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Disciplina Constitucional do Ministério Público: breves notas

Por: Walter Paulo Sabella

I Ao ser promulgada a Constituição
A Constituição Federal de 1988 contemplou o Ministério Público com uma disciplina marcadamente inovadora, até então desconhecida na história do constitucionalismo republicano brasileiro.

Além de inseri-lo na parte do texto que cuida dos próprios Poderes do Estado (Título IV, Da Organização dos Poderes), deu-lhe a primazia de inaugurar o capítulo IV, chamado "Das Funções Essenciais à Justiça", no qual também se incluem seções destinadas à Advocacia Geral da União (seção II ) e à Defensoria Pública (seção III).

Logo no pórtico da seção que o disciplina, encontra-se o reconhecimento de que sua natureza é a de instituição, com os atributos da permanência e da essencialidade, proclamando-se, ainda, sua destinação: a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

O enunciado desse dispositivo de abertura é apto a  revelar que o legislador constituinte teve o deliberado intento de ressaltar o caráter de perenidade e de imprescindibilidade desse organismo diante das necessidades coletivas. Conquanto estatal, o Ministério Público nasceu comprometido com o social, excluída a possibilidade de descumprir sua predestinação a pretexto de achar-se incrustado na armação organizatória do Estado.

Tanto é verdadeiro isso, que se alinha no rol de seus grandes encargos, o de zelar para que direitos garantidos pela Constituição não sejam desrespeitados pelo próprio Estado, cabendo-lhe o poder-dever de promover as medidas impeditivas ou reparadoras no interesse desses direitos, além de lhe ter sido expressamente vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

A vontade da Constituição foi dirigida à criação de um organismo liberto da autoridade transitória e partidária dos governos, mas caldeado à prevalência do interesse público.

Não o instituiu o legislador como  porta-voz das pretensões refutáveis do Erário ou serviçal das idiossincrasias sectárias de quem governa, mas imune à relação de subordinação decorrente do primado da hierarquia, pelo qual os que se acham abaixo, na pirâmide administrativa, têm sua vontade sujeita ao influxo dos que se põem acima.

Para obstar a incidência ilegítima de poderes hierárquicos e decisórios sobre a liberdade de convicção técnica e jurídica dos agentes políticos do Ministério Público, o legislador garantiu que o exercício de suas funções se dá com independência funcional e erigiu essa garantia à categoria de princípio constitucional (art. 127, § 1º), não se olvidando de assegurar garantias outras (como a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos - art. 128, § 5º., inc. I, letras a, b e c), cujo sentido protetivo não se coloca em atenção à pessoa do agente, mas dos direitos e interesses postos sob sua guarda.

A ordem constitucional dada à nação em 1988 rompeu com balizamentos tradicionais no tocante ao Ministério Público, não se limitando a previsões genéricas de superveniente organização por leis complementares ou ordinárias.

Também não se conteve na inserção de algumas garantias, como o concurso público de ingresso, a estabilidade após dois anos de exercício, ou a aprovação prévia do Senado Federal na escolha do procurador-geral da República. Foi além da atribuição assistemática de algumas poucas funções, como a cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública ou a propositura da ação de declaração de inconstitucionalidade, como sucedeu em Constituições anteriores.

Basta a leitura do artigo 129 e incisos da Constituição em vigor para ficar evidente que os constituintes de 1988, acolhendo o pleito das lideranças institucionais da época, tiveram em mente a construção de um aparelho do Estado detentor da iniciativa de solução no campo vasto das macro-lesões de direitos que grassam impunes na sociedade brasileira. Com efeito, corporifica-se nesses dispositivos um sistema atributivo de funções apto a dimensionar o Ministério Público como órgão agente, papel que deve absorvê-lo de modo predominante e crescente.

Não por acaso, nota-se o emprego do verbo 'promover' nos quatro primeiros incisos do precitado artigo: I- promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei,  II- zelar pelo efetivo respeito dos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia, III- promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, IV- promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos na Constituição.

Os núcleos verbais desses dispositivos comprometem a Instituição com o encargo de sair em busca de solução para os grandes conflitos de massa e trazem uma condenação implícita a posturas destituídas de iniciativa e dinamismo. Nessa concepção plasmada pela nova ordem já não há lugar para a ótica modesta dos que limitam o universo de atuação do Ministério Público na estreita fronteira dos feitos iniciados por outrem. Sua predestinação essencial, desde 1988, não é intervir, mas promover.

O processo social, marcado pela conflituosidade, bem como a modernidade do texto constitucional, em consonância com as exigências do contemporâneo, ordenam ao Ministério Público a coragem das grandes investidas como órgão promovente, legitimado ao zelo dos interesses transindividuais, profligando-lhe a posição anacrônica de mero observador, circunscrito à espera conformada e letárgica de que os despachos judiciais o concitem à emissão de pareceres.

Fora desse prisma, o artigo 127 – enunciado inaugural da seção em que se desenvolve sua estruturação normativa- não passaria de artifício retórico, incapaz de determinar efeitos práticos.

Mas, o certo é que a Constituição o quis forte e eficaz, e quando o disse responsável pela defesa dos valores ali contemplados, não pretendeu produzir apenas uma fórmula conceitual de grande efeito estilístico. Se assim fosse, não o teria municiado com um conjunto de poderes instrumentais, como a expedição de notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, a requisição de informações, documentos, diligências investigatórias e inquéritos policiais (art. 129, incisos VII e VIII), nem teria condicionado a atribuição futura de outras funções ao pressuposto da compatibilidade com sua destinação (art. cit., inc. IX).

Tampouco teria instituído mecanismos garantidores de auto-organização administrativa e de ação institucional capazes de impedir pressões e ingerências externas, como, por exemplo, a legitimidade para propor a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares e a possibilidade de provê-los por ato próprio, a elaboração de sua proposta orçamentária (art. 127, §§ 2º. e 3º), a fixação de mandato para os procuradores-gerais (art. 128, §§ 1º. e 3º), o estabelecimento de quorum qualificado para a destituição destes pelo Poder Legislativo, a legitimação concorrente com o Poder Executivo para apresentação de projetos de legislação complementar relativa à organização, atribuições e funções, no âmbito da União e das unidades federadas (art. 128, §§ 1º. e 5º), valendo mencionar, ainda, a norma asseguradora do exercício  exclusivo das funções por integrantes da carreira.

Nem, muito menos, teria a nova ordem buscado a construção de um perfil verdadeiramente profissionalizado para o agente do Ministério Público, ao instituir um sistema de vedações assegurador de dedicação integral às funções, impedindo-lhe o recebimento de honorários, percentagens ou custas processuais, a qualquer título ou sob qualquer pretexto, cerceando-lhe, em caráter absoluto, o exercício da advocacia, tolhendo-lhe a participação em sociedade comercial, interditando-lhe, mesmo em disponibilidade, qualquer outra função pública, exceto uma de magistério.

Fora do capítulo próprio,  dentre as disposições suscetíveis de registro, merece destaque a do artigo 85, II, que inclui dentre  os  crimes de responsabilidade do presidente da República os atos por ele praticados que atentem contra o livre exercício do Ministério Público.

Quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988, assim se apresentavam as disposições compositivas da disciplina da Instituição.

II As alterações, ao longo de vinte anos
No curso das duas décadas que se seguiram, a Constituição-cidadã de Ulysses recebeu  sessenta e três emendas, seis das quais de revisão. Numa perspectiva estatística, significa que o texto constitucional sofreu, em média, três emendas por ano por outras palavras, uma emenda a cada 121 dias ou, se o quiserem, a cada 4 meses.

Relativamente ao Ministério Público, as alterações foram trazidas por duas Emendas de largo espectro:
a) a de n.º 19, de 4 de junho de 1998, que  modificou o regime e dispôs sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal
b) a de n.º 45, de 8 de dezembro de 2004, que alterou os dispositivos dos artigos 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168, e acrescentou os artigos 103-A, 103-B, 111-A e 130-A.

Vejamos as mudanças sobrevindas por força de cada uma delas, ocupando-nos, primeiramente, da de n.º 19:
a) alteração do § 2º., do art. 127, que dispõe sobre a autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, e no qual se prevê a iniciativa para propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, para o fim de acrescentar as expressões "política remuneratória e planos de carreira", dentre as matérias suscetíveis de inclusão nas proposições apresentadas com fundamento em sua autonomia
b) modificação da alínea c, do art. 128, inc. I, para o fim de assegurar irredutibilidade de "subsídio, fixado na forma do art. 39, § 4º", e não mais de 'vencimentos', aduzindo remissões aos artigos 37, X e XI 150, II 153, III, § 2º, I.

De maior extensão e efeitos, foi a Emenda 45. Comecemos pelos três parágrafos que aditou ao artigo 128:
a) acréscimo do § 4º. ao art. 128, explicitando que o não encaminhamento da proposta orçamentária pelo Ministério Público dentro do prazo estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias autoriza o Poder Executivo, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, a levar em conta os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os limites estipulados na forma do § 3º (que são, precisamente, os da LDO)
b) acréscimo do § 5º, prevendo que se a proposta orçamentária for encaminhada em desacordo com os limites acima indicados, o Poder Executivo procederá aos ajustes necessários para fins de consolidação da proposta orçamentária atual
c) acréscimo do § 6º, dispondo que durante a execução do orçamento do exercício não poderá haver a realização de despesa ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante abertura de créditos suplementares ou especiais.

Além disso, trouxe a Emenda 45 as seguintes inovações:
d) diminuição do quorum mínimo necessário à remoção de membro do Ministério Público, fixando-o em maioria absoluta do órgão colegiado competente em substituição aos dois terços originariamente previstos, no que se tem opção nítida pela flexibilização do princípio da inamovibilidade
e) supressão da parte final da alínea e, do art. 128, inc. II, para tornar absoluta a vedação de atividade político-partidária por membro do Ministério Público, pois na redação originária a vedação era relativa, em face da possibilidade de exceção ao princípio a cargo do legislador infra-constitucional, conforme a expressão "salvo exceções previstas em lei", suprimida pela emenda
f) inclusão de nova hipótese, na disciplina das vedações, para o fim de proibir o recebimento, a qualquer título ou pretexto, de auxílios e contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei (art. 128, II, f)
g) acréscimo de § 6º. ao art. 128, estendendo aos membros do Ministério Público vedação estatuída para os juízes, pela qual lhes fica interditado o exercício da advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastaram (leia-se, quanto ao membros do MP, 'junto ao qual oficiavam'), antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria e exoneração
h) introdução de situação exceptiva na regra do art. 129,  § 2º, alusiva à obrigatoriedade de residência na mesma comarca em que o integrante da carreira tiver lotação, para o fim de admitir residência em local diverso mediante autorização do chefe da Instituição
i) inserção de novo requisito no rol de exigências a serem atendidas para ingresso na carreira: três anos, no mínimo, de atividade jurídica (modificação do art. 129, § 3º)
j) nova redação no § 4º do art. 129, ordenando que ao Ministério Público se aplique, no que couber, o disposto no art. 93: normas relativas a ingresso, promoção, acesso às instâncias superiores, requisitos de vitaliciamento, sistema de subsídios, aposentadoria e pensão, disponibilidade, publicidade de julgamentos, fundamentação de decisões, regras para constituição de órgão especial na instância superior, férias, constituição de quadros funcionais e distribuição de feitos
k) acréscimo do artigo 130-A, pelo qual se institui, como órgão de controle externo da Instituição, o Conselho Nacional do Ministério Público, com regras disciplinadoras de sua composição, funções e delimitação do campo em que se exercitam suas atribuições finalísticas
l) previsão de leis da União e dos Estados para criação das ouvidorias do Ministério Público, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos da Instituição, inclusive contra seus serviços auxiliares.

III Conclusões
O exame das alterações havidas no curso dos anos que sobrevieram à promulgação do texto original evidencia que a mais sensível delas foi a instituição do novo  sistema de controle externo, corporificado na criação do Conselho Nacional do Ministério Público, o que, de resto, alcançou também o Poder Judiciário, valendo lembrar que ao tempo da feitura da Constituição uma parte dos constituintes já queria sua implantação e, a bem da verdade, em várias fases dos trabalhos, disposições disciplinadoras do tema chegaram a fazer parte dos textos provisórios em debate nas comissões.

Ressalvado esse aspecto, do cotejo entre a redação primitiva e a atual do capítulo do Ministério Público, chega-se à constatação de que a concepção estrutural se mantém inalterada, pois no que pertine aos princípios, garantias,  funções, poderes instrumentais e outros aspectos importantes, o texto se preserva em sua integridade,  imune ao vento das mudanças e às tentativas empreendidas para modificá-lo, ou mesmo para mutilá-lo. Sem êxito.

A notável capacidade de auto-preservação demonstrada pelo capítulo do Ministério Público, malgrado as sucessivas e constantes modificações ocorridas na ordem constitucional, aponta para sua inegável atualidade e faz prova de sua vocação de perenidade, claramente percebida ainda na fase de sua construção, quando corriam os trabalhos constituintes, nos agitados anos de 1987/1988.

Rigorosamente, nem mesmo se pode afirmar que, decorridos vinte anos, tenha já se dado a transposição, do plano normativo para o da realidade cotidiana, de toda a virtual aptidão realizadora do texto como instrumento de efetividade dos direitos fundamentais.

Por isso mesmo, nenhum exagero pode se visto na afirmativa de que o Ministério Público, como concebido no sistema constitucional vigente,  predestina-se a desafiar o tempo, mantendo-se, por longos anos do futuro, como instituição contemporânea, em sincronia com as aspirações da sociedade.

*Walter Paulo Sabella é subprocurador-geral de Justiça de São Paulo, ex-presidente da Associação Paulista do Ministério Público - APMP e ex-secretário-geral da Associação Nacional do Ministério Público - CONAMP


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