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Esse tal de custos legis

Por: Raul Schaefer Filho

Michèle-Laure Rassat, dimensionando a controvérsia, já expressara que "as funções do Ministério Público, quando bem compreendidas, são as mais belas que existem. Ah! mas como é difícil de bem compreendê-las ...", enquanto que o nosso Hélio Tornaghi, referindo-se ao oficio ministerial, coloca que "não surgiu de repente, num só lugar, por força de algum ato legislativo. Formou-se lenta e progressivamente, em resposta às exigências históricas". Com efeito, quando os estudiosos mergulham nas origens históricas da instituição, embora controvertidamente, assinalam os primeiros vestígios entre gregos e romanos.

Conquanto esses povos, a rigor, e no esplendor de suas civilizações, não tenham conhecido, propriamente, a instituição do Ministério Público, desfrutaram de agentes, ligados, aos reis e imperadores, que desempenhavam funções havidas como de seu nascedouro, assim os procuradores de César, que na Roma antiga eram tidos como mordomos qualificados, defensores do patrimônio do príncipe, ou os acusadores públicos, de Atenas, cujos processos, então, interessavam à religião e ao Estado. Na verdade, considerados a mão do rei, poderiam, hoje, na feliz expressão de Hugo Nigro Mazzilli, como metáfora, serem conhecidos como a mão da lei?!

O fato é que desde os tempos mais remotos até os nossos dias sua transformação deveu-se não só às exigências históricas, mas de igual à sua auto-afirmação como instituição essencial para a consecução do significado da Justiça. Em todos os momentos do seu desenvolver construiu, o Ministério Público, sua natureza de fiscal da lei, isto é, de custos legis.

Dessarte, entre nós, com todos os inestimáveis avanços conquistados através da Constituição Federal de 1988, que concebeu a instituição do Ministério Público como sendo permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, com a incumbência da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, na conformidade de seu art. 127, essa natureza reforçou-se e redimensionou-se, seguindo processo dialético e estrutural, com aquisição de distintos contornos tanto na moderna teoria do processo, como na interação com as diversificadas forças sociais. Judicialmente, nos meandros instrumentais para atingir a composição dos litígios exercita essa natureza e sua finalidade através de dupla função, como órgão agente e como órgão interveniente, seja em sede de matéria cível, seja no campo penal. Neste último, os bens que se encontram tutelados são eminentemente públicos e sociais, decorrendo que o direito de punir aos que contra essa tutela investem, e merecem receber a correspondente sanção punitiva, e a aplicação da punição, pertencem à sociedade. E como esta, na lição de Fernando da Costa Tourinho Filho, é uma entidade abstrata, a função de reprimir as infrações penais permanece sob a responsabilidade do Estado, que a realiza através dos seus órgãos competentes, surgindo, daí, o promotor da ação penal pública, o Ministério Público (art. 129, I, CF) – fiscal da lei. Esse promover a realização do direito, pertencente à sociedade, de punir, no primado da lei, implica transitar por todas as etapas e instâncias do processo, efetivando as demarches do conflito.

Por ser a instituição do Ministério Público estruturada em carreira, como observância ao comando constitucional (art. 127, § 2º art. 128, §§ 3º e 5º, e art. 129, §§ 2º, 3º e 4º, todos da Constituição Federal), incumbe o exercício de tal mister junto aos Tribunais de Apelação e demais Instâncias Superiores aos agentes ministeriais do mais elevado grau dessa carreira, que nos Estados-membros da Federação brasileira são os denominados Procuradores de Justiça.

A peculiaridade institucional de concepção, integrada pelos elementos natureza e finalidade, fiscal da lei, tem proporcionado entre alguns estudiosos de nomeada confusão na órbita do processo, em conta de sua dupla função para presentar o desiderato – ora como agente, ora como interveniente. Dessarte, ao referirem, esses estudiosos, que a atuação do Ministério Público perante os Tribunais conota igualmente a função de custos legis, estão, sem demérito, asseverando meia verdade. É que ele não está ali nos processos, abstraindo se de competência originária da instância ad-quem ou se guindados a ela por intermédio dos recursos, apenas e meramente para os fiscalizar em suas regularidades formais, porém com amplo espectro de atuação, fazendo valer sua dupla função (agente e interveniente), pois se de um jaez, em face da independência funcional do membro do Ministério Público de segundo grau, pode transitar desde a mais absoluta imparcialidade até a mais acerba parcialidade, há também, caso a hipótese o exigir, que preparar o caminho de eventual recurso para as Instâncias Superiores.

Esse atuar dos Procuradores de Justiça surge concretamente através de intervenções por escrito (os conhecidos pareceres) ou orais, por ocasião das sessões dos órgãos fracionários dos Tribunais onde os feitos couberam distribuídos para julgamento. É bem verdade que a prática, ante nossa realidade pretoriana, tem recomendado a primeira forma de manifestação, embora não se despreze nem se tem ignorado a segunda. Assim, a manifestação ministerial no segundo grau, sempre em preservação de um dos dogmas mais sagrados do processo penal, e garantido pela Constituição da República, que é o princípio do contraditório (art. 5º, LV, CF), vem precedentemente à da defesa do acusado, seja observando preceitos de ordem processual, seja no atendimento de normas regimentais de procedimento, não vulnerando o devido processo legal (art. 5º, LIV e LV, CF), com o devido respeito aos que em contrário entendem, porquanto não cria desigualdade ou vantagem na posição processual, a atuação desencadeada.

No contexto de alinhavo, talvez ensejasse causa de vulneração à garantia fundamental mencionada o fato de a manifestação ministerial preceder imediatamente, sem oportunizar à defesa qualquer resposta, o julgamento do Tribunal. Isso, no entanto, não reflete a verdade, haja vista que nessa fase do processo, sempre, sob pena até de nulidade, existir ciência à defesa, que pode se dizer presente através de memoriais ou oralmente, ou, ainda, com ambos.

De sorte que, máximo respeito, ilógica a tentativa de supressão da atuação do Ministério Público, por seus agentes de segundo grau – diz-se, os Procuradores de Justiça –, em fase processual de trâmite perante a instância ad-quem.

*Raul Schaefer Filho é procurador de Justiça e Coordenador da Procuradoria de Justiça Criminal do Ministério Público de Santa Catarina


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