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A Lei n. 11.340/06 - Violência doméstica e familiar contra a mulher - Perplexidades à vista

Por: Fernando Célio de Brito Nogueira

1. Contextos de aplicação da lei: violência contra a mulher nos âmbitos doméstico e familiar

A nova lei, que passa a vigorar no dia 22 de setembro de 2006, vem para atender a um clamor contra a sensação de impunidade despertada em muitos pela aplicação da Lei do Juizado Especial Criminal aos casos de violência doméstica e familiar praticada, especialmente, contra a mulher.

A lei trata com maior rigor as infrações penais praticadas com violência contra a mulher em situações especiais: nos âmbitos doméstico e familiar.

Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 1.0, doméstico, dentre outras acepções, é adjetivo que significa relativo ao lar, à família, à vida particular de uma pessoa. E familiar, dentre outros significados, é adjetivo que traduz o que é da família ou vive na mesma casa íntimo, que é considerado como fazendo parte da família.

Importante lembrar que poderão ser autores de infrações penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher não apenas os cônjuges ou companheiros, amásios, concubinos, namorados ou amantes, mas os próprios filhos, pais, avós, irmãos, tios, sobrinhos, enteados, padrastos etc, pois a lei não restringe o tratamento mais rigoroso nela previsto a um sujeito ativo específico e determinado. Isso não quer dizer que toda e qualquer agressão contra a mulher dentro de casa irá caracterizar violência doméstica e familiar, pois é necessário que haja alguma espécie de vínculo doméstico ou familiar entre agressor e vítima para que se justifique a aplicação da lei.

E, como não poderia deixar de ser, a nova lei trouxe algumas perplexidades sobre as quais irão se debruçar a doutrina e a jurisprudência, visando solucioná-las:

2. O art. 16 da lei: formalidade para a renúncia à representação – crítica

O art. 16 dispõe que nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Redação imprecisa, pois a lei não trata de ações penais condicionadas à representação da ofendida, mas de infrações penais de ação penal condicionada à representação da ofendida.

A situação, na verdade, é de desistência da representação já formalizada. Só podemos falar em renúncia se a representação não chegou a ser formalizada. Formalidade um tanto quanto questionável, pois se para a representação não há fórmula sacramental, tratando-se de ato que pode ser deduzido perante a autoridade policial, Ministério Público, Magistrado e até mesmo perante o oficial de justiça, que fará certidão, não se justifica negar validade à renúncia ou desistência feitas por pessoa capaz, de forma clara e inequívoca, até mesmo perante o oficial de justiça, que certificará a respeito com a fé-pública inerente às suas funções. De igual modo, excesso de rigor negar validade à desistência ou renúncia da representação reduzidas a termo perante a autoridade policial ou membro do Ministério Público.

Criou-se formalismo que contraria um dos princípios e critérios básicos que regem o funcionamento dos juizados especiais criminais (o da informalidade - art. 62 da Lei 9.099/95).

E esse formalismo, que chega ao ponto de exigir audiência presidida pelo magistrado para que se faça a renúncia ou desistência da representação, não protegerá a mulher vítima de violência doméstica ou familiar, pois ninguém poderá impedi-la de renunciar ao direito de representar ou desistir da representação que eventualmente já tenha formulado. Deverá ela requerer a designação de audiência para essa finalidade? E se requerer e deixar de comparecer? Seria caso de conduzi-la coercitivamente, apenas para que ela renuncie ou desista da representação? Isso atentaria contra a dignidade da mulher, um dos pilares da lei (art. 3º). Assim como a formalidade criada, que representa um excesso de proteção, de um lado paternalista e de outro inócua, que a grande maioria das mulheres, na atualidade, certamente, não desejarão invocar.

A oitiva do Ministério Público (art. 16), nesse aspecto, pouco ou nada adiantará, pois não há como negar à ofendida o direito de renunciar à representação ou desistir da representação já formulada, antes do oferecimento de denúncia (art. 25, CPP).

3. Preferência das ações civis e criminais decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher: crítica

O título VI trata das disposições transitórias e prevê a preferência, nas varas criminais, das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. E mais: enquanto não instalados e estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal (art. 33 e seu parágrafo único).

Mais uma lei editada permite que se vislumbre o já anunciado abismo entre o Brasil real e o Brasil legal. No Estado de São Paulo, não temos até hoje, meados de agosto de 2006, quando escritas estas linhas, nem mesmo o Juizado Especial Criminal previsto desde 1995 instalado em todas as comarcas do Estado, mas em grande parte delas funcionando nas próprias varas criminais que tratam de outros crimes mais graves, como roubos, latrocínios, estupros etc.

É inegável que a violência precisa ser combatida em todas as suas formas. Não se deve diminuir ou menosprezar a gravidade da violência que se pratica contra a mulher no interior dos lares e seus efeitos nefastos, que atingem não só a dignidade da mulher como sujeito de direitos, como também a formação dos filhos, culminando na desestruturação do núcleo familiar, que muitas vezes se torna escola de agressores de outras famílias num futuro bem próximo, num irremediável círculo vicioso, que precisa e deve ser combatido pelo Direito Penal e por políticas públicas amplas, voltadas à vítima, ao agressor e àquelas pessoas que se vejam inseridas nesses contextos.

Deve ser atacada com veemência a violência que se pratica dentro dos lares e no âmbito da família, contra a mulher. Mas as varas criminais, enquanto acumularem as novas funções decorrentes da aplicação da Lei 11.340/06, certamente também terão em suas pautas homicídios (nas comarcas menores ou de vara única), latrocínios, tráfico de drogas, as inéditas e vindouras ações do crime organizado (principalmente nos centros maiores, mas não só neles), roubos, estupros, atentados violentos ao pudor contra crianças, situações de violência contra idosos, pessoas portadoras de deficiência etc, casos graves, que comprometem a integridade do tecido social e que, nem por isso, têm essa preferência prevista em lei. Essa disposição, portanto, há de ser temperada e adequada à realidade das diferentes comarcas, sob pena de provocar tumulto e até mesmo inversão de valores em determinados momentos.

Importante, assim, que haja vontade política do Estado para que o quanto antes se criem, se instalem, se estruturem, com os necessários recursos materiais e humanos, e se coloquem em efetivo funcionamento os Juizados Especiais Criminais em todo o País, como quer a Lei 9.099 desde 1995, assim como, agora, os juizados especializados em violência doméstica e familiar contra a mulher, como prevê a Lei 11.340/06.

4. As vedações da lei: o art. 41, que para ser bem interpretado, deve ser conjugado com os arts. 16 e 17 da lei

Segundo o art. 41, aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Desse artigo, decorre que não caberão mais em infrações penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher a composição civil (art. 74 da Lei 9.099/95), a transação penal (art. 76) e nem tampouco a suspensão condicional do processo (art. 89).

Em princípio, pode parecer que desapareceram também a representação, como condição de procedibilidade trazida pelo art. 88 da Lei 9.099/95 para as hipóteses de lesões corporais dolosas simples e culposas, bem como a possibilidade de adoção do rito procedimental previsto nos arts. 77 e seguinte da Lei 9.099/95 para as infrações penais de menor potencial ofensivo, praticadas em detrimento da mulher na situações tratadas na Lei 11.340/06. Não é essa, contudo, a interpretação a que nos filiamos.

O que quis a lei vedar foram os benefícios decorrentes da aplicação da Lei do Juizado Especial Criminal aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Devemos buscar no conjunto das normas trazidas pela nova lei a vontade e os objetivos do legislador ao editá-la. Para isso, não podemos interpretar isoladamente determinados preceito nela contidos. Devemos conjugar as disposições da lei, sem perder de vista os valores nela resguardados e as finalidades da lei. É a interpretação teleológica ou finalística da lei. Desse modo, segundo nossa interpretação, podem ser extraídas as seguintes conclusões da conjugação dos arts. 16, 17 e 41 da Lei 11.340/06:

a) não se veda a elaboração de termo circunstanciado para as infrações penais de menor potencial ofensivo (pena de até 2 anos ou multa), ainda que praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher não era e não foi proibida a instauração de inquérito policial em tais casos talvez essa interpretação prevaleça, ante os arts. 16, 17 e 41 da lei

b) persiste a exigência de representação nos casos do art. 129, § 9º, do CP, e art. 21, da LCP (por analogia) no caso do art. 147 do CP, o parágrafo único exigia e exige tal condição de procedibilidade se o legislador pretendesse banir referida condição da ação penal pública, não teria trazido a previsão do art. 16 da lei, que impõe formalidade para a renúncia à representação

c) não foi proibida a aplicação do rito sumaríssimo da Lei 9.099/95 aos delitos de menor potencial, ainda que praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, pois disso nenhum prejuízo resultará à proteção jurídica da mulher vítima de violência doméstica ou familiar pelo contrário, tais lides penais terão andamento mais célere (art. 62, Lei 9.099/95) não pode ser esquecida ainda a garantia do devido processo legal que a todos deve alcançar (art. 5º, LIV, CF)

d) o que quis o legislador realmente proibir foi a aplicação de multa isolada, cesta básica e prestação pecuniária nos crimes que quer coibir (art. 17)

e) tratando-se de institutos benéficos ao agente, pela regra do art. 41, ficam proibidas às infrações penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo (arts. 74, 76 e 89 da Lei 9.099/95) não caberão tais institutos nem mesmo em delitos de ação penal pública condicionada à representação ou ação penal privada, se praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da Lei 11.340/06 (arts. 5º a 7º)

f) embora exagerado o formalismo, a renúncia à representação se dará perante o magistrado, ouvido o MP (art. 16) apesar disso, em princípio não haverá motivos para que se deixe de dar validade à renúncia induvidosa feita perante a autoridade policial, perante o oficial de justiça ou mesmo perante o promotor, por pessoa maior e capaz ao que nos parece, apenas nos casos mais graves e naqueles em que se mostre duvidoso o propósito de renunciar ou desistir, ou ainda naqueles casos em que a mulher tenha representado por seus pais ou responsáveis legais, se menor de 18 anos ou incapaz, se justificará cumprir à risca a exigência do art. 16 da lei a disposição robustece o entendimento de que não quis o legislador abolir a exigência de representação estabelecida pelo art. 88 da Lei 9.099/95

g) o delito do art. 147 do Código Penal, em que o legislador protege a paz de espírito das pessoas, embora não seja necessariamente crime praticado com violência, é sem dúvida alcançado pelas proibições contidas nos arts. 17 e 41 da lei, pois muitas vezes se dará nos âmbitos doméstico e familiar e implicará, nos termos da Lei 11.340/06, violência moral e psicológica contra a mulher, nos termos dos arts. 5º a 7º da lei a contravenção penal de vias de fato (art. 21, LCP), pelas mesmas razões, também será alcançada pelas normas restritivas, pois constitui violência física (art. 7º, I) e o legislador empregou no art. 41 o termo crimes em seu sentido mais amplo e esse artigo deve ser conjugado com o 17, que refere casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. As finalidades da nova lei não podem ser esquecidas em nome de uma interpretação puramente literal, que nem sempre atende aos objetivos e ao espírito da lei.

5. Mudanças no CPP, no CP e na LEP

O art. 42 da lei inclui mais um inciso no art. 313 do CPP, que trata da admissibilidade da prisão preventiva em crimes dolosos. É o inciso IV: se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

O art. 43 da lei dá nova redação à circunstância obrigatória e agravante genérica da pena prevista no art. 61, II, f, do Código Penal: f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica.

A parte final do art. 61, II, f, do CP, assemelha-se a uma norma penal em branco, que remete a um complemento contido noutra lei: ou seja, para que se dê a agravante, a conduta de violência contra a mulher deverá encontrar conceituação ou adequação numa das formas previstas na Lei 11.340/06 (arts. 5º a 7º), que contém disposições que cuidam não só da violência física, como também da violência psicológica, sexual e patrimonial contra a mulher.

O art. 44 da lei dá nova redação ao art. 129, § 9º, do Código Penal, e eleva a pena, de 6 meses a 1 ano de detenção, para 3 meses a 3 anos de detenção, e acrescenta o parágrafo 11, que estabelece causa de aumento da pena de 1/3 se o crime for praticado contra pessoa portadora de deficiência.

Anote-se que agora a lesão corporal dolosa leve contra a mulher, com violência doméstica ou familiar (art. 129, § 9º, CP), deixa de ser infração penal de menor potencial ofensivo (pena máxima de 3 anos de detenção). Não bastasse a vedação do art. 41, não caberá mais a transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95), também por não se cuidar mais de infração de menor potencial. E nem tampouco a composição civil e a suspensão condicional do processo (arts. 74 e 89 da Lei 9.099/95), estes por proibição contida no art. 41 da Lei 11.340/06, c.c. art. 17 da mesma lei.

Nos termos do art. 45 da lei, o art. 152 da Lei de Execuções Penais passa a ter um parágrafo único que prevê a possibilidade de o juiz, nos casos de violência doméstica contra a mulher, determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.

6. Irretroatividade da lei nova

Não poderá a nova lei retroagir para alcançar fatos anteriores à sua vigência, por conter em geral disposições mais gravosas ao agente, isso por expressa vedação constitucional, uma vez que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF, c.c. art. 2º, parágrafo único, CP).

Estas considerações integram nosso livro Temas Centrais da Lei do Juizado Especial Criminal, que será lançado em 2006 pela Editora JH Mizuno.


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