Por: Vinícius Leite Guimarães Sabella
Sumário: 1. A Sociedade 2. O Direito 3. A Justiça 4. A Pós-modernidade 5. O Contrato social 6. O Transindividualismo
1. A sociedade
A sociedade forma-se e desenvolve-se em razão de uma característica natural do homem: a necessidade de sociabilizar-se, que o impele a coexistir em grupo, exercitando a solidariedade.
Trata-se de motivação inata a todos os indivíduos de maneira generalizada, que se manifesta nos menores e primeiros agrupamentos, minimamente organizados, passíveis de serem apontados na história da humanidade.
É o caso, por exemplo, da sociedade formada por indivíduos constituintes de uma família e que, considerados biológica e antropologicamente em sua associação, e intento de perpetuarem-se, não manifestam o instinto e a irracionalidade da condição animal, mas sim a natural decorrência de um processo cognitivo que ocorre a partir do exercício volitivo e da percepção da indispensabilidade que têm um do outro, como forma a dar conseguimento à evolução de sua substância e mesmo como instrumento, sob a ótica metafísica, de que sua busca consubstancia-se em compreender a realidade e o mundo, ou ainda, ontologicamente, a natureza do ser.
Concebendo a sociedade como produto da condição natural humana é o pensamento aristotélico, para o qual "o homem é naturalmente um animal político".
Consentâneo com este entendimento é o pensamento de Cícero e Oreste Ranelletti, citados por Dalmo de Abreu Dallari, segundo os quais, respectivamente, "a primeira causa da agregação de uns homens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto de sociabilidade em todos inato a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum" e "...onde quer que se observe o homem, seja qual for a época, mesmo nas mais remotas a que se possa volver, o homem sempre é encontrado em estado de convivência e combinação com os outros, por mais rude e selvagem que possa ser na sua origem. O homem singular, completamente isolado e vivendo só, próximo aos seus semelhantes, mas sem nenhuma relação com eles, não se encontra na realidade da vida ...o homem é induzido fundamentalmente por uma necessidade natural, porque o associar-se com os outros seres humanos é para ele condição essencial de vida. Só em tais uniões e com o concurso dos outros é que o homem pode conseguir todos os meios necessários para satisfazer às suas necessidades e, portanto, conservar e melhorar a si mesmo, conseguindo atingir os fins de sua existência. Em suma, só na convivência e com a cooperação dos semelhantes o homem pode beneficiar-se das energias, dos conhecimentos, da produção e da experiência dos outros, acumuladas através de gerações, obtendo assim os meios necessários para que possa atingir os fins de sua existência, desenvolvendo todo o seu potencial de aperfeiçoamento, no campo intelectual, moral ou técnico".
2. O Direito
Estabelecido que o homem se associa em grupos naturalmente porque atende a um anseio interior, porém refletido, decorrente de sua racionalidade, é forçoso que este homem, ao ver-se imerso em núcleos de aglutinação humanos, perceba a necessidade de organizar-se de modo a permitir o convívio comum, sem sobressaltos e isento de insegurança, para que cada indivíduo integrante de seu grupo social desenvolva-se em todas as suas potencialidades e exercite suas vontades, usufruindo uma mínima sensação de confiabilidade de que seu espaço será respeitado, de que o valor de sua vida será tratado em igualdade com o valor da vida de outrem.
Cabe ao Direito instrumentalizar e dar consecução a este cenário. Não um Direito dogmático, concebido meramente como um sistema que faz sentido em si mesmo, que delimita por meio de um arcabouço de diretrizes comportamentais as ações humanas, escudado em premissas normativas inquestionáveis, absolutas e atemporais.
O Direito deve ser compreendido em face da complexidade do mundo contemporâneo. Um mundo cuja realidade se materializa na produção e difusão de conhecimentos de forma massificada, cujas relações sociais, em decorrência dos novos formatos comunicacionais, primam pela rapidez e transitoriedade.
José Ademir Campos Borges delineia o pensamento crítico-dialético que encontra comunhão com uma finalidade (dentre muitas) bastante adequada ao Direito: "a corrente crítico-dialética inspira-se na Escola de Frankfurt, movimento integrado por filósofos, sociólogos e intelectuais de concepção em sua maioria marxista, surgido na Alemanha na década de vinte. Críticos ferozes da alienação da sociedade industrial contemporânea, dominada pela tecnologia e pelo consumo desenfreado, os pensadores da Escola de Frankfurt não concebem o Direito como instrumento de dominação, como queria Marx, mas como instrumento hábil que, numa prática consciente, engajada, criativa e transformadora, tem compromisso com a realização da justiça e da inclusão social, e, bem assim, o papel preponderante de contribuir para o surgimento de uma nova sociedade iluminada, livre da 'eclipse da razão'".
Destarte, com a mudança dos paradigmas sociais, políticos e culturais decorrentes do mundo pós-moderno que induzem, inclusive, a se repensar a relação newtoniana tempo x espaço , o Direito deve ser estudado como um sistema aberto, tripartido e dinâmico.
Acerca da discussão sobre espaço fisicamente considerado, Willis Santiago Guerra Filho argumenta que, "o modo como o modo capitalista de produção econômica da sociedade reagiu às crises energéticas da década de 70 (73 e 79) acentuou aquela sua característica, expressa no clichê 'time is money', revelando o valor político e econômico do tempo, da velocidade, como superior ao espaço e aos bens materiais nele localizados...".
A reflexão sobre o Direito como sistema aberto se dá segundo a lição de Claus-Wilhelm Canaris, para quem "a abertura do sistema significa a incompletude e a provisoriedade do conhecimento científico. De facto, o jurista, como qualquer cientista, deve estar sempre preparado para por em causa o sistema até então elaborado e para o alargar ou modificar, com base numa melhor consideração. Cada sistema científico é, assim, tão só um projecto de sistema, que apenas exprime o estado dos conhecimentos do seu tempo por isso e necessariamente, ele não é nem definitivo nem fechado, enquanto, no domínio em causa, uma reelaboração científica e um progresso forem possíveis. Em consequência, nunca podem ser tarefas do sistema o fixar a ciência ou, até, o desenvolvimento do Direito num determinado estado, mas antes, apenas, o exprimir o quadro geral de todos os reconhecimentos do tempo, o garantir a sua concatenação entre si e, em especial, o facilitar a determinação dos efeitos reflexos que uma modificação (do conhecimento ou do objecto), num determinado ponto, tenha noutro, por força da regra da consequência interior. ...Contudo, ninguém iria afirmar que o fenômeno da abertura do sistema na jurisprudência se possa reconduzir, apenas, à provisoriedade do conhecimento científico. Aceitar que as referidas modificações do sistema respeitam, exclusivamente, a progressos de penetração científica na matéria jurídica seria pura utopia. Mas isso leva, naturalmente, à conclusão de que subjazem mudanças no sistema objectivo, isto é, na própria unidade da ordem jurídica, e de que ele, por isso, deve ser aberto".
Conferindo relevância à necessidade do estudo do fato, do valor e da norma, contidos na ciência jurídica, é a Teoria Tridimensional, segundo Miguel Reale, para quem "...a ciência do direito é uma ciência normativa, mas a norma deixa de ser simples juízo lógico, à maneira de Kelsen, para ter um conteúdo fático-valorativo...".
No que respeita ao aspecto dinâmico do Direito, mais uma vez nos valemos aqui de uma teoria extrajurídica, a Teoria dos Sistemas Dinâmicos Não Lineares, objeto de estudo, entre outros campos da ciência, da Matemática e da Física.
Entendemos que a sociedade é um sistema complexo, não linear e não determinista. Não pode a lei, por mais extensa e completa que busque ser, abarcar todos os fatos que ocorrem e que têm o homem como protagonista. Ademais, estes fatos são, em sua maioria, aleatórios e imprevisíveis, uma vez que o homem - agente do fato social - tem ações e reações de intensidade imponderável, até que ocorram, e sejam submetidas ao juízo de seus pares, ainda que pelo senso comum.
A fixação dogmática, apriorística e estática impede a realimentação temporalmente adequada, e juridicamente eficaz do Estado, que se dá pela evolução dos costumes e modificação da moral, o que, por sua vez leva ao naufrágio da Justiça, pois o sistema jurídico, ininterruptamente, recebe conteúdos informacionais que causam modificações substanciais na interpretação da própria norma.
Consoante este entendimento chegamos aos estudos sobre lacuna no ordenamento jurídico, desenvolvidos pela professora Regina Vera Villas Boas, segundo a qual "...o legislador não pode conhecer todos os fatos, comportamentos e conseqüentes conflitos que acontecem nas relações da sociedade, por mais atualizado, estudioso, eficiente e perspicaz que ele seja. Não pode, também, prever todas as situações conflitantes que surgirão futuramente, através da elaboração de normas. Dessa forma, e entendendo que o direito é dinâmico, e que trata de questões controvertidas, que envolvem situações normativas, axiológicas e fáticas, não é possível também que o ordenamento preveja todas as relações jurídicas presentes e futuras, com normas reguladoras de conduta".
Interessante contribuição para o estudo de um Direito efetivo que permita a realização da Justiça vem das lições de Boaventura de Souza Santos para quem a "...interpretação inovadora do direito substantivo passa pelo aumento dos poderes dos juízes na condução do processo".
Nesta linha, uma vez que em termos concretos a discussão converge para a efetividade do Direito, para o acesso ao aparato estatal e para a obtenção de Justiça, e sendo certo que a abrangência da lei sempre estará aquém da prospecção do agir humano, o homem - no caso o juiz - ganha importância ímpar para a solução justa dos litígios.
Assim, o que ensina a professora Regina Vera Villas Bôas, quando estuda a questão das lacunas no ordenamento jurídico: "...o magistrado ao colmatar as lacunas, considerando o seu poder de decisão e a sua ideologia não poderá nunca ultrapassar os limites autorizados pelo sistema jurídico, e nem tão pouco conflitar com o espírito deste. ...Não havendo norma que se aplique ao caso concreto, ou havendo, não seja adequada à realidade social, o magistrado deverá ter uma função ativa e criadora, adequando o direito, aos princípios de justiça...".
A proteção de um direito material faz-se pelo exercício do direito de ação, um direito subjetivo. Jean-Louis Bergel, em seus estudos, afirma que "...direitos subjetivos são prerrogativas atribuídas a indivíduos ou grupos de indivíduos, reconhecidas e protegidas pelo direito objetivo e que lhes conferem certos poderes que lhes permitem preservar seus interesses numa área reservada, impondo aos outros o respeito ao direito deles. Na ausência de interesse e de vontade do titular do direito, na ausência de proteção organizada pelo direito aos outros, os direitos subjetivos seriam só miragens. O que os caracteriza é o poder reconhecido aos indivíduos pelo direito objetivo, sob a proteção dos órgãos sociais".
Não concordamos com a afirmativa de que "...na ausência de proteção organizada pelo direito aos outros, os direitos subjetivos seriam só miragens...", como faz crer Bergel. Cremos que sempre que houver interesse, há motivo justificável para a atuação estatal no sentido de proteger este interesse. O Direito não "socorre" apenas a quem "tem direitos", mas também a quem tem interesses. Sem que nos alonguemos em justificativas filosófico-sociológicas para respaldar nossa posição, basta que compulsemos a Constituição Federal que, em seu art. 1º, dentre os fundamentos do Estado Democrático de Direito traz o princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, um indivíduo ou um grupo de indivíduos, uma vez que tenham interesse na preservação de um valor, de um bem ou de um objeto qualquer, sofrerão desrespeito fundamental caso o Estado lhes falte porque não os assiste protetivamente.
Ademais, no artigo 3º, ainda quando trata dos princípios fundamentais, reza o texto constitucional que o objetivo da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos. Desta forma, ainda que determinado interesse não tenha natureza de direito objetivo, material e formal, o Estado deverá atuar sob pena de afronta ao inciso XXXV do art. 5º que assevera que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", sendo certo que o termo 'direito' não deve ser compreendido, nesta passagem, em seu sentido estrito, mas segundo, também, a noção de "interesse".
O capítulo que contém o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional cuida de direitos e garantias. Estas últimas se referem à certeza de que o Estado assegura, por este princípio, a obrigação de atuar, que lhe é afeita, mesmo que não haja “... proteção organizada pelo Direito aos outros ...”, mas desde que haja interesse.
Quanto ao direito material, somos da opinião de que ele deva consubstanciar-se e materializar-se predominantemente em termos principiológicos, evitando-se sua manifestação exaustiva, em níveis normativos. A norma deve existir como corolário de um princípio, e desde que este não baste para o exercício hermenêutico com vista à realização de justiça, por meio da atuação estatal.
O Estado não existe para produzir leis indiscriminadamente, criando direitos materiais ficcionalmente ou sistematizando interesses naturais de modo a torná-los formalmente materiais, e a partir daí integrá-los ao patrimônio subjetivo do indivíduo. Uma atuação nesta linha resvala para a própria insegurança jurídica. Pior. Este cenário cria um paradoxo entre as necessidades individuais e sociais do indivíduo e a maneira do Estado (leia-se Administração Pública) atuar na organização da sociedade e resguardo de direitos, interesses e garantias.
O papel do Estado no que tange ao Direito é o de zelar para que a Justiça seja mantida ou restaurada, mister que ele pode (e deve) realizar valendo-se de princípios e normas genéricas, e estas, segundo entendemos, devem ser compreendidas segundo os estudos desenvolvidos por Humberto Ávila, para quem "normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos".
A partir de um princípio é possível construir-se todo um ordenamento jurídico. O Direito existe para "servir" ao homem, ou, como ensina Michel Villey, "...podemos observar que a arte jurídica pressupõe e se exerce num grupo social. Não existe direito, dikaion , senão no interior de um grupo social, de certos grupos em que se opera uma divisão. Não existe um direito de Robinson isolado na sua ilha".
Desta compreensão sistêmica que converge na questão do justo como valor primeiro e fundamental das situações jurídicas ocorrentes na sociedade, o uso do Direito como instrumento de realização e manutenção da Justiça não passa, necessariamente, pela "produção em escala industrial" de leis sob o argumento de que assim o Estado estaria em busca de seu fim.
O interregno entre a ocorrência do fato social, a valoração deste fato e seu fomento no seio da sociedade, culminando com a posterior adequação à norma há de ser um reflexo, uma consequência natural, jamais uma resposta ancorada na falsa noção de que legislar e produzir leis sejam soluções para as injustiças.
Vem dos professores Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, quando estudam o princípio da dignidade da pessoa humana, a lição sobre a relevância que o Direito adquire quando balizado pelo respeito ao referido princípio, e materializado pela efetividade que deste emana: "é tão importante esse princípio que a própria CF 1º III o coloca como um dos fundamentos da República. Esse princípio não é apenas uma arma de argumentação, ou uma tábua de salvação para a complementação de interpretações possíveis de normas postas. Ele é a razão de ser do Direito. Ele se bastaria sozinho para estruturar o sistema jurídico. Uma ciência que não se presta para prover a sociedade de tudo quanto é necessário para permitir o desenvolvimento integral do homem, que não se presta para colocar o sistema a favor da dignidade humana, que não se presta para servir ao homem, permitindo-lhe atingir seus anseios mais secretos, não se pode dizer Ciência do Direito. Os antigos já diziam que todo direito é constituído hominum causa... Comprometer-se com a dignidade do ser humano é comprometer-se com a sua vida e com sua liberdade. ...É o princípio fundamental do Direito. É o primeiro. O mais importante".
Forçoso e imprescindível pensar-se nas normas, que aclaram a extensão do agir humano, mas sem descuidar de que nasceram de fatos - ou em razão destes - socialmente estruturados e funcionais, ou seja, o fato social é o produto in natura de que se vale a norma para que possa existir, podendo-se afirmar que o fato social é a semente da norma.
Completando a tríade, tem-se o valor, elemento que confere importância - maior ou menor - aos fatos sociais, e aos objetos de interesse humano, suscetíveis de serem preservados ou restabelecidos.
Uma sociedade organizada, palco de incontáveis fatos sociais, quando materializa em normas gerais e abertas o substrato ético-social médio de seus agentes, decorrente de uma axiologia moral que, norteada por princípios basilares e superiores, estabelece os limites mínimos e máximos das relações entre os indivíduos e destes com os objetos de seu interesse, é uma sociedade tendente a realizar Justiça.
Respaldando este entendimento ensina Herbert L. A. Hart ser "...possível imaginar uma sociedade sem poder legislativo, tribunais ou funcionários de qualquer espécie. Na verdade, há muitos estudos de comunidades primitivas que não só sustentam que esta possibilidade ocorreu, mas descrevem em detalhe a vida de uma sociedade na qual o único meio de controlo social é a atitude geral do grupo para com os seus modos-padrão de comportamento, em termos daquilo que caracterizamos como regras de obrigação. Uma estrutura social deste tipo é freqüentemente descrita como uma estrutura baseada no costume".
Interessantes reflexões podem ser feitas a partir desta noção de "atitude geral do grupo", trazida por Hart, e das lições de Miguel Reale sobre a Crítica da Razão Prática de Emmanuel Kant, nos seguintes termos: "...entende Kant que há dados imediatos da consciência que nos evidenciam que o bem deve ser feito: são verdades de ordem prática, e não de ordem teorética. Põem-se no plano da consciência determinados imperativos de conduta que não admitem qualquer tergiversação. São imperativos categóricos aqueles que, de maneira imediata, prescrevem uma ação como sendo por si mesma objetivamente necessária, e não como simples meio de atingir um fim...".
Ana Lúcia Sabadell, trazendo a visão dogmático-positivista kelseana, aponta que: "...Kelsen elimina qualquer pergunta sobre as forças sociais que criam o direito. Para os adeptos do positivismo jurídico (ou juspositivismo) existem apenas as normas jurídicas, estabelecendo-se entre elas determinadas relações... O objeto da ciência jurídica é examinar como funciona o ordenamento jurídico. Como diz Kelsen, o direito é o conjunto de normas em vigor e o estudo das mesmas deve ser realizado sem nenhuma interferência sociológica, histórica ou política. Na opinião de Kelsen 'a jurisdicidade parece decorrer de valores internos ao discurso do direito, valores que a vontade política ou a utilidade social não podem substituir'".
O que resta da interpretação de Kelsen, se utilizado um raciocínio dinâmico e baseado em processo dialético, para entender o que seja o direito, é um tratamento unilateral e cientificista, pois descarta o sujeito cognoscente - o homem - da relação jurídica, construindo uma análise - que, à priori não deve excluí-lo - unicamente a partir do objeto, o que em outros termos trata-se de uma noção que já não merece prosperar na pós-modernidade, pois concebe o direito como um objeto qualquer a ser manuseado "em linha de montagem” e não como fenômeno social que deve ser sistematizado, estudado e aplicado multidisciplinarmente, e em conformidade com a dinâmica social e com o grau, nível e intensidade de informações que "alimentam" o sistema jurídico, dando prosseguimento ao infinito processo de modificação do direito pelo fato social e pelo valor que lhe impregna.
3. A Justiça
A Justiça é um valor que, mesmo tratado conceitualmente, o que permite a pluralidade de entendimentos, se estudada sistemicamente, leva-nos a compreender o fim primeiro e último do Direito.
Muitas são as concepções de Justiça, sem que se possa dizer que uma é mais acertada que outra. O que ocorre, caso necessária uma apreciação valorativa da noção de Justiça, é que cada uma foi produzida em um dado momento histórico, e concedendo relevância a diferentes aspectos da vida humana. E é sabido que os anseios humanos, as necessidades do homem e as circunstâncias dos grupos sociais são dinâmicos. A sociedade "navega o tempo" em razão proporcional à mudança dos valores, e assim se forma seu patrimônio ético que jamais é substituído ou transubstanciado, mas antes reelaborado.
Como enunciou Antoine-Laurent de Lavoisier, "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". E esta é uma máxima universal, transdisciplinar. A conduta humana modifica-se, e tal se dá em decorrência de influências exógenas, ou mesmo endógenas, que em sua raiz tiveram motivação externa, visto ser o homem criatura gregária que se instrui e se desenvolve a partir do que conhece, e que lhe é exterior.
Os valores e os juízos de apreciação dos valores, jamais são os mesmos por muito tempo, transformando-se de um em outro, e assim sucessivamente com o passar do tempo.
Ainda assim, mostram-se relevantes algumas noções da concepão de justo.
Para os sofistas "...a noção de justiça é relativizada, na medida em que seu conceito é igualado ao conceito de lei o que é o justo senão o que está na lei? O que está na lei é o que está dito pelo legislador, e é esse o começo, o meio e o fim de toda justiça. Nesse sentido, se a lei é relativa, se esvai com o tempo, se é modificada ou substituída por outra posterior, então com ela se encaminha também a justiça. ... Nada do que se pode dizer absoluto (imutável, perene, eterno, incontestável...) é aceito pela sofística".
Quanto aos sofistas, ensina o professor Gabriel Chalita que "...sua preocupação filosófica se voltava para o homem e a vida em sociedade ...Para os sofistas tudo deveria ser avaliado segundo os interesses do homem e de acordo com a forma como este vê a realidade social. ...as regras morais, as posições políticas e os relacionamentos sociais deveriam ser guiados conforme a conveniência individual. Para esse fim qualquer pessoa poderia se valer de um discurso convincente, mesmo que falso ou sem conteúdo. ...Segundo a sofística, o que importava para o ser humano era obter prazer com a satisfação de seus instintos, de seus desejos individuais. ...A sofística destruía os fundamentos de todo conhecimento, já que tudo seria relativo e os valores seriam subjetivos, assim como impedia o estabelecimento de um conjunto de normas de comportamento que garantissem os mesmos direitos para todos os cidadãos da polis".
Para Miguel Reale, a Justiça "...não é senão a expressão unitária e integrante dos valores todos de convivência, pressupõe o valor transcendental da pessoa humana, e representa, por sua vez, o pressuposto de toda a ordem jurídica. Essa compreensão histórico-social da Justiça leva-nos a identificá-la com o bem comum, dando, porém, a este termo sentido diverso do que lhe conferem os que atentam mais para os elementos de 'estrutura', de forma abstrata e estática, sem reconhecerem que o bem comum só pode ser concebido, concretamente, como um processo incessante de composição de valorações e de interesses, tendo como base ou fulcro o valor condicionante da liberdade espiritual, a pessoa como fonte constitutiva da experiência ético-jurídica".
Em Hans Kelsen, "a Justiça é, portanto, a qualidade de uma conduta humana específica, de uma conduta que consiste no tratamento dado a outros homens. O juízo segundo o qual uma tal conduta é justa ou injusta representa uma apreciação, uma valoração da conduta".
Afigura-se conveniente expor o pensamento de Alf Ross, um dos pilares do realismo jurídico, e cujas raízes encontram-se nos estudos delineados pelos integrantes do Círculo de Viena: "se diz-se que a exigência de igualdade não deve ser tomada em sentido formal, mas que o fato decisivo é se a limitação ocorre de acordo com características distintivas que estejam bem fundadas, que sejam razoáveis ou justas, isto quer dizer que a idéia de igualdade desvanece, para ser substituída por uma referência ao que se considera justo segundo uma opinião subjetiva e emocional. Tal princípio não é um princípio autêntico, mas o abandono de toda tentativa de análise racional".
Claus-Wilhelm Canaris quando estuda o que chama de postulado da Justiça afirma: "...a ordem interior e a unidade do Direito são bem mais do que pressupostos da natureza cientifica da jurisprudência e do que postulados da metodologia elas pertencem, antes, às mais fundamentais exigências ético-jurídicas e radicam, por fim, na própria idéia de Direito. Assim, a exigência de ordem resulta directamente do reconhecido postulado da justiça, de tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida da sua diferença...".
Quanto à justiça tomada como manifestação da equidade, elucidativo é o que traz Karl Larenz, citando Heinrich Henkel, para quem se "...caracteriza a ideia de justiça como princípio aberto com um conteúdo injuntivo normativo. Começa por tomá-la em ambos os significados principais que lhe teriam desde sempre sido atribuídos: como requisito do suum cuique e como princípio do igual tratamento do que é (essencialmente) igual. Em ambos os significados ela não permite por si só qualquer solução de problemas jurídicos concretos, qualquer resolução de um caso concreto. O que é devido a cada um como seu permanece assim em aberto, tal como a questão de quais as situações de facto que são essencialmente idênticas e quais as que são essencialmente distintas, e qual o tratamento que é em cada caso o apropriado".
Tercio Sampaio Ferraz Jr. em discurso lógico valendo-se de elementos figurativos ensina, quando trata da Justiça e do princípio da igualdade que, "...o princípio da igualdade imprime à justiça um caráter de racionalidade que preside permanentemente e constantemente o sentido do jogo sem fim do direito. O direito é um jogo de igualdades e desigualdades. No correr do jogo, porém, as 'jogadas' ou 'atos de jogar' são decodificações, fortes ou fracas, que admitem variedades e composições nem sempre universalizáveis no tempo e no espaço. Por isso, se a justiça, em seu aspecto formal, exige igualdade proporcional e exclui a desigualdade desproporcional como princípio estrutural sem o qual não há sentido no jogo jurídico, em seu aspecto material denuncia-se um campo de probabilidades e possibilidades que tornam a justiça o problema que dá também sentido ao jogo. Em suma, a justiça é ao mesmo tempo o princípio racional do sentido do jogo jurídico e seu problema significativo permanente. Ao criar normas, interpretá-las, fazê-las cumprir, a justiça (em seu aspecto material) é o problema que deve ser enfrentado, como num jogo de futebol, em que o objetivo é atingir o gol. ...a produção, a aplicação e a observância do direito estão delimitadas pelo princípio formal da igualdade proporcional a partir do qual o jogo se identifica como jurídico: a justiça formal não pertence ao jogo, mas é o limite do jogo. Se dentro desses limites, porém, o jogo é justo ou injusto, isto é problema da justiça material, de seu princípios éticos e de sua moralidade (material)".
John Rawls ao explicar o eixo central de sua teoria da justiça afirma que, "...na justiça como equidade a posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. ...Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes ...Uma vez que todos estão numa situação semelhante e ninguém pode designar princípios para favorecer sua condição particular, os princípios da justiça são o resultado de um consenso ou ajuste eqüitativo. ...Uma das principais tarefas é a de determinar que princípios da justiça seriam escolhidos na posição original. ...As pessoas na situação inicial escolheriam dois princípios bastantes diferentes: o primeiro exige a igualdade na atribuição de deveres e direitos básicos, enquanto o segundo afirma que desigualdades de riqueza e autoridade, são justas apenas se resultam em benefícios compensatórios para cada um, e particularmente para membros menos favorecidos da sociedade".
O direito, ao buscar a Justiça como fim, deve "vestir-se" de justo como meio. Parece-nos que nesta linha a lição definitiva venha de Aristóteles para quem "...a Justiça ...é virtude perfeita...", qualificando-se medianamente entre o excesso e a escassez. Ora, se o que é justo está no meio, significa que o que é justo cria duas grandezas iguais e convergentes, e uma vez que não se pode pensar em Justiça de maneira etérea, sem particularizá-la a um caso concreto, pode-se afirmar que a Justiça e a equidade ou igualdade têm parentesco ontológico mais próximo do que se possa pensar. Assim, a equidade é a Justiça aplicada ao caso concreto.
A idéia de convergência que trazemos no que respeita à justiça é uma construção que emerge de valores individuais, assim considerados, ou seja, toma-se a criatura humana, continente de experiências pessoais específicas e particularizadas, o que sugere uma pluralidade de vontades, expectativas e interesses que se acumulam ou substituem-se ao longo do tempo, levando-se em conta o gênero e o grau do entendimento de cada indivíduo, de tal forma que qualquer circunstância da vida social deva ser estudada - no que respeita à relação entre um ou mais indivíduos - como um constante exercício em que alguém "recua" enquanto outro "avança". E esta dinâmica - entre o avançar e recuar - mantém protegido o círculo de interesses e direitos que compete a cada um.
Analogamente, considere-se a Lei Física da Impenetrabilidade enunciada nos seguintes termos: "dois corpos não podem ocupar, ao mesmo tempo o mesmo lugar no espaço".
Não se trata de estabelecer, entre duas idéias, similitude maior que possam ter, porém, a Física, bem como a Matemática - que lhe é umbilicalmente afeita - quando confrontadas com o direito, têm uma afinidade essencial indiscutível, qual seja, ambas são maneiras de se exteriorizar o conhecimento, mesmo partindo de epistemologias distintas, mas que por meio da análise da realidade fornecem respostas, e, circunstancialmente, verdades para o homem.
Assim, pode-se afirmar comparativamente: se uma cadeira não pode, ao mesmo tempo em que uma mesa, ocupar o mesmo lugar no espaço, não haverá entre os indivíduos equidade, se houver desequilíbrio na relação que os une. A idéia de convergência, de natureza dinâmica, não se refere a um antagonismo dialético entre o interesse comum a dois ou mais indivíduos. Não se trata de qualificar estes interesses como rivais, por estarem "em movimento". Esta "rivalidade" apenas ocorre quando surge um conflito entre esses interesses.
Como ser gregário que é, o homem, ao estabelecer o contrato social, o faz, entre outras razões, porque percebe que a existência organizada em grupo, e segundo diretrizes comuns a todos, permite-lhe um escopo superior tendo em vista que cada criatura tem uma habilidade.
Ora, a justiça ou a equidade substancial e idealmente manifesta - sem a incidência do conflito de interesses - ocorre, por exemplo, quando dois indivíduos, o proprietário de um terreno e um engenheiro, acordando suas vontades em um negócio jurídico decidem construir uma casa de veraneio para suas famílias gozarem férias.
Essa convergência - para o justo, que é o objeto do acordo, manifestado pela autonomia privada de cada um - ocorre em um ponto perfeito, em que cada um cumpriu o que lhe cabia no contrato. Qualquer inadimplemento de cláusula ou condição faz cindir o justo, logo, interrompe a relação de equidade.
4. A pós-modernidade
O mundo contemporâneo caracteriza-se pela noção do agigantamento, por feições superlativas: a indústria produz bens em larga escala, o ser humano consome indiscriminadamente e a despeito de refletir sobre suas necessidades, o que já levou o filósofo Jean Braudillard a afirmar que "todo o discurso sobre as necessidades assenta numa antropologia ingénua: a da propensão natural para a felicidade. Inscrita em caracteres de fogo por detrás da menor publicidade para as Canárias ou para os sais de banho, a felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da salvação...".
Esta concepção sugerida por Braudrillard remete-nos a Arthur Schopenhauer, e seu conhecido silogismo: "Viver é querer e como querer é sofrer viver é essencialmente dor". É a dor da busca constante, da insatisfação com o que se tem, em face do que se poderia ter.
Nesta linha é nosso entendimento sobre a panacéia do consumo, e que julgamos ser, de todas as raízes que se aprofundam na pós-modernidade, das mais perversas e danosas, uma das principais causadoras das problemáticas que se avolumam, gerando efeitos deletérios no modus vivendi humano.
A humanidade, julgando fazer uma catarse de suas próprias limitações espaciais e temporais, desenvolveu um modelo de produção que acabou por contaminar toda a estrutura social.
É o caso do meio ambiente natural, que sob uma alegada - e deturpada - visão antropocêntrica tornou-se a vítima primeira e imediata do consumismo desenfreado. Suas riquezas são usurpadas indiscriminadamente, sem a preocupação com a importância que delas advém para o momento presente e para as gerações futuras.
Por outro lado, o chamado meio ambiente artificial, e aqui nos referimos ao espaço urbano aberto, é antes uma armadilha social que um conceito organizacional para a vida em grupo. Não obstante os equipamentos públicos e as edificações existam em consonância a uma necessidade que responde às características da vida moderna, sua materialização física, e visível, é mais um aspecto que coloca em descompasso as idéias do "coexistir" possível, e do "coexistir" ideal. Não nos referimos a uma axiologia que possa contrastar a realidade presente com políticas públicas postas em prática pela Administração. Trata-se de uma equação que tem uma constante e uma variável: o limite de crescimento estrutural e funcional da urbis e o imponderável crescimento populacional, ou de consumidores, segundo o entendimento hodierno.
Da mesma forma que atualmente países são chamados "economias" o que revela um distanciamento do entendimento geopolítico e mesmo constitucional dessa expressão, alcançando-se uma visão impessoal que coloca no mesmo patamar as nações e os conceitos de mercado e produção, também os indivíduos já não são considerados pessoas, mas consumidores.
Opor-se a uma idéia que se difunde a passos largos e que é aceita e desenvolvida pela quase totalidade do planeta não é o caminho para a discussão desse problema, mesmo porque os fenômenos que se operam em razão da cultura de massa, tronco originário do desvirtuamento da condição humana de pessoa para consumidor, ocorrem, na linha do que estudou o psicanalista Erich Fromm , ou seja, no âmbito do inconsciente social.
Com a difusão informacional pelo senso comum, ausente, assim, de rigor metodológico e sem profundidade, bem como pelo recrudescimento e verticalização das desigualdades sociais que se apresentam como mais uma característica da pós-modernidade, justamente em razão da hierarquização das “economias” e do potencial consumerista de seus integrantes, que acabam se dividindo entre grupos com acesso a bens de consumo e grupos excluídos desse acesso, também se esvai a credibilidade no Estado.
Não há como se debater contra uma cultura que ganha espaço e que é incorporada e difundida por seus destinatários, quando o cenário de sua difusão é a quase totalidade do globo terrestre, e sua apresentação se faz por feições de realização, sucesso e felicidade.
Valores não são combatidos, e sim, como já dito, substituídos, mediante um processo longo e constante de incorporação de outros valores.
A sucessão fenomênica no mundo contemporâneo leva-nos a identificar características bastante peculiares aos novos tempos que suscitam a formação desses novos valores, justamente porque compõem o campo do existir humano: uma constante revolução e evolução das tecnologias grandes centros urbanos em todas as partes do mundo têm basicamente as mesmas características demográficas , sociais e econômicas grandes conglomerados empresariais com poder maior do que muitos Estados aglutinação dos países em blocos comerciais modificação dos paradigmas comunicacionais quanto à velocidade e forma fusão mundial de referências culturais com conseqüente formação de uma cultura de massa descaracterizada e ausente de qualquer identidade nacional. Este é o panorama que podemos nomear - na esteira do entendimento de Jürgen Habermas e Jean-Francois Lyotard - pós-moderno, em referência à roupagem que a sociedade apresenta contemporaneamente.
A sociedade pós-moderna é, marcadamente, construída nos alicerces da cultura de massa e, ao contrário de produzir a qualidade, a velocidade do processo informacional que a caracteriza, busca e promove preceitos de multiplicidade sócio-cultural que, não obstante o caráter plural, não constituem um processo cognoscitivo aglutinador. Ao contrário, a velocidade da formação do conhecimento e da transmissão da informação cria uma realidade perversa, fragmentada, que prima pela ultra-especialização das atividades laborais humanas, o que, consequentemente, perpetua uma compreensão superficial do mundo real.
Ademais, uma vez que o processo cognoscitivo ocorre, majoritariamente, sem a referência espacial, em função do advento dos meios de comunicação de massa que dispensam a locomoção - em especial a internet - opera-se um fenômeno historicamente singular: os homens, individualmente, e mesmo os grupos sociais passam a se desligar da noção de Estado, subvertem o conceito de território em uma compreensão contingente, que se amolda em paradigmas descartáveis e incongruentes com a feição gregária da psique humana.
Em linhas gerais, informações são "apanhadas" quando não "incutidas" no aparelho psico-social humano. Tal processo se dá aceleradamente, independente da relação espaço/tempo, impossibilitando reflexões analíticas e valoração de modo gradativo.
Uma interessante caracterização do mundo pós-moderno é feita por Paul Virilio: "...não há mais revolução industrial e sim revolução dromocrática , não há mais democracia e sim dromocracia, não há mais estratégia, e sim dromologia. (...) É a velocidade como natureza do progresso dromológico que arruína o progresso, é a permanência da guerra do Tempo que cria a paz total, a paz da inação. O homem ocidental pareceu superior e dominante apesar de uma demografia pouco numerosa porque pareceu mais rápido. (...) Com a realização de um progresso dromocrático, a humanidade vai deixar de ser plural. Para cair na situação de fato ela tenderá a se cindir exclusivamente em povos esperançosos (a quem é permitido esperar pelo amanhã, pelo futuro: a velocidade que eles capitalizam dando-lhes acesso ao possível, isto é, ao projeto, à decisão, ao infinito...) e povos desesperançosos, imobilizados pela inferioridade de seus veículos técnicos, vivendo e subsistindo num mundo finito".
O ser humano segundo a lógica civilizacional contemporânea deixa de ser o fim do sistema, e passa a ser um simples instrumento, um meio, passível de doutrinação ou, quando necessário, suscetível de reposição, para que núcleos econômicos estratificados de poder, dele se valham com vistas à obtenção de sua finalidade, o lucro. Da mesma forma que países já não recebem tal nomenclatura, passando a serem tratados por economias, os indivíduos também já não o são, incorporando, desde já o vocativo consumidor, como designativo de sua condição existencial.
Na pós-modernidade o valor do indivíduo é reflexo de seu status de consumidor, seja de bens, o que nos remete para uma relação jurídica de consumo, seja de objetos (tratando aqui "objetos" como vetores ideológicos, informacionais ou cognoscitivos direcionados ao indivíduo, o que em última análise aponta para a noção de "consumidor" de um ideal, de uma informação ou de um conhecimento, e por consequência restabelece a importância jurídica do conceito).
Aliás, sobre o consumo na sociedade contemporânea são bastante interessantes as reflexões de Baudrillard: "se a sociedade de consumo já não produz mitos é porque ela constitui o seu próprio mito. Em vez do Diabo que trazia Oiro e a Riqueza (pelo preço da alma) surgiu a Abundância pura e simples. Em vez do pacto com o Diabo, o contrato de Abundância. Por outro lado, assim como o aspecto mais diabólico do Diabo nunca foi existir, mas sugerir que existe, também a Abundância não existe, basta-lhe, porém, fazer crer que existe, para se transformar em eficaz. O consumo constitui um mito. Isto é, revela-se como palavra da sociedade contemporânea sobre si mesma é a maneira como a nossa sociedade se fala. De certa maneira, a única realidade objectiva do consumo é a ideia do consumo, a configuração reflexiva e discursiva, indefinidamente retomada pelo discurso quotidiano e pelo discurso intelectual, que acabou por adquirir a força de sentido comum".
5. O contrato social na pós-modernidade
Vejamos o comprometimento jurídico-sociológico deste novo perfil de Estado (economia) e de indivíduo (consumidor) quando tratamos de um dos cânones da Ciência Política e da Teoria Geral do Estado no que respeita à sociedade , que é o contratualismo.
Para Thomas Hobbes, o Estado é "uma pessoa de cujos atos se constitui em autora uma grande multidão, mediante pactos recíprocos de seus membros, com o fim de que essa pessoa possa empregar a força e os meios de todos, como julgar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comuns".
Segundo Ana Lúcia Sabadell, "esta é a primeira teoria que afirma a superioridade do direito positivo perante o direito natural. ... o conteúdo do direito é estabelecido por uma vontade política e as normas são respeitadas, porque aquele que as ordena possui também o poder de coação".
Além de Hobbes é pertinente o registro da visão contratualista de Jean-Jacques Rousseau. Seu pensamento é permeado pela crença na igualdade entre os indivíduos, crença esta que semeou a noção de Estado como produto final da síntese da vontade popular que a despeito da forma e do conteúdo de sua manifestação busca em primeira e última instância a preservação social, a manutenção equilibrada e uniforme do grupo social. É inconteste a manifestação deste ideário na Revolução Francesa, na Constituição Americana e na quase totalidade das Cartas Constitucionais que têm como fundamento do Estado os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. A Constituição brasileira, em seu art. 5º, caput, é exemplo claro do que afirmamos: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade...".
A sociedade organizada segundo a concepção de Estado norteia-se pelo seguinte ditame: estabelecer e perpetuar o bem comum para o homem, e pelo homem, ou seja, como é cediço, o Estado não é um fim em si mesmo, ele existe para o pleno desenvolvimento do homem, para que os distúrbios, uma vez detectados e equacionados, amoldem-se em dinâmicas sociais tendentes a permitir às sociedades o desenvolvimento sistemático e contínuo.
O bem comum é um conceito etéreo, impregnado de carga axiológica, e como tal suscetível de modificação. Ele acompanha a facticidade social em toda sua extensão, e auxilia a promoção da mudança, o que se perfaz em uma constante dialética, tendo por sujeito destinatário o cidadão.
O homem é o fim último e primeiro do Estado conseqüentemente, para a promoção do bem comum, cada indivíduo purgando-se do que há de ilimitado em seu arbítrio, declina, em face do Estado, de uma parcela de sua liberdade, que ancestralmente, em condição primitiva, é uma exteriorização natural da personalidade por conta das necessidades que se apresentam, para que este ente zele por ele, proteja-o, supra suas necessidades, organize sua convivência com outros indivíduos. Enfim, para que o Estado tenha razão de existir.
Na pós-modernidade um dos signatários do contrato social (o indivíduo, ou ainda a coletividade) ao delegar poderes ao outro (o Estado), em razão das distorções criadas pela força do capital, será administrado e cuidado pela iniciativa privada (megacorporações, grandes conglomerados econômicos). Caberá a um terceiro a realização do bem comum. O amparo ideológico para tanto se chama doutrina do Estado-mínimo, pensamento de motivação liberal apregoado como indissociável e impreterível à consecução efetiva dos valores capitalistas.
Porém, a finalidade da iniciativa privada é algo diverso da finalidade do Estado. Enquanto este foi destinatário de parcelas de liberdades individuais para a consecução do bem comum - e é na síntese destas liberdades que se forma o conceito de coletividade, genericamente considerado, e tratado imparcialmente - aquela tem por fim precípuo o lucro, e debruça-se na constante tarefa de buscá-lo e obtê-lo, propósito que realiza conferindo ao indivíduo a condição de meio para seu alcance, e por outro lado, por ser meramente utilitarista em seus fins, este terceiro trabalhará à revelia dos grupos sociais que não interessam ao seu projeto, criando, assim, políticas sectárias e categorizações assimétricas.
Neste contexto, ganham força as organizações não governamentais, integrantes do chamado Terceiro Setor que, atuando em paralelo ao Estado e representando interesses que se difundem pela sociedade têm por fim equalizar a dialética fenomênico-consequencial de que tratamos e que existe justamente porque os sistemas e subsistemas sociais tendem a repetir-se em sua estrutura e função.
Esta reestruturação de papéis e funções dos agentes sociais, mediatamente alicerçada em um modelo organizacional voltado para o acúmulo e multiplicação de riquezas, em detrimento do indivíduo, cria uma tendência bastante acentuada de distanciamento da idéia de realização de Justiça, pois desconsidera a razão de existir do Estado. É a falência do modelo organizacional até então conhecido.
6. O transindividualismo
Há uma dialética crescente e ininterrupta entre os fenômenos que surgem da convivência social e as conseqüências destes fenômenos. O resultado desta dialética é a causa da complexidade que incorpora e gera toda a problemática das relações sociais. No entanto o direito e o conhecimento, de modo geral, desenvolvem-se, apesar e em decorrência desta complexidade.
A salutar sobrevivência da sociedade depende de regramentos principiológicos que permitam aos indivíduos conviverem de forma pacífica ou, se não, quando materializado o conflito, e mesmo na iminência da convulsão social, que ocorre em razão dos caminhos tomados pelos indivíduos, e que são delineados pelos fenômenos sócio-temporais, permitam restaurar o equilíbrio nas relações.
Ao direito, resta uma atuação protetiva e restauradora, buscando resguardar a coletividade, enquanto vislumbra o indivíduo, ou seja, mediante um processo que instrumentaliza ações tendentes a realizar justiça de maneira eficaz, célere e de efetividade transindividual, o que não é senão o entendimento da noção de Justiça segundo uma ótica sistêmica, tendo em vista que o "querer" individual jamais sucumbirá ao "querer" coletivo como se proposições silogísticas fossem, justamente porque ambos não se caracterizam pela diversidade ou relevância apriorística de um em face do outro, ou ainda, em outra hipótese, como conteúdo e continente, respectivamente, mas antes como emanações subjetivas e circunstanciais dos agentes do fato social, que balizadas pelos valores sociais hão de permitir ao operador do direito a delimitação do justo.
Temos, no transindividualismo, um fenômeno que não é novo, haja vista que a importância da proteção coletiva não é uma ficção jurídica, mas uma necessidade que acompanha a humanidade desde as mais remotas épocas. A novidade, então, não se encontra na gênese do fenômeno, mas no campo processual do direito, nos instrumentos jurídicos, disponíveis à sociedade, que passa a ter ao seu alcance, a partir das últimas décadas do século XX, formas de proteção jurídica coletivas.
Escrevendo a respeito do transindividualismo, o grande mestre Hugo Nigro Mazzilli afirma que "situados numa posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, existem os interesses transindividuais (também chamados de interesses coletivos, em sentido lato), os quais são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas (como condôminos de um edifício, os sócios de uma empresa, os membros de uma equipe esportiva, os empregados do mesmo patrão). São interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não chegam propriamente a constituir interesse público. ... Sob o aspecto processual, o que caracteriza os interesses transindividuais, ou de grupo, não é apenas, porém, o fato de serem compartilhados por diversos titulares individuais reunidos pela mesma relação jurídica ou fática, mas, mais do que isso, é a circunstância de que a ordem jurídica reconhece a necessidade de que o acesso individual dos lesados à Justiça seja substituído por um processo coletivo, que não apenas deve ser apto a evitar decisões contraditórias como ainda deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido de uma só vez, em proveito de todo o grupo lesado".
Por sua vez, Celso Antonio Pacheco Fiorillo quando cuida do fenômeno, e do aspecto da indivisibilidade que lhe é conexo, assevera tratar-se de interesses "que transcendem o indivíduo, ultrapassando o limite da esfera de direitos e obrigações de cunho individual. ...O direito difuso possui a natureza de ser indivisível. Não há como cindi-lo. Trata-se de um objeto que, ao mesmo tempo, a todos pertence, mas ninguém em específico o possui".
Um Direito ideologicamente transindividual permite a consideração do uno e o alcançamento do coletivo, com interpretação e aplicação mais abertas, tendentes a aceitarem que o formalismo é antes um limitador ao acesso à Justiça que um mecanismo de obtenção da segurança jurídica.
Cappelletti advertia, "Não cairemos na rede do juspositivismo dogmático, segundo o qual deveremos primeiro procurar nos 'textos' (ordinários ou constitucionais) a solução e após atender o surgimento de um fenômeno ou acontecimento de 'colocar' no texto. Nossa interpretação não parte dos textos, mas dos fenômenos da realidade. ...acreditamos que também a interpretação do jurista deva esforçar-se por ser sobretudo uma realística adaequatio intellectus ad rem, ao invés de uma absurda adaequatio rei ad intellectum".
Este é o desafio jurídico da pós-modernidade: o aprofundamento do estudo sobre o transindividualismo, suas características materiais e processuais, seus efeitos e os diversos enfoques que tem, levando-se em conta a pluralidade de interesses e direitos envolvidos na problemática do mundo contemporâneo, e a necessidade de se reconstruir a identidade humana.
É imprescindível que o direito se desenvolva de modo interdisciplinar, tanto na Academia quanto no que respeita à sua aplicação prática, para a solução da problemática jurídica da pós-modernidade, buscando incorporar ao seu cabedal elementos colhidos em seara diversa. Eis o verdadeiro direito em formação, que acompanha o fato social, e se modifica valorativamente. Esta é uma mudança que passa por uma reestruturação paradigmática, por uma revolução de valores, pelo desenvolvimento de uma nova maneira de formação do conhecimento, aliados à noção do coletivo que, mais do que conter a noção axiológica da pluralidade encerra, como grandeza, a idéia da atemporalidade e da indeterminação dos sujeitos que, considerados transindividualmente, são o fim primeiro e último do Estado.
*Vinícius Leite Guimarães Sabella é advogado e Mestrando em Direitos Difusos e Coletivos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.