conamp

Controle Jurisdicional da Denúncia

Por: Renato Marcão

Diante de casos concretos, reiteradamente se renova a justificada inquietação de muitos em querer saber: é cabível a desclassificação da conduta por ocasião do despacho de recebimento da inicial acusatória?
Em regra não é cabível.
A oportunidade para tal desclassificação, em sendo o caso, é por ocasião da sentença, a teor do disposto nos arts. 383 e 384 do CPP.
Doutrina e jurisprudência são unânimes quanto a tal realidade jurídica, que nestes termos é irrecusável.
A esse respeito já se decidiu: “Não pode o magistrado nesta fase, ao proferir o despacho, dar definição jurídica diversa da constante na inicial. Somente ao término da instrução processual, quando prolatar a sentença, é que poderá alterar a capitulação do delito constante na denúncia” (TJGO, RSE 7.548-2/220, 1ª Câm. Crim., rel. Des. Paulo Teles, j. 26-12-2002).
Tal regra, entretanto, atende à generalidade dos casos, mas não a todos, e pressupõe a existência de inicial acusatória ofertada com base em prova produzida no inquérito ou autorizada no teor dos documentos que servirem de base à formação da opinio delicti.
A instauração de ação penal, por si, é suficiente para gerar depreciação moral para acarretar baixa no conceito social do acusado para causar repercussões negativas em seu ambiente de trabalho e danos na harmonia familiar, além de queda na auto-estima e outros dramas psicológicos.
Diante de tais repercussões, que são graves, se houver descompasso entre a prova apresentada com a denúncia ou queixa-crime e a conclusão do autor da ação penal, exposta no requisitório inicial, a intervenção judicial visando ajustar os limites da acusação, já no primeiro despacho, será de rigor.
A imputação não pode afastar-se do conteúdo probatório que lhe serve de suporte.
Para ser viável e comportar recebimento a denúncia (e também a queixa-crime) deve estar formalmente em ordem (arts. 41 e 43 do CPP) e substancialmente autorizada. Deve haver correlação entre os fatos apurados e a imputação, não sendo razoável imaginar que ao juiz caberia apenas o papel de fiscalizador dos aspectos formais do pedido de instauração da ação penal.
Sendo cabível e recomendada a rejeição total da denúncia ou queixa quando faltar “justa causa” para a ação penal, também deverá ocorrer rejeição parcial da acusação inicial quando evidente o descompasso entre a prova apresentada e a adequação jurídica procedida pelo acusador.
“O oferecimento da denúncia pelo Ministério Público submete-se, após a sua formalização, a estrito controle jurisdicional. Essa atividade processual do Poder Judiciário exercida liminarmente no âmbito do Processo Penal condenatório, objetiva, em essência, a própria tutela da intangibilidade do status libertatis do imputado” (STF, RHC 68.926–MG, 1º T., v.u., rel. Min. Celso Mello, DJU de 28-8-1992, p. 13.453).
“O juiz não está absolutamente impedido de fazer, no recebimento da denúncia, exame superficial de imputação. Se verificado abuso completo do poder de denunciar ou ‘excesso de capitulação’, poderá proferir a rejeição total da peça acusatória ou proceder alguma correção. Desta forma, se a denúncia é aproveitável, embora com excesso de capitulação, porque descreve, na verdade, outra modalidade delitiva com reflexos imediatos no status libertatis, é realizável a correção com o recebimento da opinio delicti” (STJ, RHC 12.627-RJ, 5ª T., rel. Min. Félix Fischer, RT 787/564).
O processo não tem espaço para criações intelectuais que acarretam excesso acusatório.
O “poder de acusar” não é ilimitado, e bem por isso deve sofrer restrições jurídicas quando as restrições do bom senso e do bom uso não tiverem sido suficientes.
Por tais razões já se decidiu, acertadamente, que “para a instauração da ação penal é necessário que haja um lastro probatório mínimo que prove a materialidade delitiva e delineie os indícios de autoria” (TJMG, Proc. 1.0079.03.063048-1/001(1), 3ª CCrim., j. 15-3-2005, rela. Desa. Jane Silva, Boletim do Instituto de Ciências Penais, n. 57, Jurisprudência, p. 223. No mesmo sentido: STJ, HC 41.486-SP, 5ª T., j. 17-5-2005, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, v.u.).
Interessante anotar, por derradeiro, que muitas vezes a imputação excessiva tem acarretado a negativa da liberdade provisória, e não se pode admitir a “prisão por opinio delicti do acusador”, como acertadamente leciona GERALDO PRADO (Sistema acusatório. 3ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2005, p. 185) hipótese de prisão cautelar não prevista na Constituição.


* Renato Marcão
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo
Mestre em Direito Penal, Político e Econômico
Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal 
Presidente da AREJ – Academia Rio-pretense de Estudos Jurídicos
Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP),
do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim),
do Instituto de Ciências Penais (ICP),
do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP) e
do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal (IEDPP)
Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva) 
Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva),
e, Curso de Execução Penal (Saraiva).


Imprimir