Por: José Damião Pinheiro Machado Cogan
Problema já surgido diz respeito às armas de defesa que podem ser portadas por membros do Poder Judiciário (Juízes Substitutos, Juízes de Direito, Juízes Federais, Desembargadores Estaduais e Federais e Ministros do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal) e membros do Ministério Público (Promotores de Justiça, Procuradores de Justiça e Procuradores da República), face à edição da Lei n.º 10.826/2003, que regulamenta o registro e porte de armas de fogo, bem como define as figuras dos crimes.
Inicialmente é de se observar que os membros do Poder Judiciário têm na Lei Complementar à Constituição Federal nº 35 de 14 de abril de 1979, regulamentação expressa no art. 33, dentro do capítulo II, "Das Prerrogativas do Magistrado", que estabelece que são direitos:
"V - portar arma de defesa pessoal".
Armas de defesa pessoal são aquelas armas curtas, de repetição ou semi-automáticas, de porte individual, com alcance limitado, cujo uso primordial é o de repelir uma agressão.
As armas curtas, ensina ERALDO RABELLO, "de relativamente pequenas dimensões, são armas compactas, com pêso dificilmente superior a um quilogramo, normalmente manejáveis com uma só mão e facilmente transportavéis no bolso ou em um coldre de couro ou lona, à cintura: são apropriadas para o tiro a distâncias comparativamente reduzidas, e a sua coronha tende a se aproximar de uma perpendicular ao eixo do cano, formando com este ângulos sensivelmente inferiores a 150 graus quanto ao cano, apenas excepcionalmente apresentará comprimento superior a vinte centímetros".
Assim, como se vê, armas de defesa pessoal são revólveres, pistolas semi-automáticas e garruchas, quer sejam de calibres permitidos ou restritos. "Destinam-se a ter um uso pessoal: a proteção muito de perto (alguns metros no máximo), competições em que o atirador mede a sua destreza face a outros indivíduos numa luta mortal ou desportiva, mas sempre homem a homem. São a antítese da arma atômica que elimina de forma anônima centenas de milhares de pessoas sem prevenir e sem defesa".
Assim não são armas de defesa as espingardas, fuzis, carabinas (armas longas), que não se destinam à rápida defesa pessoal e tiro próximo, bem como as metralhadoras e fuzis automáticos de alta cadência de tiro, com excepcional capacidade de munição em seus pentes carregadores, cujo objetivo é muito mais ofensivo do que defensivo.
Aliás as armas longas não tem previsão de porte como armas de defesa e são usadas, em tempo de paz, para a caça, o tiro esportivo (silhueta metálica, por exemplo) ou específico emprego na atividade policial onde, muitas vezes, o tiro de precisão de arma que dispara projéteis de alta energia cinética se faz necessário para o resgate de reféns ou contenção de marginais perigosos.
No mesmo sentido estabelece a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, que são prerrogativas ministeriais:
"Art. 42 - Os membros do Ministério Público terão carteira funcional, expedida na forma da Lei Orgânica, valendo em todo o território nacional como cédula de identidade, e porte de arma, independentemente, neste caso, de qualquer ato formal de licença ou autorização".
Estabelece, por sua vez, a Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo, Lei nº 734, de 26 de novembro de 1993:
"Art. 223 - Os membros do Ministério Público, na ativa ou aposentados, terão carteira funcional que valerá em todo o território nacional como cédula de identidade e porte permanente de arma, independente de qualquer ato formal de licença ou autorização".
Anote-se que, no caso dos Magistrados, trata-se de Lei Complementar à Constituição Federal e no caso da Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo trata-se, também, de Lei Complementar à Constituição, no caso, Estadual.
Também a Lei Orgânica do Ministério Público da União, Lei Complementar à Constituição Federal nº 75/1993 estabelece:
"Art. 18. São prerrogativas dos membros do Ministério Público da União:
I- institucionais:
e – o porte de arma, independentemente de autorização".
Face ao princípio da hierarquia das normas, já ensinado de há muito por Kelsen, em sua pirâmide, inicialmente se encontram no topo as normas constitucionais, seguidas das Convenções e Tratados aos quais o país aderiu, seguidas das normas complementares à Constituição, vindo logo após as leis ordinárias e, ao depois, as normas menos relevantes (portarias, provimentos, regulamentos, etc ).
As normas superiores não podem ser revogadas ou derrogadas pelas inferiores, como é o caso das normas complementares à Constituição, que não podem ser revogadas pelas leis ordinárias, por serem superiores a estas.
Assim, a Lei n.º 10.826/2003, que é lei ordinária, não pode de per si revogar as leis que concederam porte de arma como prerrogativa funcional aos membros do Poder Judiciário e Ministério Público.
Nem o argumento de que se trata de lei específica mais recente, que regulamentou amplamente a matéria, colhe.
Já a anterior Lei nº 9.437/97 havia recepcionado o porte de arma de defesa por Magistrados e Membros do Ministério Público.
A Lei n.º 10.826/2003 menciona:
"Art. 6º - É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para:
I – os integrantes das Forças Armadas,
II – os integrantes de órgãos referidos nos incisos do caput do art. 144 da Constituição Federal,
III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei,
IV - os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 (cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço,
V – os agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência e os agentes do Departamento de Segurança do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República,
VI – os integrantes dos órgãos policiais referidos no art. 51, IV, e no art. 52, XII, da Constituição Federal,
VII – os integrantes do quadro efetivo dos agentes e guardas prisionais, os integrantes das escoltas de presos e as guardas portuárias,
VIII – as empresas de segurança privada e de transporte de valores constituídas, nos termos desta Lei,
IX – para os integrantes das entidades de desporto legalmente constituídas, cujas atividades esportivas demandem o uso de armas de fogo, na forma do regulamento desta Lei, observando-se, no que couber, a legislação ambiental,
X - integrantes das Carreiras de Auditoria da Receita Federal do Brasil e de Auditoria-Fiscal do Trabalho, cargos de Auditor-Fiscal e Analista Tributário".
Quando o caput do art. 6º menciona "salvo para os casos previstos em legislação própria" está a citar especificamente Magistrados e Membros do Ministério Público que, em lei complementar à Constituição Federal tem autorização de porte de arma de defesa.
Isso quer dizer que a Lei n.º 10.826/2003, de malfadada alcunhada de "Estatuto do Desarmamento", recepcionou as Lei Orgânicas da Magistratura e do Ministério Público quanto ao porte de arma de defesa pessoal.
Nem poderia ser diferente, já que lei inferior na hierarquia das leis.
Em recente trabalho, publicado em 09 de janeiro de 2009, no site da Associação Paulista do Ministério Público, o ilustre Promotor de Justiça César Dario Mariano da Silva menciona:
"Com isso, há abalizados entendimentos no sentido de que como as Lei Orgânicas do Ministério Público e da Magistratura não limitaram ou condicionaram o porte de arma de fogo para seus membros, ele é irrestrito, podendo os Promotores e Procuradores de Justiça, bem como os Procuradores da República e Magistrados, portar qualquer espécie de arma de fogo, seja de uso permitido ou restrito".
"Não nos parece que esse seja o melhor entendimento".
...
"Já no que é pertinente aos Membros do Ministério Público e da Magistratura, não há qualquer exceção. Para poderem adquirir e registrar arma de fogo deverão preencher os requisitos de que trata o art. 4º , inciso I e III, além de possuírem mais de vinte e cinco anos de idade (art. 28 do Estatuto). De acordo com o Estatuto do Desarmamento, poderão adquirir e registrar arma de fogo de uso permitido e de uso restrito, nesse último caso mediante autorização do Comando do Exército (art. 27)".
O ilustre professor Damásio de Jesus, em sua obra anterior sobre o tema "Crimes de Porte de Arma de Fogo e Assemelhados" e na atual, "Direito Penal do Desarmamento", cita entendimento do Promotor de Justiça William Terra de Oliveira, publicado no Boletim do IBCCRIM, de que o porte de arma de defesa por Magistrados e dos membros do Ministério Público só abrangeria armas de calibre de uso permitido.
Cumpre aqui fazer algumas observações.
Foi no governo de Getúlio Vargas, quando este se tornou ditador, que alguns calibres de armas de fogo, notadamente reconhecidos como eficientes para defesa própria, foram proibidos.
A velha história se repete: todo governo totalitário, quer de direita, quer de esquerda, procura restringir a posse e porte de armas de fogo, com medo, por certo, de ser destronado pelo uso de força, muitas vezes legítima, em poder dos dominados.
Isso já remonta à antiguidade e no domínio da ilha de Okinawa por chineses, quando se proibiu a posse de qualquer arma, que no caso de desobediência era punida com a morte pelos senhores momentâneos da situação.
Ousamos discordar do culto Dr. Cesar Dario.
Aqueles que têm porte de arma funcional, como os Magistrados e membros do Ministério Público, não estão sujeitos a todos os requisitos do "Estatuto do Desarmamento", mormente no requisito de idade para poder adquirir e portar arma de fogo de defesa.
Seria no mínimo ridículo um policial, que necessariamente deve andar armado em serviço, tendo ingressado na carreira, feito a habilitação para portar uma pistola .40 SW e não poder adquirir e portar uma arma particular fora de serviço, em razão de não contar 25 anos de idade.
Imagine-se um Promotor de Justiça ou um Juiz de Direito que tenham passados pelos difíceis crivos de ingresso por concurso nessas carreiras e, eventualmente por não contar 25 anos de idade, - a despeito dos 3 anos de prática forense hoje exigidos, e que não possa adquirir uma arma de fogo para sua segurança após ter processado membros do crime organizado que juraram vingança!!!
Anote-se que o artigo 28 da Lei 10.826/2003 excetua a necessidade de 25 anos para militares das Forças Armadas, policiais federais, policiais rodoviários federais, policiais civis, policiais militares e bombeiros militares.
Ora, estando os Magistrados e membros do Ministério Público com deferência de porte funcional de arma de defesa por Lei Complementar à Constituição Federal, com previsão no artigo 6º, "caput", da Lei 10.826/2003, é claro que o limite mínimo de idade a eles não se aplica.
Ora, a exegese lógica é que o critério de idade só vige para a aquisição de arma de fogo e seu porte comum, aquele concedido pela autoridade policial, hoje federal, ao cidadão que não exerça cargo de autoridade em que lhe é deferida a aquisição e porte de arma de defesa em razão da função, que gera riscos pessoais, e não por deferência da Polícia Federal.
Na própria Pirâmide de Kelsen, na hierarquia das leis, se vê que Magistrados e membros do Ministério Público não estão condicionados a exclusiva autorização da Polícia Federal para aquisição de armas.
Basta pensar-se na hipótese de que o Magistrado ou Promotor de Justiça esteja no exercício da função.
Sem nada recomendar a vedação da compra e porte de arma, - exemplo: alienação mental e afastamento para tratar-se -, que, dada a autorização pelo Procurador Geral de Justiça, Procurador Geral da República, ou Presidente do Tribunal a que está subordinado, vincula a Polícia Federal na autorização de compra da arma, sendo que esta não poderá vetar a compra de arma e munição.
Caso óbices sejam criados pela autoridade policial que formaliza e registra a arma, um mandado de segurança resolve a questão, como já ocorreu em São Paulo no Mandado de Segurança 2006.61.81.007482-8, impetrado pela Associação dos Juízes Federais do Estado de São Paulo e Mato Grosso do Sul e Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região, onde a Associação Paulista de Magistrados recebeu a extensão dos efeitos da segurança concedida pelo Juízo da 26ª Vara Cível Federal da Justiça Federal da 3ª Região.
O Ministério da Defesa deferiu ao Exército Brasileiro o controle maior sobre produtos químicos perigosos ou de uso controlado, explosivos, armas e munições, dando-lhe especificamente o controle nas vendas internas, exportações e importações, desde o antigo Decreto nº 55.649/65, que regulamentou as armas de uso permitido ou "proibido". Esse Decreto veio substituir o antigo Decreto Estadual de São Paulo n.º 6.911/1935, por ele derrogado e oriundo da época em que matéria processual e outras administrativas poderiam ser reguladas a nível estadual, o que de há muito é vedado pela Constituição Federal. Esse decreto é conhecido no Exército, até hoje, com as subseqüentes reedições como "R-105".
O "R-105" foi atualizado em 1999, transformando-se no Decreto n.º 2.998, de 23 de março de 1999.
Logo a seguir, sofreu no ano seguinte outra atualização, onde incluiu como produtos controlados os coletes balísticos e os veículos blindados, devendo o Exército fornecer autorização de blindagem e manter registro próprio desses veículos para controle, resultando no Decreto nº 3.665, de 20 de novembro de 2000, até hoje em vigor.
O Exército Brasileiro, após reivindicação da APAMAGIS, APMP e Associação dos Procuradores da Justiça Militar, atendeu a solicitação, da qual fui um dos redatores do requerimento original, autorizando que Magistrados e membros do Ministério Público pudessem "adquirir para uso próprio arma de uso restrito". O calibre autorizado foi o da pistola .40 SW, que é o mais moderno no mercado, conhecido nas revistas especializadas como "hot 40" e que foi desenvolvido a pedido do Federal Bureau of Investigations, dos Estados Unidos da América, para substituir o calibre 9 mm, muito perfurante, sem "stopping power" e de emprego militar onde o visado é a incapacitação dos militares inimigos e não sua morte, posto que assim o desgaste com o ferido causa mais dano e gastos ao inimigo que sua morte.
Estabeleceu o Comando do Exército a autorização para aquisição de arma de uso restrito para Magistrados e membros do Ministério Público:
"PORTARIA Nº 535, DE 1º DE OUTUBRO DE 2002-10-17
Autoriza os membros do Ministério Público, da União e dos estados, e os membros da Magistratura a adquirirem na indústria nacional, para uso próprio, arma de uso restrito.
O COMANDANTE DO EXÉRCITO, no uso da competência que lhe é conferida pelo inciso VII, art. 32, da Estrutura Regimental do Ministério da Defesa, aprovada pelo Decreto nº 3.466, de 17 de maio de 2000, considerando o disposto no art. 16 da Lei n.º 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, combinado com o art. 19 da Lei Complementar n.º 97, de 9 de junho de 1999, de acordo, ainda, com o estabelecido nos arts. 189 e 190 do Decreto n.º 3.665, de 20 de novembro de 2000, e conforme proposta do Departamento Logístico, ouvidos o Supremo Tribunal Federal, o Ministério da Justiça e o Estado-Maior do Exército, resolve:
Art. 1º Autorizar os membros do Ministério Público, da União e dos estados, e os membros da Magistratura a adquirirem na indústria nacional, para uso próprio, pistola calibre 40.
Art. 2º Determinar ao Departamento Logístico que baixe normas regulando a venda pela indústria, a aquisição, o registro e o cadastro no Sistema Nacional de Armas (SINARM) das armas adquiridas conforme o artigo 1º desta Portaria e, ainda, a aquisição da correspondente munição.
Art. 3º Estabelecer que esta Portaria entre em vigor na data de sua publicação.
GLEUBER VIEIRA"
O calibre .40 Smith and Wesson resultou de uma redução de um calibre extremamente potente, o 10 mm, transformando-se no 10 mm Curto, um calibre veloz, mas que com o emprego de munição "hollow point" no projétil (ponta deformável), revelou-se um calibre eficiente para uso policial, pois gera bastante energia, permitindo o discutível "stopping power" (poder de parar o ataque inimigo) sem transfixar o corpo do agente atingido, não sendo muitas vezes letal, como deve ser uma munição para emprego policial.
Com o devido respeito, o essencial hoje, para cada cidadão que tenha arma, bem como para Magistrados e membros do Ministério Público, é a existência de registro de arma, que é o documento que demonstra seu cadastramento no SINARM – para as armas de uso permitido -, ou no SIGMA (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), onde estão cadastradas as armas de militares federais, colecionadores, atiradores, caçadores e dos Magistrados e membros do Ministério Público que sejam de calibres restritos.
O fato de trazer normas para o registro de armas de Magistrados e membros do Ministério Público na Lei 10.826/2003, especificamente no seu Regulamento – Decreto 5.123, de 1º de julho de 2004, não pode causar surpresa, já que os órgãos que controlam vendas de armas de calibres permitidos (Polícia Federal) ou restrito (Exercito Brasileiro) necessitam de normas expressas para uma orientação única.
Assim, parece-nos que não se encontra o respeitado César Dario com razão no entendimento de que Magistrados e membros do Ministério Público não poderiam portar qualquer arma de uso restrito, já que o registro menciona apenas uma arma expressa.
A existência de um registro para cada arma já remontava ao Decreto Estadual de São Paulo n.º 6.911/35.
E desde aquela época sempre foi assim.
No Comunicado n.º 80/2004, após a entrada em vigor da Lei n.º 10.826/2003, assim se pronunciou o E. Tribunal de Justiça de São Paulo:
"O Conselho Superior da Magistratura, em sessão realizada em 15 de abril de 2004, em atenção à consulta do Desembargador Flávio Cesar de Toledo Pinheiro, aprovou parecer do Desembargador Mohamed Amaro e pareceres dos MM. Juízes Assessores da Presidência e Auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça, confirmando a vigência do art. 33, V, da Lei Complementar nº 35/79 e fixado, assim, o entendimento no sentido de ser inexigível dos Magistrados autorização de órgão policial para porte de arma de defesa pessoal, ressalvado o indispensável registro".
Basta se atentar para que o Magistrado ou o membro do Ministério Público seja atirador ou colecionador de armas, registrado na Divisão de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército Brasileiro, que poderá ter registrado várias armas de calibre restrito.
Se portar outra arma curta de defesa de calibre restrito, devidamente registrada, tendo, pois, porte funcional, por certo que não poderá ser processado por porte ilegal de arma.
A Portaria do Comando do Exército nº 535/2002, elaborada "conforme proposta do Departamento Logístico, ouvidos o Supremo Tribunal Federal, o Ministério da Justiça e o Estado-Maior do Exército" autorizou "os membros do Ministério Público, da União e dos Estados, e os membros da Magistratura a adquirirem na indústria nacional, para uso próprio, arma de uso restrito".
Tal se passou num período em que ocorreram vários atentados a Magistrados e Membros do Ministério Público, e o crime organizado passou a tomar vulto, criando rebeliões em quase todos os presídios do Estado de São Paulo, oportunidade em que várias listas com nomes de Juízes e Promotores que deveriam morrer foram localizadas.
Logo depois o Primeiro Comando da Capital, organização criminosa paulista, executou, por duas vezes, grande série de atentados, inclusive contra civis, trazendo o terror à população paulista, que ficou à mercê do crime organizado, o que foi objeto de inúmeras reportagens jornalísticas, inclusive no exterior, que demonstravam o poderio de criminosos condenados que, dentro de presídios, comandavam homicídios sumários nas ruas de São Paulo e outras cidades.
Nada mais lógico que os militares do Exército Brasileiro se tenham sensibilizado com a situação e autorizado a aquisição por Magistrados, Promotores de Justiça, Procuradores de Justiça e Procuradores da República, de armas de uso restrito, pois todos eles são homens embuídos no cumprimento das leis e na mantença da Lei e da Ordem.
Pretender criar questiúnculas para dizer que, tendo armas de defesa de outros calibres, muitas menos potentes e atuais como as pistolas .40 SW, em poder de Magistrados e membros do Ministério Público que as portam, para defesa, devidamente registradas, caracterizaria porte ilegal, parece um exagero e falta de bom senso, posto que, acima de tudo, tais autoridades gozam de porte funcional de armas de defesa.
Convém, aqui, inclusive, abordar a teoria do "back up", ou suporte, muito difundida entre policiais brasileiros, americanos e europeus, sendo uma unanimidade.
A teoria do "back up" consiste em portar junto com a arma principal uma arma, em regra menor e facilmente ocultável, que tem a finalidade de permitir apôio no caso de algum incidente ou se eventualmente acabar a munição da arma principal, para que o agente não fique em situação de inferioridade se grande for o número de meliantes a promover o ataque.
A lei não limita o porte funcional a uma arma. Exige apenas o registro de ambas, quer para policiais, Magistrados ou membros do Ministério Público.
Não há, pois, no caso de porte de duas armas registradas, falar-se em porte ilegal de arma, havendo porte funcional.
Tal situação não atinge, obviamente, aqueles que têm porte deferido por autoridade policial, que não podem se valer de arma de apôio ou suporte.
Não pode sequer o Procurador Geral de Justiça ou Presidente do Tribunal negar autorização a Promotor ou Procurador de Justiça, para aquisição da arma de uso restrito na aposentadoria.
A Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo e a Lei dos Ministérios Públicos dos Estados (Lei 8.625/93) estabelece que "os membros do Ministério Público, na ativa ou aposentados", terão direito "a porte permanente de arma, independente de qualquer ato formal de licença ou autorização" (art. 223, da Lei Complementar Estadual nº 734/1993).
Tal situação se estende aos Magistrados, onde o art. 126, do Decreto-Lei Complementar n.º 3, de 27 de agosto de 1969, menciona que "o Desembargador aposentado conservará o título e as honras inerentes ao cargo".
Ademais, face ao princípio da eqüidade se aplica aos Magistrados de primeiro grau.
É evidente que a simples aposentadoria não afasta rancores antigos, intuitos de vingança, ainda que tardia, por marginais condenados durante a vida funcional ativa ou partes descontentes, razão da mantença do porte de arma na inatividade.
Merece reflexão o Decreto n.º 6.715, de 29 de dezembro de 2008, editado no apagar das luzes do ano findo.
Esse decreto veio alterar o Decreto n.º 5.123/2004, que regulamenta a Lei 10.826/2003.
O artigo 26 menciona:
"Art. 26. O titular de porte de arma de fogo para defesa pessoal concedido nos termos do art. 10 da Lei nº 10.826, de 2003, não poderá conduzi-la ostensivamente ou com ela adentrar ou permanecer em locais públicos, tais como igrejas, escolas, estádios desportivos, clubes, agências bancárias (inovação) ou outros locais onde haja aglomeração de pessoas em virtude de eventos de qualquer natureza".
Essa proibição se dirige diretamente àqueles que obtiveram autorização de porte de arma de defesa da autoridade policial (veja-se a menção ao art. 10 da Lei 10.826/2003). Não é dirigida às autoridades públicas que devem portá-las dentro do bom senso, mas sem a característica de cogência do dispositivo que a elas não se dirige diretamente.
Basta atentar-se para o artigo 34 da Lei 10.826/2003 que excetua o artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, ou seja, porte de arma para "proteção aos locais de culto e suas liturgias".
Chama a atenção, todavia, o artigo 34 do Decreto nº 6.715, de 29 de dezembro de 2008, que acresceu:
"§3º. Os órgãos e instituições que tenham os portes de arma de seus agentes públicos ou políticos estabelecidos em lei própria, na forma do caput do art. 6º da Lei 10.826, de 2003, deverão encaminhar à Polícia Federal a relação dos autorizados a portar arma de fogo, observando-se, no que couber, o disposto no artigo 26".
Nos casos do agente público estar em serviço ou sua especial situação de segurança pessoal o exigir, é claro que não pode a proibição ser interpretada como absoluta, já que o decreto menciona aplicação "no que couber" do artigo 26. Basta lembrar se algum policial ameaçado de morte pelo crime organizado para se afastar a figura romântica de que pode sair de casa desarmado para simplesmente ir a um banco ou casa noturna. O mesmo se dá com Magistrados e membros do Ministério Público. O correto é que esses estabelecimentos facultem locais seguros para que a arma possa lá ser mantida enquanto seu portador permaneça na casa, posto que local não recomendado por qualquer conhecedor de segurança pública é deixar-se a arma em veículo.
Por isso entendemos que para aqueles que têm porte funcional o bom senso deve prevalecer e a análise de cada situação deve ser feita com cautela, já que a cogência da proibição àqueles que têm porte funcional não é absoluta.
Tal artigo, incluído na calada da noite da mudança do ano pelo Ministro da Justiça e sancionado pelo Presidente da República em férias, visa claramente colocar uma medida ilegal ao Poder Judiciário e Ministério Público, exigindo, determinando, que tais instituições apresentem relação de Magistrados e Membros do Ministério Público que têm autorização de porte de arma de defesa.
Isso se reveste de flagrante ilegalidade, posto que todos os Magistrados e Membros do Ministério Público gozam do direito de portar arma de defesa. Somente aqueles que cometeram algum crime grave ou apresentam incapacidade mental superveniente ao ingresso na carreira é que podem ter, pelo Presidente do Tribunal a que estão afetos, ou pelo Procurador Geral de Justiça ou Procurador Geral da República, se membros do Ministério Público Estadual ou Federal, cassada excepcionalmente a autorização de porte funcional de arma de defesa.
Não tem a Polícia Federal essa atribuição, que não está regulada na Lei n.º 10.826/2003, e o Decreto n.º 6.715/2008, não pode ir além do disposto na lei, criando obrigações nela não previstas.
Essa determinação é absurda, de nada vale porque a Polícia Federal conta com efetivo diminuto de 13.000 homens para o país inteiro e o conhecimento de alguma exceção à regra nada mudaria.
Essa determinação não deve ser atendida, é acintosa e desrespeitosa com o Poder Judiciário e o Ministério Público.
Esqueceram que quem exerce, pela Constituição Federal de 1988, o "Controle Externo da Atividade Policial" é o Ministério Público e quem julga suas pretensões é o Poder Judiciário.
Poder de Estado, como o Judiciário, não deve contas à Polícia Federal, órgão subordinado ao Ministério da Justiça, que tem como função precípua exercer as atribuições de polícia judiciária e de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras (art. 144, §1º, incisos I e IV, da Constituição Federal de 1988).
Anota o Professor José Frederico Marques que "a polícia judiciária tem esse nome porque prepara a persecução penal que vai ser levada a juízo através da ação penal. Além disso a polícia judiciária funciona como órgão auxiliar do Juízo e do Ministério Público. Todavia, como já ressaltamos suas funções têm caráter nitidamente administrativo".
Em São Paulo, inclusive, pelo Regimento das Correições de 1930, o Poder Judiciário investiga crimes praticados por policiais.
Está faltando noção de hierarquia.
Aproveitou-se a calada da noite para tentar, uma vez mais, submeter o Poder Judiciário e o Ministério Público, aos desígnios do Poder Executivo, de forma a causar humilhação.
É função da Polícia Federal, que absurdamente assimilou função anteriormente à Lei 10.826/2003 exercida com bastante competência pelas Polícias Civis – órgãos policiais mais próximos dos cidadãos, já que existem em toda cidade brasileira -, consistente em conceder porte comum de armas de fogo. Hoje só a Polícia Federal é que passou a concedê-los, numa verdadeira "capitis diminutio" às Polícias Civis.
Todavia a determinação constante do citado artigo 34, §3º, do Decreto n.º 6715/2008, é inconstitucional, no que concordamos com o i. Cesar Dario, posto que não regulamentou determinação que existisse na Lei 10.826/2003, já que mero decreto, portanto inferior à Lei 10.826/2003 e às Leis Orgânicas da Magistratura e Ministério Público, que são complementares à Constituição Federal.
Deve, pois, ser ignorada pelo Poder Judiciário e Ministério Público.
Anote-se, por fim, que o simples porte de arma por Magistrado e Membro do Ministério Público não elidirá qualquer crime que venha a ser praticado com o mau uso da arma de defesa, independente do calibre.
*José Damião Pinheiro Machado Cogan é Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Mestre em Direito Processual Penal pela USP, Professor Decano da Academia de Polícia Militar do Barro Branco e coordenador da área de Processo Penal da Escola Paulista da Magistratura