Por: Glauber Tatagiba
No Recurso Extraordinário nº 387.974/DF, de 12/05/2003, cujo voto parcial foi publicado no Informativo do STF nº 328, a Ministra relatora Ellen Grace, trás à tona novamente a questão do Promotor Natural, debatida originariamente no HC nº 67.759-2/RJ, de 1990 (DJ de 01/07/93). Naquela ocasião assentou a Suprema Corte, através das posições sustentadas pelos Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio, Carlos Velloso, Celso de Mello e Sidney Sanches (estes dois ainda que parcialmente), a existência, do princípio do Promotor Natural, contra as posições dos Ministros Paulo Brossard, Octavio Gallotti, Néri da Silveira e Moreira Alves.
Na época, os Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Carlos Velloso acataram a tese do Promotor Natural, enquanto o Min. Celso de Mello, embora admitindo sua existência constitucional, sustentava que só se tornaria efetivo após alteração legislativa infraconstitucional , já o Min. Sidney Sanches não aceitou sua previsão constitucional, mas admitiu que a Lei Orgânica do Ministério Público (à época em tramitação no Congresso Nacional) viesse a adotá-lo .
A lei a que se refere os Ministros supra citados se transformou na Lei Federal nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, denominada Lei Orgânica Nacional do Ministério Público - LONMP, que, entre outros artigos , em seu art. 10, inciso IX, alínea g prescreve: “Compete ao Procurador-Geral da Justiça: (...) IX – designar membros do Ministério Público para: (...) g) por ato excepcional e fundamentado, exercer as funções processuais afetas a outro membro da instituição, submetendo sua decisão previamente ao Conselho Superior do Ministério Público” e em seu art. 15, inciso VIII: “Ao Conselho Superior do Ministério Público compete: (...) VIII – determinar por voto de dois terços de seus integrantes a disponibilidade ou remoção de membros do Ministério Público, por interesse público, assegurada a ampla defesa”.
Desta forma, hodiernamente não pode restar dúvida sobre a existência do princípio do Promotor Natural ou Legal no nosso ordenamento jurídico, principalmente após a sua previsão na LONMP, conforme já reconheceu o próprio STF em outras oportunidades .
Dito princípio pode ser conceituado como a garantia constitucional de livre atuação do Promotor ou Procurador de Justiça de acordo com as atribuições legais predeterminadas do órgão de execução em que é titular.
Como esposado por Paulo Cezar Pinheiro Carneiro: “O princípio do Promotor Natural pressupõe que cada órgão da instituição tenha, de um lado, as suas atribuições fixadas em lei e, de outro, que o agente, que ocupa legalmente o cargo correspondente ao seu órgão de atuação, seja aquele que irá oficiar no processo correspondente, salvo as exceções previstas em lei, vedado em qualquer hipótese, o exercício das funções por pessoas estranhas aos quadros do parquet” .
Antes mesmo da previsão legal do princípio do Promotor Natural a Constituição Federal de 1988, em várias passagens, nos mostra que a garantia de livre atuação do membro do Ministério Público no seu órgão de execução é consectário lógico da nossa instituição e do sistema constitucional. Assim o artigo 5º, LIII, LV e seu § 2º, o princípio da independência funcional (art. 127, § 2º) e a garantia da inamovibilidade (art. 128, § 5º, b). Todos já exaustivamente dissecados pela Corte Constitucional por ocasião do HC nº 67.759-2/RJ, de 1990 e em outras oportunidades, como em diversos trabalhos doutrinários.
Agora, a eminente Ministra Ellen Grace ao relatar o RE nº 387.974/DF, negando a existência do princípio do Promotor Natural, se ampara no caráter hierárquico da instituição, nos princípios da unidade e indivisibilidade e nas características peculiares do Ministério Público, que o diferem do Poder Judiciário, in verbis:
Estabelece o § 1º do art. 127 da Constituição Federal (...). Essa é a regência fundamental, o arcabouço normativo sobre o qual repousa toda edificação jurídica e doutrinária do órgão que a história denominou de Ministério Público. Sobredito alicerce constitucional do império normativo, da concepção de Kelsen, cria um parâmetro jurídico-ideológico que limita e conduz toda conceituação do Ministério Público em suas esferas ônticas do exercício funcional. Essa diretiva fundamental, elevada a nível constitucional, não só define o órgão, como o distingue e o separa dos Poderes constituídos, sobressaindo características inominadas e próprias. Tais predicamentos constitucionais individualizadores separam e distinguem o Ministério Público do Poder Judiciário, evitando que as normas nucleares de ambos sejam confundidas, na dimensão do desempenho funcional (...).
Do sobredito paralelo entre as funções judicante e ministerial avulta a diferença que se irradia entre o poder de iniciativa e o poder de decisão. Se ambos não se identificam em sua estrutura formal, também não o fazem em seus princípios regentes. A teoria fixista do Juiz Natural, que emana do inciso LIII do art. 5º da Constituição Federal se contrapõe ao princípio constitucional da indivisibilidade que compõe o Ministério Público (§ 1º do art. 127). Pelo princípio da indivisibilidade, todos os membros do Ministério Público são reciprocamente substituíveis, tornando o órgão uma totalidade homogênea, o que se contradiz com a noção de Promotor Natural, que traduz uma prefixação unitária. São dois princípios constitucionais de regência diferente e que se contrapõem em termos e finalidade. O Juiz Natural é garantia individual de julgamento independente. A indivisibilidade é postulado de garantia coletiva da defesa de bens sociais e públicos, que não pode ser fixado em apenas um Membro, mas em todo o Órgão.
Sustenta seus argumentos nas lições de renomados doutrinadores alienígenas, do porte de Claus Roxim, Bruzzone, Eberhard Schmidt e o nosso Magalhães Noronha para estabelecer as diferenças entre a atividade do Ministério Público e do Juiz na seara penal, para, logo após, concluir que a atividade de persecução criminal do Parquet se contrapõe aos princípios constitucionais da magistratura, mormente ao do Juiz Natural, com a seguinte lição:
A diferença sobranceira que se estabelece entre o Poder Judiciário e o Ministério Público, na lição de Bruzzone é a conotação política de suas funções. Ao Ministério Público compete a realização da política criminal da sociedade organizada. A missão do Poder Judiciário, dizia ele, reside no controle e interpretação da lei penal, material e formal, mecanismo pelo qual se ampliará ou se limitará o campo de punibilidade e, em conseqüência, a perseguição e investigação (...) Investigar um delito assumindo funções policiais ou quase policiais é tarefa de órgãos administrativos, não do órgão jurisdicional (...). Esta conotação constitui a diferença que conduz Siegert a afirmar a impossibilidade de aplicação dos princípios que regem o Juiz ao Ministério Público. (...) Se dois postulados constitucionais, o do Juiz Natural e o do Princípio da Indivisibilidade, estruturam fundamentalmente dois órgãos, não é razoável, nem jurídica, a aplicação inversa das regras, conferindo à estrutura de um órgão o alicerce normativo do outro.
Por fim, se escora nos ensinamentos de Kelsen para afirmar que não existe regra em nosso ordenamento jurídico que estabeleça o princípio do Promotor Natural, como ocorre com o Poder Judiciário, nem norma que preveja a nulidade por sua inobservância.
Pois bem, não se pode anular ou preponderar nenhum dos princípios institucionais (unidade, indivisibilidade e independência funcional) em detrimento dos demais, aniquilando sua eficácia, mas sim conciliá-los e delimitar o âmbito de sua atuação. Seguindo este raciocínio o Min. Sepúlveda Pertence foi preciso: “O problema está, a meu ver, repito, não em vedar a avocação e a designação especial – que são instrumentos da unidade e indivisibilidade da instituição, que a Constituição preservou -, mas, sim, em dar-lhes disciplina legal cerceadora do arbítrio. Nela, como, acentuou o Relator, o exercício desses poderes, pelo Procurador-Geral, ‘só se justificará, pois, nos limites estritos da lei e com respeito absoluto às atribuições funcionais do membro do Ministério Público, as quais constituem objeto de precisa discriminação legal’” .
Dessarte, inconcebível interpretar os princípios institucionais da unidade e indivisibilidade de modo a reduzir o alcance do princípio da independência funcional, além de outros mandamentos constitucionais, como a garantia da inamovibilidade, e o que é mais grave, ferindo letalmente a natureza da nossa instituição.
Ao mesmo tempo em que a insigne Ministra assevera que não se podem confundir princípios e características próprias de uma instituição e aplicá-los a outra, utilizando tal assertiva como premissa, sucumbe no erro pretende evitar.
Da mesma forma que a instituição do Ministério Público se difere do Poder Judiciário, com características e estrutura própria, o Ministério Público brasileiro também se distingue dos Ministérios Públicos de outros Estados, enquanto na Alemanha e na França a instituição é considerada como membro do Poder Executivo, na Itália é parte do Poder Judiciário.
Todos sabemos que o Parquet brasileiro, após a Constituição de 1988, adquiriu contornos próprios tornando-se autônomo e independente dos demais poderes. Assim é, que o constituinte o colocou em capítulo separado e o muniu de certas garantias comuns aos demais poderes, como a independência funcional, administrativa, financeira e orçamentária, tornando-o único e o distanciando das instituições alienígenas do mesmo nome da qual se originou.
Isto porque cada Estado encontra uma forma particular de se desenvolver, tornando particular também as instituições que compõem sua estrutura. Assim foi com o Ministério Público Brasileiro, que além das funções criminais, que se assemelham aos seus congêneres, possui outras que o tornaram Defensor dos interesses sociais e individuais indisponíveis , cabendo-lhe hoje, verbi gratia, a proteção e a defesa do patrimônio público, do consumidor, do meio ambiente, zelando para que os Poderes Públicos e os serviços de relevância pública respeitem os direitos assegurados pela Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia.
Destarte, concessa maxima venia, não se pode considerar os ensinamentos lançados por doutrinadores estrangeiros, ainda mais limitados à seara criminal, para conceituar e delimitar a nossa instituição, apenas pela coincidência de sua denominação, pois, como vimos, trata-se de instituições díspares. A relatora é traída pelo equivoco que pretende evitar ao aplicar ao Ministério Público Brasileiro as lições ministradas aos Ministérios Públicos de outros Estados.
O princípio do Promotor Natural não pode ser analisado somente pelo aspecto criminal da instituição, já que pelo princípio constitucional da unidade, tão aclamada por sua Excelência, a instituição é una e deve ser levada em conta a totalidade de suas funções. Portanto, constitui uma visão por demais niilista considerar o Ministério Público pátrio somente como órgão administrativo encarregado de realizar o programa do governo de combate à criminalidade, conforme trecho transcrito acima, para, a partir daí, desconsiderar a independência funcional em prol da unidade institucional e por fim solapar o princípio do Promotor Natural.
Diferente de seus congêneres, o nosso Ministério Público não esta adstrito a subordinação hierárquica funcional e cada Promotor ou Procurador de Justiça não é um singelo mandatário do chefe da instituição, nem poderia ser diferente: como confiar a defesa da ordem jurídica e do regime democrático a uma instituição infectada pelo autoritarismo com o poder de atuação concentrada nas mãos de um só homem ? inconcebível ! Certamente não foi este o desígnio do legislador constituinte.
Hodiernamente, o Ministério Público não se limita a um mero fiscal da lei, como outrora, mas em agente transformador da realidade social em prol do desenvolvimento do Estado, pugnando para que a Constituição, na expressão de Peter Härbele, seja o espelho da realidade. Como agir em favor dos interesses dos desvalidos, daqueles grupos econômicos e socialmente débeis que se prostram de joelhos diante dos interesses privados se toda a atuação institucional estiver hierarquizada naquele que hoje é escolhido pelo chefe do Executivo ?
Além de tudo, se prende a relatora ao positivismo formalista obsoleto de Kelsen , que negava normatividade jurídica aos princípios, jogando por terra o evolver constitucional dos últimos cinqüenta anos e os ensinamentos de doutrinadores do porte de Vezio Crisafulli, Robert Alexy e Ronald Dworkin (que constituem hoje verdadeiro dogma: de que as normas compreendem igualmente os princípios e as regras), para negar existência ao princípio do Promotor Natural pelo fato de não existir regra no ordenamento jurídico fixando a figura do Promotor Natural.
Ora, os arts. 5º, LIII 127, § 2º e 128, § 5º, I, b da Constituição Federal e os arts. 10, IX, g 15, VIII 24 33, V, entre tantos outros da LONMP, são regras embebidas pelo Princípio do Promotor Natural. Todas elas possuem um sentido nuclear: o de que não é possível extirpar as atribuições de um órgão de execução ou substituir um membro da instituição titular de um órgão de execução por outro, salvo exceções expressas.
Então, as regras dispostas na LONMP são consectários lógicos do mandamento constitucional contido, entre outras regras, no art.5º, LIII: Titular de parcela da soberania do Estado, o Agente Ministerial (Promotor ou Procurador de Justiça) há de ser natural, pois todo processado (penal ou civilmente) tem o direito de o ser pelo Agente titular do cargo criado pela lei, independente de influências estranhas ao exercício de suas atribuições. É o que Canotilho denomina Princípio-garantia: “que visam instituir directa e imediatamente uma garantia dos cidadãos É-lhes atribuída uma densidade de autêntica norma jurídica e uma força determinante, positiva e negativa” . E esta força determinante foi condensada em diversas regras constitucionais (arts. 127, § 2º e 128, § 5º, I, b) e infraconstitucionais (como as da LONMP), efetivando aquela garantia constitucional que está protegida pela cláusula do § 4º do art. 60 da Lex Mater.
Assim, embora acreditando na nossa Corte Constitucional e nos votos dos Augustos Ministros que enxergam o verdadeiro sentido e natureza do nosso Ministério Público, padroeiro da sociedade no embate contra interesses espúrios, é preciso que fiquemos atentos e alertas a mais esta tentativa de fragilização institucional.
Em seu voto sua Excelência se reporta aos fundamentos lançados pelo Ministro Francisco Assis Toledo, no Superior Tribunal de Justiça, in verbis: “Pelo princípio da recepção (...) vige, naquilo que não contrariar a Carta Constitucional, a legislação anterior. E, com efeito, existe a Lei Orgânica do Ministério Público – a Lei Complementar nº 40, de 14 de dezembro de 1981. E o que diz essa Lei Complementar ? Diz o seguinte no art. 7º, V: ‘ao Procurador-Geral da Justiça incumbe, além de outras atribuições, designar, na forma da lei, membros do Ministério Público para o desempenho de funções administrativas ou processuais afetas à Instituição’. Portanto, até que seja substituída essa Lei Complementar, o Procurador-Geral da Justiça pode, mesmo no curso do processo, designar outro membro do Ministério Público para prosseguir na ação penal, dando-lhe a orientação que for cabível no caso concreto... Portanto, cabe ao chefe do MP, no sistema processual vigente, substituir o Promotor que não exercita o poder-dever de oferecer denúncia, se dele discordar, na hipótese em exame...”.
Eis parte de seu voto: “A meu ver, a Constituição Federal de 1988 não contém explícito nem implícito, o princípio do ‘Promotor Natural’ não resultando ele, necessariamente, dos princípios da independência funcional e da inamovibilidade dos membros do Ministério Público (...). Nada impede, porém, que a Lei Orgânica do Ministério Público venha a adotar o princípio do ‘Promotor natural’, o que, aliás, me parece salutar para a instituição e para os jurisdicionados”.
A adoção infraconstitucional do princípio do Promotor Natural denota de outros artigos da referida lei, verbi gratia: arts.10, IX, alíneas e e f 21 24 33, V, dentre outros mais.
Através da ADIN nº 2854/03 a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, pede a declaração da inconstitucionalidade de tal norma sob o fundamento de que seu teor prevê a possibilidade de avocação de qualquer processo pelo PGJ, ainda que previamente autorizado pelo CSMP, e que a ressalva consistente na possibilidade de afastamento da inamovibilidade "por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, por voto de dois terços de seus membros, assegurada ampla defesa" já está prevista no art.15, VIII da LONMP.
Vide HC 81998/GO (DJ, 28/06/2002) e RE 255639/SC (DJ, 28/05/2001).
CARNEIRO, P.C.P. O Ministério Público no processo civil e penal Promotor Natural Atribuição e conflito. Rio de Janeiro: Forense. 6ª ed, 2001. p. 48. E em outra passagem assevera: “este princípio, na realidade, é verdadeira garantia constitucional, menos dos membros do parquet e mais da própria sociedade, do próprio cidadão, que tem assegurado, nos diversos processos em que o MP atua, que nenhuma autoridade ou poder poderá escolher Promotor ou Procurador específico para determinada causa, bem como que o pronunciamento deste membro do MP dar-se-á livremente, sem qualquer tipo de interferência de terceiros”.
Trecho do voto proferido no julgamento do HC nº 67.759-2/RJ (DJ 01/07/1993).
No segundo e definitivo texto substitutivo da Constituição, apresentado pelo relator Deputado Bernardo Cabral na Constituinte de 87/88, foi suprimida o órgão denominado “Defensoria do Povo” e transferida sua função de zelador dos interesses sociais diante dos poderes políticos e econômicos para o Ministério Público.
9 - Próprio das Constituições liberais - em que a realidade coincidia com os textos constitucionais - e que, nas palavras do mestre Paulo Bonavides, negava “a lacunosidade do ordenamento jurídico, todos os problemas que não encontram uma solução lógica contida no sistema são comodamente afastados como pseudoproblemas, acarretando assim, sobretudo na esfera constitucional, um alheamento da realidade, um verdadeiro abismo de contradições entre o rigor dedutivista da Constituição formal e as exigências vitais e inarredáveis da Constituição real”. (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000. p.114).
10 - CANOTILHO, J.J.G. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000. p.1041.
Glauber Tatagiba
Promotor de Justiça – MG
Mestre em Direito do Estado
Professor de Direito Constitucional
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