atenção necessária, inclusive com tratamento eficaz e, por outro, faz com que passem a conviver com agentes de crimes muito mais graves. Ressalvamos que não estamos, de forma alguma, descriminalizando a conduta do usuário – o Brasil é, inclusive, signatário de convenções internacionais que proíbem a eliminação desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal (...).” Não se trata de tomar a referida passagem como reveladora das reais intenções do legislador, até porque, mesmo que fosse possível desvendá-las – advertia com precisão o saudoso Ministro Carlos Maximiliano –, não seriam elas aptas a vincular o sentido e alcance da norma posta. Cuida-se, apenas, de não tomar como premissa a existência de mero equívoco na colocação das condutas num capítulo chamado “Dos Crimes e das Penas” e, a partir daí, analisar se, na Lei, tal como posta, outros elementos reforçam a tese de que o fato continua sendo crime. De minha parte, estou convencido de que, na verdade, o que ocorreu foi uma despenalização, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. O uso, por exemplo, da expressão “reincidência”, não parece ter um sentido “popular”, especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a incidência da regra geral do C.Penal (C.Penal, art. 12: “As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”). Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata de pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do 107 e seguintes do C.Penal (L. 11.343/06, art. 30). Assim, malgrado os termos da Lei não sejam inequívocos – o que justifica a polêmica instaurada desde a sua edição –, não vejo como reconhecer que os fatos antes disciplinados no art. 16 da L. 6.368/76 deixaram de ser crimes. O que houve, repita-se, foi uma despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento – antes existente apenas com relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material de execução (CF/88, art. 225, § 3º) e L. 9.605/98, arts. 3º 21/24) – da tradição da imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal.”

A mesma orientação seguiu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Recursos Especiais nº 862.758 – MG, 870.730-MG, 862.758-MG e 820.521-MG.

Dessa forma, não importando o argumento que se adote, a manutenção da classificação de crime ou adoção de uma terceira classificação pelo denominado sistema tripartido, a punição da conduta prevista no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 somente com penas alternativas não retira o seu caráter criminoso, devendo-se falar, em verdade, na ocorrência de uma despenalização, em virtude do abrandamento das penas.


Imprimir