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Obrigatoriedade do inquérito policial: insegurança e retrocesso

Por: Rafael Meira Luz e Henrique da Rosa Ziesemer

O presente artigo possui como finalidade a apresentação de breves reflexões sobre proposta de mudança legislativa em tramitação no Congresso Nacional, e que, se aprovado, acarretará verdadeiro retrocesso legislativo e insegurança pública. Trata-se, como vem sendo divulgado, do Projeto de Lei nº 4.306/2008, de iniciativa do Exmo. Sr. Deputado Federal Alexandre Silveira, Delegado de Polícia de Carreira do Estado de Minas Gerais.

A análise do projeto apresentado à Câmara dos Deputados é suficiente para refletir os anseios de apenas uma classe jurídica, a dos Delegados de Policia. Não se olvida que o projeto em questão reflita a vontade consolidada da bancada representativa dos Delegados de Polícia, eis que fulminam de morte inúmeros avanços legislativos recentes.

Afronta a proposição legislativa o inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), dentre outros inúmeros princípios e normas infraconstitucionais, destacando-se recente conquista da Democracia e do Estado de Direito, a Lei nº 11.343/2006, que estabelece a possibilidade técnicojurídica do oferecimento de Denúncia pelo Ministério Público através do manejo das denominadas "peças de informação", aqui compreendidas como quaisquer conjuntos de documentos capazes de criar a presunção da ocorrência de fatos típicos e antijurídicos.

A comunidade jurídica possui plena ciência de que a polícia judiciária, tal qual foi apresentada pelo legislador constituinte, desempenha crucial papel nas investigações criminais, valendo-se de seu aparato pessoal, da evolução das técnicas de colheita de informações, de atividades de inteligência, circunstâncias estas que não significam, ipso facto, a sua titularidade exclusiva para a colheita de provas e informações necessárias para o oferecimento de ações penais.

O ordenamento jurídico brasileiro consagra inúmeras outras modalidades, e o Supremo Tribunal Federal reconhece as respectivas legitimações, de investigações, sejam estas de cunho meramente civil ou administrativo. Retirar-se, através de projetos desta espécie, a validade de tão variadas formas de produção de provas destinadas à atuação final da Justiça equivale a um crescimento do sentimento de descrédito à atuação dos outros setores da Administração Pública. A aprovação de projeto com a magnitude do que ora se analisa, torna mais lenta e burocrática a persecução penal. Se determinados fatos constituem ilícitos penais, nada impede que quaisquer dos órgãos legitimados, dentre eles, as Comissões Parlamentares de Inquérito, os Tribunais de Contas, o Ministério Público, dentre tantos outros, possam utilizar seus procedimentos próprios para auxiliar na descoberta da verdade real, máxima alcançada em última instância.

A contrário do exposto pelo autor do projeto de Lei, a obrigatoriedade do Inquérito Policial, em vez de minimizar erros e falhas, suprimirá esferas de controle jurídico e social, aumentando os riscos de arbitrariedades e omissões, acarretando sérios riscos à eficácia da justiça penal, na medida em que a apuração e possível punição de um crime ficaria estritamente vinculada aos atos de uma só instituição.

A evolução da legislação pátria vem desenvolvendo inúmeros mecanismos de controle das atuações dos órgãos da administração pública. Assim, criada a Controladoria-Geral da União, regulamentada a atuação dos analistas de controle interno, desenvolvidos os mecanismos de controle externo da atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público, várias são as formas da sociedade exigir dos órgãos o cumprimento de suas atribuições.

O projeto em questão encontra-se com outras proposições legislativas em trâmite no Congresso Nacional, como o projeto que busca impedir que o Ministério Público exerça a atribuição descrita no inciso VII do art. 129 da Constituição Federal, ou seja, que seja exercido pelo Ministério Público o controle externo da atividade policial.

Assim sendo, a prosperarem tais proposições, o inquérito policial restaria exclusividade da polícia judiciária qualquer denúncia apenas poderia ser oferecida diante da prévia instauração de Inquérito policial, e restaria suprimido o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público.

Não se deve esquecer que a justificativa apresentada pelo autor do projeto refere-se ao texto da exposição de motivos de 1941, apresentada pelo seu autor sob a égide de outra Carta Constitucional, de modo que a sua interpretação sob a vigência da constituição de 1988 deve ser capaz de criar um espírito rejuvenescido, menos conservador. A formação do juízo preliminar criminal não é exclusividade da polícia judiciária, eis que incumbência do Ministério Público. Compete à polícia judiciária ao receber as informações acerca da ocorrência de infrações penais, proceder ao levantamento dos fatos e de suas provas, limitando-se ao disposto no §4º do art. 144 da Constituição. Apurar a prática de infração é conceito que diverge de fazer juízo sobre tais fatos, já que a primeira e provisória tipificação é formulada pelo Ministério Público, como menciona o art. 129, I.

Ora, se o que se convencionou conceituar de "crime", é um fato assim definido por lei, típico e antijurídico, e cabe ao Ministério Público formar o juízo inicial e provocar o Poder Judiciário, não havendo porque ficar adstrito ao que a autoridade policial, com toda a sua competência e eficiência apurar, com exclusividade. Os fatos podem chegar, como reiteradamente chegam, ao conhecimento do titular da ação penal por várias outras formas. Aliás, este é comando direto estabelecido na parte final do §3º do art. 58 da Carta Republicana, o qual fala em apuração de fatos, e encaminhamento ao Ministério Público, para promoção da responsabilidade civil ou criminal. Caso reputássemos  válida a justificativa do projeto, o procedimento a ser aplicado seria encaminhar o resultado da CPI para a Autoridade Policial, e abertura do Inquérito Policial. Como já mencionado, há várias formas de controle, e o devido processo legal deve ser observado. Os excessos, praticados por quaisquer instituições democráticas, devem ser coibidos com máxima celeridade e rigor.

O projeto em comento padece de vícios de constitucionalidade, além de quebrar a integração entre os órgãos envolvidos na ação penal, seja, acusação, defesa e julgador. Estabelecer na sociedade plural a dependência exclusiva à figura do inquérito policial, que se sabe, é merecedora de total modernização, assim como o aparato de investigação, não é admissível.

O objetivo destas breves linhas não é evidentemente a de menosprezar o trabalho exemplar desempenhado pelas autoridades policiais espalhadas pelo território nacional, mas reconhecer sua importância como mecanismo integrante de um sistema democrático de apuração de irregularidades. A integração entre instituições é medida a ser buscada, não se podendo, em período de autêntico desenvolvimento da democracia, desejar a exclusividade para a persecução criminal. O inquérito policial, diga-se, é peça crucial, de importância sem medidas, mas não pode ser condição obrigatória para o prosseguimento da atividade estatal de aplicação da lei penal.

*Rafael Meira Luz é promotor de Justiça em Rio Negrinho/SC, já foi professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade do Contestado e da Escola do Ministério Público de Santa Catarina

Henrique da Rosa Ziesemer é promotor de Justiça em Friburgo/SC, especialista em Direito Administrativo e Processual Penal e também é professor universitário


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