Por: Fernando Capez
Recentemente, um episódio envolvendo a prisão de personalidades públicas e particulares, em operação deflagrada pela Polícia Federal (denominada Satiagraha), e concomitantemente acompanhada pela mídia televisiva, reacendeu o debate em torno da legitimidade do uso de algemas.
A discussão acerca do emprego de algemas é bastante calorosa, por envolver a colisão de interesses fundamentais para a sociedade, o que dificulta a chegada a um consenso sobre o tema.
De um lado, deparamo-nos com o comando constitucional que determina ser a segurança pública dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio através dos órgãos policiais (CF, art. 144), de outro lado, do Texto Constitucional emanam princípios de enorme magnitude para a estrutura democrática, tais como o da dignidade humana e presunção de inocência, os quais não podem ser sobrepujados quando o Estado exerce a atividade policial.
Quando a Constituição da República preceitua ser dever do Estado a segurança pública, a este devem ser assegurados os meios que garantam tal mister, estando, portanto, os órgãos policiais legitimados a empregar os instrumentos necessários para tanto, como a arma de fogo e o uso de algemas, por exemplo.
O emprego de algemas, portanto, representa importante instrumento na atuação prática policial, uma vez que possui tríplice função: proteger a autoridade contra a reação do preso, garantir a ordem pública ao obstaculizar a fuga do preso, e até mesmo tutelar a integridade física do próprio preso, a qual poderia ser colocada em risco com a sua posterior captura pelos policiais em caso de fuga.
Muito embora essa tríplice função garanta a segurança pública e individual, tal instrumento deve ser utilizado com reservas, pois, se desviado de sua finalidade, pode constituir drástica medida, com caráter punitivo, vexatório, ou seja, nefasto meio de execração pública, configurando grave atentado ao princípio constitucional da dignidade humana.
Nisso reside o ponto nevrálgico da questão: A utilização de algemas constitui um consectário natural de toda e qualquer prisão? Caso não, em que situações a autoridade pública estaria autorizada a empregá-las? Haveria legislação regulando a matéria?
Passa-se, assim, à análise da legislação pátria.
A Lei de Execução Penal, em seu art. 199, reza que o emprego de algema seja regulamentado por decreto federal. Passados 24 anos desde a edição da referida Lei, que ocorreu no ano de 1984, anterior, portanto, à promulgação do próprio Texto Constitucional de 1988, nada aconteceu. Assim, as regras para sua utilização passaram a ser inferidas, a partir dos institutos em vigor.
O Código de Processo Penal, em seu art. 284, embora não mencione a palavra "algema", dispõe que "não será permitido o uso de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso", sinalizando com as hipóteses em que aquela poderá ser usada. Dessa maneira, só, excepcionalmente, quando realmente necessário o uso de força, é que a algema poderá ser utilizada, seja para impedir fuga, seja para conter os atos de violência perpetrados pela pessoa que está sendo presa. No mesmo sentido, o art. 292 do CPP, que, ao tratar da prisão em flagrante, permite o emprego dos meios necessários, em caso de resistência. O parágrafo 3º, do art. 474, alterado pela Lei n. 11.698/2008, por sua vez, preceitua no sentido de que: "Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes". Da mesma forma, o art. 234, §1º, do Código de Processo Penal Militar prevê que "o emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou agressão da parte do preso". Finalmente, o art. 10 da Lei n. 9.537/97 prega que: "O Comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas, da embarcação e da carga transportada, pode: III – ordenar a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga". Por derradeiro, em todos esses dispositivos legais tem-se presente um elemento comum: a utilização desse instrumento como medida extrema, portanto, excepcional, somente podendo se dar nas seguintes hipóteses: (a) impedir ou prevenir a fuga, desde que haja fundada suspeita ou receio, (b) evitar agressão do preso contra os próprios policiais, terceiros ou contra si mesmo.
Percebe-se, por conseguinte, que, incumbirá à própria autoridade avaliar as condições concretas que justifiquem ou não o seu emprego, isto é, quando tal instrumento consistirá em meio necessário para impedir a fuga do preso ou conter a sua violência. Nesse processo, a razoabilidade, consagrada no art. 111 da Constituição Estadual, constitui o grande vetor do policial contra os abusos, as arbitrariedades na utilização da algema.
Sucede, no entanto, que, em algumas situações, tem-se lançado mão das algemas de forma abusiva, com nítida intenção de execrar publicamente o preso, de constranger, de expô-lo vexatoriamente, ferindo gravemente os princípios da dignidade humana, proporcionalidade e da presunção de inocência.
Na verdade, a mídia televisiva, com o escopo de demonstrar a eficiência da atuação policial, tem promovido um verdadeiro espetáculo envolvendo a prisão de personalidades de destaque no setor público ou privado, geralmente, autores de crimes do colarinho branco, os quais são algemados sob os seus holofotes, de forma humilhante, fato este que acabou inflamando os ânimos de uma parcela da sociedade, a qual passou a propugnar a ilegitimidade do uso de algemas.
Desse modo, por conta desses exageros, aquilo que sempre representou um legítimo instrumento para a preservação da ordem e segurança pública, tornou-se objeto de profundo questionamento pela sociedade.
Ao defender a ilegitimidade do uso de algemas, uma parcela significativa da sociedade esqueceu-se dos policiais, dos magistrados, representantes do Ministério Público, advogados que, na sua vida prática, se deparam com os presos, os quais, sem esses artefatos, representam grave perigo para a vida e integridade física de tais indivíduos e para a população em geral.
A discussão, portanto, deixa de ter um tom meramente acadêmico e passa a surtir efeitos concretos na vida de diversas pessoas.
O Supremo Tribunal Federal, nesse contexto, acabou por editar, no dia 7 de agosto, durante o julgamento do Habeas Corpus (HC) 91952, a Súmula Vinculante n. 11, segundo a qual: "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou das autoridades e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado".
Ocorre que, no intuito de pôr fim à celeuma, quanto à regulamentação do uso de algemas, o Supremo Tribunal Federal acabou criando nova polêmica.
Vale, primeiramente, deixar consignado que a mencionada Súmula longe está de resolver os problemas relacionados aos critérios para o uso de algemas, na medida em que, a sua primeira parte constitui mero reflexo dos dispositivos já existentes em nossa legislação, deixando apenas claro que o emprego desse instrumento não é um consectário natural obrigatório que integra o procedimento de toda e qualquer prisão, configurando, na verdade, um artefato acessório a ser utilizado quando justificado.
Diante disso, muito embora a edição da Súmula vise garantir a excepcionalidade da utilização de algemas, na prática, dificilmente, lograr-se-á a segurança jurídica almejada, pois as situações nelas descritas conferem uma certa margem de discricionariedade à autoridade policial, a fim de que esta avalie nas condições concretas a necessidade do seu emprego. Basta verificar que se admite o seu uso na hipótese de receio de fuga ou de perigo para a integridade física. Ora, a expressão "fundado receio" contém certa subjetividade, e não há como subtrair do policial essa avaliação acerca da conveniência ou oportunidade do ato. Tampouco é possível mediante lei ou súmula vinculante exaurir numa formula jurídica rígida e fechada todas as hipóteses em que é admissível o emprego de algemas.
Para tanto, cumpre lançar como exemplo o Projeto de Lei n.º 185/2004 de 15/06/2004, de autoria do Senador Demóstenes Torres, cujo art. 2º preconiza que as algemas somente poderão ser empregadas nos seguintes casos: I - durante o deslocamento do preso, quando oferecer resistência ou houver fundado receio de tentativa de fuga, II - quando o preso em flagrante delito oferecer resistência ou tentar fugir, III - durante audiência perante autoridade judiciária ou administrativa, se houver fundado receio, com base em elementos concretos demonstrativos da periculosidade do preso, de que possa perturbar a ordem dos trabalhos, tentar fugir ou ameaçar a segurança e a integridade física dos presentes, IV - em circunstâncias excepcionais, quando julgado indispensável pela autoridade competente, V - quando não houver outros meios idôneos para atingir o fim a que se destinam.
Dessa maneira, a PLS n.º 185/2004, muito embora vise regulamentar a matéria, não logrou retirar essa margem de discricionariedade da autoridade policial ou judiciária, tampouco conseguiu descrever as hipóteses autorizadoras de forma taxativa. Muito pelo contrário, lançou mão de fórmulas jurídicas abertas, o que confirma a tese da dificuldade de se buscar um rol seguro de situações permissivas do uso de algemas.
Para aqueles que propugnam a proscrição desse juízo discricionário, pela insegurança jurídica causada, só há duas soluções: a vedação absoluta do uso de algemas ou a sua permissão integral em toda e qualquer hipótese como consectário natural da prisão. Já para aqueles que buscam uma situação intermediária, não há como abrir mão da discricionariedade do policial ou autoridade judiciária.
Pode-se afirmar, então, que a inovação da Súmula n.º 11 consistiu em exigir da autoridade policial ou judiciária a justificativa escrita dos motivos para o emprego de algemas, como forma de controlar essa discricionariedade. Além disso, passou a prever a nulidade da prisão ou ato processual realizado em discordância com os seus termos. Aí residem os problemas, pois, nesse contexto, inúmeras questões surgirão: o uso injustificado de algemas ensejará o relaxamento da prisão em flagrante? No caso da prisão preventiva, o abuso no uso de algemas poderá invalidar a mesma, provocando a soltura do preso? Na hipótese de o uso ser regular, a ausência de motivação ou a motivação insuficiente acarretarão a nulidade da prisão?
Dessa forma, em vez de trazer uma solução, a edição da Súmula criou mais problemas para o operador do direito e o policial, pois será fatalmente uma causa geradora de nulidade de inúmeras prisões.
Na realidade, a referida Súmula foi editada por força do Habeas Corpus n.º 91.952, do qual foi relator o Ministro Marco Aurélio, em que restou anulado o julgamento realizado pelo Júri popular, em virtude de o réu ter sido mantido algemado durante toda a sessão, influenciando no convencimento dos jurados. Perceba-se, portanto, que a Súmula acabou sendo mais abrangente do que o próprio precedente que lhe deu origem.
Conclui-se que a citada Súmula, na tentativa de corrigir os abusos ocorridos no emprego de algemas, acabou, no calor dos fatos, exagerando, e, por conseguinte, provocando novos problemas.
A questão, portanto, longe está de encontrar uma solução, até porque, frise-se, antes de constituir uma discussão acadêmica, é, na realidade, um problema prático, que atinge diretamente a segurança de inúmeros policiais, juízes, advogados e da população em geral. Não há como fechar os olhos para essa realidade que se descortina.
Com efeito. Verifique-se, por exemplo, que não é possível realizar o transporte de presos sem o emprego de algemas, pois são conduzidos diariamente ao Fórum da Barra Funda de 270 a 300 presos. Para isso, são disponibilizados, em média, 121 policiais militares. Na realidade, são menos de 121 policiais militares para cuidar da condução desses detentos, em virtude de licença, afastamento ou férias. As polícias, em tais casos, de acordo com a Súmula, deverão fazer uma justificativa por escrito e, na dúvida do seu emprego ou não, impõe-se a incidência do brocardo, in dubio pro societate, militando em favor do policial e da sociedade. Nesta hipótese, não há outra fórmula a não ser o bom senso e a razoabilidade.
Da mesma maneira, deverá se proceder quando da realização da prisão em flagrante, aplicando-se igualmente o princípio in dubio pro societate, quando da colocação das algemas. A justificativa, fatalmente, realizar-se-á após o ato prisional.
Por ora, vale afirmar que, consoante os termos da Súmula n.º 11, algema não é um consectário natural, obrigatório e permanente de toda e qualquer prisão, tendo como requisito a excepcionalidade, tal como deflui da própria legislação pátria. O juízo discricionário do agente público, ao analisar, no caso concreto, o fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros deverá estar sob o crivo de um outro não mais importante vetor: o da razoabilidade, que, nada mais é, do que a aplicação pura e simples do que convenientemente chamamos de "bom senso".
*Fernando Capez é promotor de Justiça em São Paulo e Deputado Estadual. Atua também como presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela USP e doutor pela PUC/SP, Capez é professor da Escola Superior do Ministério Público e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas, presidindo também o Instituto Fernando Capez de Ensino Jurídico