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A Falácia Da Federalização Dos Crimes Contra Os Direitos Humanos

Por: Marcus Vinícius Amorim de Oliveira

Depois de tantos avanços e recuos, discursos inflamados nas tribunas e nos palanques enquanto acordos eram celebrados a portas fechadas, parece que o texto consolidado da chamada “Reforma do Judiciário” acaba de ser votado em primeiro turno no Senado Federal, no bojo da redação final da PEC 29/2000, embora circunscrito aos tópicos em que houve consenso entre os parlamentares, com os destaques a ser apreciados no mês de agosto.
Sobre as propostas da suposta reforma judiciária haveria, decerto, muitos pontos polêmicos merecedores de análise e discussão. Mas o título deste ensaio já anuncia nossa pretensão. Ele se refere à nova redação dada pela mencionada PEC ao art. 109 da CF, que estabelece a competência dos juízos federais de primeira instância, já incluído no primeiro pacote endereçado ao Congresso.
Nesse sentido, doravante incluem-se no rol de competências daqueles órgãos judiciários federais as causas relativas a direitos humanos, referidos no novo § 5º do mesmo artigo (art. 109, inciso V-A, CF/88). Ora, o parágrafo em questão assinala que, nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o procurador-geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte signatária, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, “incidente de deslocamento de competência” para a Justiça Federal.
A redação dada ao novo parágrafo é bastante simplória, mas suas conseqüências certamente são complexas e preocupantes, sobretudo para os membros dos Ministérios Públicos dos Estados, no tocante ao exercício de suas funções institucionais.
Em primeiro lugar, a proposta ressuscita o vetusto instituto da avocatória, outrora conhecida entre os tribunais que, por motivos vários, detinham o poder de chamar para si a resolução de causas inicialmente entregues às instâncias inferiores. Sua extinção, como se sabe, decorreu dos vários abusos, arbitrariedades e conveniências políticas para os quais serviu de amparo legal. E numa perspectiva puramente jurídica, parece-nos que essa versão recauchutada da avocatória vai de encontro aos princípios constitucionais do juiz e promotor naturais.
O segundo ponto diz respeito à impossibilidade doutrinária e científica de conceituar de modo consistente — como deve ser em tudo quanto relacionado à fixação da competência jurisdicional — o que afinal são direitos humanos. Como apontam os estudiosos, já a própria terminologia é alvo de polêmica (há aqueles que se referem a direitos fundamentais, direitos humanos fundamentais, direitos do homem, etc.). Some-se a isso o fato de que o fundamento do conceito de direitos humanos se liga à idéia de dignidade humana, e esse valor se apresenta mutável e relativo, variando ao sabor das circunstâncias de tempo, lugar e cultura. Finalmente, seria pertinente saber o que poderia ser considerada uma grave violação de direitos humanos. Não há, a nosso ver, como estabelecer parâmetros suficientes para definir qualquer nível de gravidade. Melhor dizendo, toda violação a direitos humanos, na essência, é algo grave, porque fere a dignidade do homem, sem a qual ele se reduz à condição animal ou de coisa. Então, graves seriam os casos de exploração de crianças e adolescentes nos esquemas de turismo sexual? E como qualificar o assassinato do prefeito de Santo André? Em última análise, é provável que as contingências superem qualquer tentativa de enquadramento teórico ou jurisprudencial da matéria.
Como se deverá proceder diante das chacinas, em que são mortas até dezenas de pessoas na periferia das grandes metrópoles? Haverá subtração da competência do júri popular? E os motins e rebeliões em estabelecimentos prisionais superlotados e indignos, com a morte de reféns e apenados?
Além de tudo isso, por conta da topografia do dispositivo (inciso V-A), poder-se-ia acreditar que a medida só caberia nas causas criminais. Todavia, a redação é imprecisa nesse ponto e, certamente, irá gerar discussões entre os operadores do Direito. Abre-se margem para entender que as causas cíveis, desde que envolvam graves violações a direitos humanos, também poderiam ser avocadas para a alçada federal. Sendo assim, o que dizer dos litígios referentes à oferta de leitos de UTI em hospitais, garantia de matrícula universal na rede pública de ensino ou preservação da estrutura, fachada e funcionalidade de prédios históricos? Ou saúde, educação e cultura não são direitos humanos?
O dispositivo incluído na PEC seria capaz, ainda, de criar situações constrangedoras, uma vez que o procurador-geral da República poderá suscitar o tal “incidente” durante a tramitação de inquéritos policiais e processos já instaurados, obstando de intervir no caso delegados de Polícia Civil, promotores e procuradores de Justiça, além de juízes e desembargadores. E não há previsão de quando esse incidente deverá ser desencadeado. Será que a mídia exercerá alguma pressão nesse juízo de valor?
É oportuno lembrar que, segundo a Lei nº 10.446/02, a Polícia Federal já pode investigar infrações penais relativas a violações de direitos humanos, desde que o País tenha se comprometido a reprimi-las em tratados internacionais e elas alcancem repercussão interestadual ou internacional. De qualquer modo, e este é o ponto nevrálgico da questão, ainda segundo a legislação, a intervenção do Departamento de Polícia Federal não acarreta prejuízo à atuação dos demais órgãos
da segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição Federal (art. 1º, caput e inciso III).
Em suma, se a razão para o revigoramento da avocatória, agora mediante provocação da chefia do Ministério Público Federal junto ao STJ, é a necessidade de garantir cumprimento às obrigações assumidas pelo Brasil em acordos internacionais envolvendo questões de direitos humanos, convém alertar que a medida é tardia. É que, para assegurar o adimplemento de tais obrigações, as providências devem ser tomadas em caráter preventivo, requerendo a articulação de vários setores governamentais com o Judiciário e o Ministério Público, em todas as instâncias. Ou alguém acredita que a nova avocatória será suficiente para influir na realidade da prática da tortura nas delegacias de polícia em cada canto do País, verdadeiro habitus que configura uma afronta explícita à Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, de 1985?
Estamos mais uma vez diante de uma falácia, consistente na tentativa de sinalizar para a comunidade internacional que as instituições governamentais se preocupam com os direitos humanos e, assim, nada melhor do que concentrar a atuação nessa área em poucos setores. Porém, trata-se de uma emenda com possibilidade de acarretar sérios prejuízos à harmonia das relações entre os vários órgãos do Ministério Público, Judiciário e Polícias. O melhor caminho, segundo nos parece, vem esboçado no estímulo à celebração de convênios de cooperação institucional e na abertura do diálogo com setores da sociedade civil engajados na difusão dos valores dos direitos humanos, com o objetivo de articular ações concretas de intervenção na realidade das ruas. É preciso, enfim, preservar as conquistas até agora alcançadas na construção de uma sociedade verdadeiramente livre, justa e solidária, sob um Estado Democrático de Direito. 

* Marcus Vinícius Amorim de Oliveira é Promotor de Justiça no Ceará, mestre em Direito pela UFC e professor de Criminologia da Faculdade Christus


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