Por: Hugo Nigro Mazzilli
1 - Tem-se empenhado o Governo Federal na aprovação de alguns projetos de emenda constitucional que buscam alterar regras administrativas e previdenciárias que dizem respeito, entre outros pontos, com a aposentadoria dos membros do Poder Judiciário, bem como dos membros dos Tribunais de Contas e dos membros do Ministério Público, que, por força de expressa equiparação constitucional, para esses fins, estão subordinados ao mesmo regime jurídico (arts. 73, § 3º, e 129, § 4º, da CF).
Cabe esboçar desde já preocupação com algumas dessas propostas, por conterem em si o vício da inconstitucionalidade.
A questão diz respeito não apenas a direitos individuais dos membros do Poder Judiciário, dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, mas também a garantias constitucionais das próprias instituições. Foram garantias e predicamentos que pareceram tão relevantes ao legislador constituinte originário de 1988, que ele as consagrou por expresso no texto da Lei Maior (arts. 93 a 95 e 128-9 da CF). Isso assume a maior importância quando se considera que, em nosso sistema jurídico, até mesmo as garantias individuais foram erigidas a cláusulas pétreas pela Lei Fundamental em vigor (art. 60, § 4º, da CF).
2 - O sistema de garantias constitucionais, atualmente vigente para aos membros da Magistratura, dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, permite a aposentadoria facultativa, com proventos integrais, aos trinta anos de serviço, após cinco anos de exercício efetivo, aplicando-se o disposto nos arts. 40, § 4º, 73, § 3º, 93, VI, e 129, § 4º, da Constituição Federal.
Como se sabe, nos últimos anos têm tramitado no Congresso Nacional dois projetos de emenda à Constituição Federal que visam, entre outras coisas, a alterar ditas garantias constitucionais, alcançando, especialmente, tal sistema de aposentadoria facultativa aos 30 anos de serviço, com proventos integrais, com as seguintes conseqüências: a) elevação do tempo mínimo de serviço b) imposição de um redutor de 30% nos proventos da aposentadoria que superem o teto de R$.1.200,00 c) incidência de contribuições previdenciárias sobre os proventos (são as chamadas Reforma Administrativa e Previdenciária, de que diariamente nos trazem notícia os meios de comunicação). E há mais: sequer o problema se exaure na aprovação ou rejeição desses projetos, pois que o atual Governo Federal já tem feito saber que pretende a seguir enviar novos projetos de emenda constitucional para mais ampla reforma previdenciária.
Tais projetos de emenda constitucional, entre outros pontos, visam a reduzir benefícios, limitar direitos e minorar garantias constitucionais vigentes.
Veja-se bem, falamos de garantias e prerrogativas, não de odiosos e írritos privilégios, como, com sensacionalismo, procuram alguns fazer crer. Como já tivemos ocasião de observar, "o fundamentos desses predicamentos da instituição e de seus agentes, por evidente, não é constituir uma casta privilegiada de funcionários públicos, e sim e tão-somente assegurar a alguns agentes do Estado, apenas em razão das funções que exercem, garantias para que efetivamente possam cumprir seus misteres, em proveito do próprio interesse público" (Regime jurídico do Ministério Público, 3ª. ed., Saraiva, 1996, p. 146). Para cargos ou carreiras que contêm tantos e tais impedimentos que tornam vedadas outras atividades (arts. 73, § 3º, 95, parágrafo único, e 128, § 5º, II, da CF), nada mais natural que haja um regime peculiar de garantias correspondentes, o que inclui até mesmo a questão previdenciário, diante da impossibilidade de os magistrados, membros dos tribunais de contas e do Ministério Público exercerem outras atividades quando no serviço ativo.
3 - Sabemos que, dentre as cláusulas pétreas, inscrevem-se os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, da CF - nesse sentido, cf. Roque Antônio Carrazza, Curso de Direito Constitucional Tributário, 7ª. Ed., p. 129) - e, entre estas, estão as garantias dos Magistrados, membros dos tribunais de contas e membros do Ministério Público, expressamente consideradas como tais pela própria Constituição vigente (arts. 73, § 3º, 93, VI, e 129, § 4º, da CF), como bem demonstrado por Vander Zambeli Vale (Inconstitucionalidade da proposta de emenda constitucional que altera o regime previdenciário da Magistratura, Síntese Jornal, dezembro 97, ano 2, n. 10, p. 4).
Invocando lição de Raul Machado Horta (Estudos de Direito Constitucional, 1995, p. 95), registrou Zambeli Vale que as garantias da Magistratura inserem-se no campo das limitações materiais à atuação do poder constituinte derivado, sendo, por essa razão, intangíveis (op. cit., p. 6).
Não se admite que o poder constituinte derivado possa diminuir garantias não só individuais, como até mesmo e principalmente garantias asseguradas pelo poder constituinte originário aos membros de um dos Poderes da República, e que são estendidas por expressa equiparação constitucional aos membros do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. Mas, mesmo que se admitisse, por pura epítrope, fossem tais alterações possíveis, ao menos e sem dúvida, não poderiam elas aplicar-se seja a quem já se aposentou pelas regras anteriormente vigentes à eventual promulgação das emendas, seja àqueles que, quando da promulgação destas, já tinham adquirido o direito à aposentadoria pelas regras vigentes antes das reformas, ainda que não tivessem efetivamente se aposentado.
4 - Tais emendas, ainda que em tese fossem regularmente promulgadas, não poderiam jamais atingir direitos adquiridos.
Com efeito, o direito se reputa adquirido desde o momento em que já pode ser exercido (cf. art. 6º, § 2º, do Dec.-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 194 - Lei de Introdução ao Código Civil). Ou, em outras palavras, "vindo a existir o direito, é este um direito adquirido" (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Poder constituinte e direito adquirido - algumas anotações elementares, RT, 745/18 e 24). Por isso, com acuidade observara Francisco Campos: "quando se cumprem todas as condições para que o funcionário possa aposentar-se, configura-se para ele o direito adquirido à aposentadoria não importa que ele não exerça desde logo esse direito. O exercício do direito não cria o direito este, ao contrário, é que autoriza, legitima e torna possível o seu exercício" (Direito administrativo, II/129).
E direito adquirido não é só aquele que se forma nas relações do direito privado, e sim também o do funcionário em face da Administração. Este é o sempre atual ensinamento de Clóvis Beviláqua: "os direitos adquiridos, que as leis devem respeitar, são vantagens individuais, ainda que ligadas ao exercício de funções públicas" (Teoria Geral do Direito Civil, 6ª. Ed., Rio de Janeiro, ed. Francisco Alves, 1953, n. 14).
Assim, é obrigatório ao legislador infraconstitucional (e nesta categoria se insere o poder constituinte derivado) que respeite o direito adquirido, consagrado hoje na própria Constituição Federal (art. 5º, XXXVI), em seu cerne fixo (art. 60, § 4º, IV). Por isso, impõe-se a irretroatividade da norma editada pelo poder constituinte derivado, como anotou o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, no estudo acima citado (RT, 745/18 e 22).
Ainda que se admita possa em tese o poder constituinte originário cassar até mesmo o direito adquirido, em regra esses limites costumam ser respeitados até mesmo por ele, que seria o único que não estaria jungido a respeitá-lo. Nesse sentido, advertiu o Carlos Mário da Silva Velloso: "se é a própria Constituição que consigna o princípio da não-retroatividade, seria uma contradição consigo mesma se assentasse para todo o ordenamento jurídico a idéia do respeito a situações jurídicas constituídas e, simultaneamente, atentasse contra este conceito "(Funcionário público - aposentadoria - direito adquirido, RDP, 21/178). Com muito mais razão, incurial seria pudesse o poder constituinte decorrente violar o direito adquirido. Por isso é que a atual Constituição o vedou às expressas (arts. 5º, XXXVI, e 60, § 4º, IV).
5 - A par dos óbices constitucionais atinentes à alteração de cláusulas pétreas e à irretroatividade de normas que suprimam garantias e direitos adquiridos, ainda cumpre lembrar que o verdadeiro princípio da isonomia exige tratamento igual para os que estão na mesma situação, e diferente, para os que se apartam da situação comum.
Ora, a Constituição de 88, justamente reconhecendo as peculiaridades das várias carreiras, estabeleceu regras, garantias e impedimentos próprios para os membros do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder Executivo, bem como para os membros das principais instituições originárias da soberania do Estado. E mesmo o atual Congresso, exercendo seu poder constituinte derivado, não ficou de todo alheio a essa constatação, tanto que, reconhecendo, porque igualmente óbvias, as peculiaridades da carreira militar, assegurou estatuto próprio para os respectivos servidores, conquanto pareça ter-se olvidado disso ao cuidar da situação dos Magistrados... Contudo, tanto estes, como os membros do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, têm vedações próprias, distintas e até mesmo inconfundíveis com os demais servidores públicos em geral. Ao tentar tratar membros da Magistratura como servidores comuns, desconsiderando que têm eles impedimentos e garantias próprias, caminha, assim, o Congresso, no sentido de perpetrar flagrante desequilíbrio, como apontado em diversos trabalhos já publicados sobre a matéria (no mesmo sentido, cf. o Editorial O Judiciário e a reforma da Previdência, do Jornal da AJUFESP - órgão oficial da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul, S. Paulo, dez. de 1997, ano 1, ed. n. 2 cf. ainda artigo Juízes e militares, de Pedro Carlos Sampaio Garcia, Juiz do Trabalho, publ. no jornal Folha de S. Paulo, 24-10-97, coluna Opinião artigo Direito da magistratura, privilégio do povo, de Saulo Ramos, advogado, ex-Consultor-Geral da República e ex-Ministro da Justiça, publ. no jornal Folha de S. Paulo, 16-09-97, coluna Opinião artigo Privilégios?, de Manuel Alceu Affonso Ferreira, advogado, publ. no jornal Estado de S. Paulo, 29-10-97, p. A-2).
6 - Existe, pois, a iminente possibilidade de serem reduzidas garantias da Magistratura (e, reflexamente, as do Ministério Público e dos Tribunais de Contas), por meio de reforma constitucional, nesse ponto, "juridicamente insustentável" (Prof. Fábio Konder Comparato, da Universidade de São Paulo, em audiência pública de 27-1-98, na Comissão especial da reforma previdenciária, na Câmara dos Deputados, cf. O Estado de S. Paulo, ed. 281-98, p. A-5), por "alterar direitos fundamentais das pessoas" (Prof. Luiz Fernando Couto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, id. ib.), trazendo, assim, "pontos inconstitucionais" (Prof. Wagner Balera, da Pontifícia Universidade Católica - PUC-SP, id. ib.).
7 - De qualquer forma, é sobretudo imperioso reconhecer a necessidade de preservação dos direitos de todos os que já se aposentaram validamente sob as regras vigentes, e de todos aqueles que, embora ainda não se tenham aposentado, já tenham adquirido o direito à aposentadoria voluntária antes da promulgação de ditas emendas. Por fim, as leis de transição não podem desconsiderar a justa expectativa jurídica de quem, fundado num estatuto jurídico vigente - e não um estatuto jurídico comum, mas sim consagrado na própria Lei Maior, que, por definição, adquire caráter de maior estabilidade - já gastou a maior parte de sua vida útil a serviço dessas instituições, e agora, de uma hora para outra, se vê colhido por mudanças írritas, às vésperas de completar o tempo até então exigido para licitamente ingressar na inatividade - e sem que tenha tempo de reorganizar sua vida e seus planos previdenciários, para complementar aquilo que os governantes do momento procuram tirar-lhe quando já não tem mais idade para recomeçar a vida profissional e fazer um condizente plano previdenciário privado.
8 - Transparece clara a possibilidade de ser questionada perante o Poder Judiciário a validade de ditas alterações constitucionais, até porque, somando-se aos argumentos de fundo, até agora desenvolvidos, ainda há questões procedimentais que foram de todo relegadas.
O Senado aprovou, em segundo turno (9/10/97), a Emenda Constitucional que versa sobre a Reforma Previdenciária, cujo fito é a quebra da integralidade dos proventos de aposentadoria para aqueles que percebam mais de R$ 1.200,00, com limite redutor de até 30%, a ser estabelecido em lei complementar. Entretanto, pouco antes, ainda no mesmo ano de 1997, na votação desse projeto em primeiro turno, o próprio Senado já tinha recusado essa quebra de integralidade, com o dito redutor.
A matéria não é apenas regimental como quiseram alguns parlamentares, pois a Constituição Federal exige que uma proposta de emenda constitucional seja discutida e votada em dois turnos em cada Casa do Congresso, considerando-se aprovada somente se obtiver, em ambos os turnos, três quintos dos votos dos respectivos membros (art. 60, § 2º, da CF).
Mas quando o Senado, em primeiro turno, votou o projeto de Reforma da Previdência, não chegou a aprovar a quebra da paridade nem o referido redutor para os Magistrados (1997).
Acresce que, agora em 1988, por votação simbólica, quando da votação do projeto da Reforma Administrativa, o Senado suprimiu o artigo que procurava manter a aposentadoria integral para os magistrados (27/1/98). Entendeu aquela casa legislativa que, como na votação da Emenda Previdenciária, tal aposentadoria integral já havia sido recusada, o Regimento Interno do Senado permitiria dar como prejudicada a nova votação matéria, dispensada a volta do projeto da Reforma Administrativa à Câmara dos Deputados.
Entretanto, como já se disse, a tramitação de uma emenda constitucional não é matéria meramente regimental. Ao contrário. A própria Constituição estabelece regras rigorosas para a aprovação de emendas constitucionais, e impõe que a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não possa ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa (art. 60, § 5º, da CF).
Como a quebra da paridade entre o pessoal da ativa e os aposentados e a imposição do redutor de 30% já tinham sido recusadas em primeiro turno no Senado, é questionável que essa matéria pudesse ser aprovada, na mesma sessão legislativa de 1997, em segundo turno, pelo Senado, quando da votação da mesma Reforma Previdenciária.
E agora, na votação da Emenda Administrativa, o Senado deu por prejudicada a manutenção da aposentadoria integral para magistrados, invocando o fato de fora ela recusada na precedente votação da Reforma Previdenciária. Entretanto, são esses projetos distintos, juridicamente independentes. Nada teria impedido, em tese, que o Senado, quando da apreciação da Emenda Administrativa, reexaminasse a questão em votação independente, e a ela desse o mesmo ou até diverso destino do que lhe dera, meses antes, quando da votação do mesmo assunto na Emenda Previdenciária. Em projetos independentes, a votação de uma questão num deles não cria óbice à votação da mesma questão em outro, até porque os legisladores poderiam, nesse ínterim, rever suas posições. Que existe a possibilidade de uma segunda votação contrariar a primeira, é a própria Constituição que o garante, ao exigir dois turnos de votação nos projetos de emenda constitucional...
Noticiam os meios de comunicação a controvérsia que se estabeleceu entre o presidente da Câmara e o do Senado sobre se o Projeto de Reforma Administrativa deveria ou não voltar à análise da Câmara dos Deputados, embora recentemente modificado na Câmara Alta (com a supressão do dispositivo referente à aposentadoria dos Magistrados)... Como se fosse possível que um projeto não passasse, como um todo, por ambas as Casas e não fosse aprovado, como um todo, por ambas as Casas do Congresso (art. 60, § 5º, da CF)... Como se isso pudesse ser questão política, e não estritamente técnica e jurídica.
9 - Enfim, para reformar a Constituição Federal, não se podem desconsiderar algumas regras básicas, pois até mesmo uma emenda constitucional pode ser declarada inconstitucional, se não for feita na forma e dentro dos limites estabelecidos pela Constituição, e isso já o reconheceu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 939-DF, ao decretar a inconstitucionalidade parcial da Emenda Constitucional n. 3/93.
Se o sistema previdenciário precisa ser corrigido e aprimorado, que o seja apenas e somente com estrita observância da Constituição.
* Hugo Nigro Mazzilli
Ex-presidente da Associação Paulista do Ministério Público, professor de Direito, advogado, e autor do livro O inquérito civil - investigações do Ministério Público (Saraiva, 1999).