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Breves considerações sobre a parte penal da nova Lei Antitóxicos

Por: César Dario Mariano da Silva

Após trinta anos de vigência a Lei nº 6.368/76 foi expressamente revogada pela Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2.006, que entrará em vigor quarenta e cinco dias após sua publicação, ou seja, em 08 de outubro de 2.006. Ela igualmente revogou expressamente a Lei nº 10.409/02.

A lei nova estabelece políticas públicas para o combate ao narcotráfico e alguns mecanismos para o tratamento do usuário e dependentes de drogas. Mantém o Sistema Nacional Antidrogas, que passa a se chamar Sisnad, que tem a finalidade de articular, integrar, organizar e coordenar as atividades relacionadas com a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas, bem como a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas (art. 3º).

Uma das novidades da lei é que o objeto material dos tipos penais passa a ser a droga, assim entendida como as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União (art. 1º, parágrafo único). Até que a União atualize a terminologia da lista mencionada, serão consideradas como drogas as substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1.998 (art. 66).

Como a lei não diz o que é substância ou produto, a melhor definição é a adotada pela indústria farmacêutica. Substância é a matéria-prima “in natura”. Em regra será uma planta ou erva. Produto é a substância manipulada ou processada pelo homem. Assim, a folha da coca seria a substância e a cocaína o seu produto. Com efeito, em todo produto haverá a interferência do homem.

Na parte penal, a maioria dos tipos penais foi mantida, inclusive com redação semelhante, enquanto outros foram criados ou alterados. Também houve “abolitio criminis” em relação a dois tipos penais, que deixaram de viger em nosso ordenamento jurídico. Eles estavam previstos no artigo 12, § 2º inciso III, e artigo 17 da Lei nº 6.368/76.

Ao usuário de drogas será dado tratamento especial. Inovando nosso ordenamento jurídico a essas pessoas poderão ser impostas penas restritivas de direitos cominadas abstratamente no tipo penal (art. 28). Não mais será possível a aplicação de pena privativa de liberdade para o praticante dessa conduta, que continua sendo tipificada como crime.

A mera semeadura, o cultivo ou a colheita de plantas destinadas à preparação de droga, em pequena quantidade e para uso próprio do agente, é crime previsto no artigo 28, § 1º. A pena será a mesma do delito de posse ou porte de droga para uso próprio. A nova lei traz dispositivo específico que pune a aludida conduta quando é destinada ao tráfico (art. 33, § 1º, II). Com isso, acabará a celeuma que ocorria na legislação anterior no que é pertinente àquele que cultivasse, semeasse ou colhesse plantas destinadas à preparação de drogas para seu próprio uso. Para alguns o crime seria equiparado ao tráfico (art. 12, § 1º, II), para outros de posse ou porte de droga para uso próprio (art. 16), havendo, inclusive, quem sustentasse ser o fato atípico.

Caso o condenado por um desses delitos (art. 28, “caput” e § 1º) se negue a cumprir a restrição de direitos, o Juiz poderá adverti-lo ou aplicar-lhe multa, cuja quantidade e valor são fixados pelo artigo 29. Não existe a possibilidade da conversão das penas restritivas de direitos em privativa de liberdade por falta de previsão legal.

As penas previstas para os delitos previstos no artigo 28, “caput” e § 1º (imposição e execução) prescrevem em dois anos, observando-se os prazos interruptivos do lapso prescricional previstos no art. 107 e seguintes do CP (art. 30). O julgamento desses delitos será de competência do Juizado Especial Criminal, salvo se houver concurso com qualquer dos delitos previstos nos artigos 33 a 37. Nesse caso, o procedimento será o previsto nos artigos 54 e seguintes da Lei Antitóxicos (art. 48, § 1º).

O artigo 33, “caput”, e § 1º cuida do tráfico de drogas e de condutas equiparadas. A redação do “caput” é praticamente igual a do artigo 12, “caput”, da lei antiga, mas a pena foi sensivelmente aumentada para o mínimo de cinco e o máximo de quinze anos de reclusão, e pagamento de 500 a 1.500 dias-multa. A quantidade de dias-multa e o seu valor vem traçada pelo artigo 43.

O § 1º, inciso I, do artigo 12 da antiga lei de tóxicos foi mantido pelo artigo 33, § 1º, inciso I, mas sua definição é um pouco diferente. Os objetos materiais passam a ser não somente a matéria prima, mas também o insumo ou outro produto químico destinado à preparação de drogas. A pena é a mesma do “caput” do dispositivo.

A semeadura, o cultivo ou a colheita de plantas destinadas à preparação de drogas para o tráfico é conduta equiparada ao “caput” do artigo 33 com pena equivalente (cinco a quinze anos de reclusão, além da multa). Essa conduta vem definida no artigo 33, § 1º, inciso II.

Aquele que utilizar local ou bem de qualquer natureza de que tenha a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consentir que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico de drogas, praticará o ilícito penal previsto no artigo 33, § 1º, inciso III, cuja pena é a mesma do “caput” do dispositivo. Pela legislação revogada (art. 12, § 2º, II), essa conduta também era equiparada ao tráfico, com a diferença de que a nova norma pune somente a conduta quando a finalidade é o tráfico. Se a finalidade da utilização do local ou bem for o uso indevido de drogas pelo próprio sujeito, o fato em si será atípico, a não ser que se enquadre no artigo 28, “caput”. Havendo o consentimento do sujeito para que outro utilize o local ou o bem para o uso indevido de drogas, o crime será o previsto no artigo 33, § 2º, uma vez que o sujeito estará auxiliando o usuário de drogas.

O 2º do artigo 33 era previsto como conduta equiparada ao tráfico de drogas pelo artigo 12, § 2º, inciso I da Lei nº 6.368/76. O legislador entendeu que aquele que simplesmente induz, instiga ou auxilia alguém ao uso indevido de drogas não merece ter pena semelhante à do traficante. Por isso, criou dispositivo específico com pena sensivelmente reduzida, ou seja, detenção de um a três anos e pagamento de multa no valor de 100 a 300 dias-multa.

O eventual oferecimento de droga e sem objetivo de lucro, a pessoa do relacionamento do agente, para uso em conjunto, passou a ser punido de forma autônoma, com pena de detenção de seis meses a um ano, e pagamento de 700 a 1.500 dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28, ou seja, aquelas aplicadas ao usuário de drogas (art. 33, § 3º). Trata-se de salutar modificação, que causava controvérsia no mundo jurídico. Essa conduta era tratada como tráfico de drogas para alguns e porte ou posse para uso próprio para outros. Após a vigência da lei a conduta de oferecer será considerada como tráfico (art. 33, “caput”) quando o oferecimento for feito com certa habitualidade, ou com objetivo de lucro, ou quando a pessoa não for do relacionamento do agente, ou quando não for para uso em conjunto. Isso porque somente haverá adequação típica no artigo art. 33, § 3º, quando todos os requisitos previstos em sua definição estiverem presentes (oferecimento eventual + gratuidade + pessoa de seu relacionamento + consumo em conjunto).

O § 4º do artigo 33 prevê a redução da pena dos crimes previstos no seu “caput” e § 1º quando o agente for primário, possuir bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas e nem integrar organização criminosa. Faltando qualquer um desses requisitos, a diminuição da pena, que pode ser de um sexto a dois terços, não poderá ser aplicada. Cuida-se de dispositivo que visa beneficiar o pequeno e eventual traficante. O profissional do tráfico e o que teima em delinqüir não merece atenuação da pena. Observamos, ainda, que o dispositivo veda expressamente a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

O artigo 13 da Lei nº 6.368/76, com algumas mudanças em sua definição, agora é previsto no artigo 34 da lei nova com pena de três a dez anos de reclusão e pagamento de 1.200 a 2.000 dias-multa.

A associação para o tráfico continua prevista e tipificada como crime no “caput” do artigo 35, cuja pena é de três a dez anos de reclusão e multa de 700 a 1.200 dias-multa. Sua definição é semelhante à do artigo 14 da Lei nº 6.368/76. Acabou-se, portanto, a discussão sobre o artigo 8º da Lei dos Crimes Hediondos, no que tange à quadrilha ou bando formados para o tráfico de drogas, ter, ou não, revogado o artigo 14 da Lei nº 6.368/76. Como esse dispositivo (art. 35) é posterior à Lei dos Crimes Hediondos, deve ser aplicado em sua integralidade a fatos ocorridos após sua entrada em vigor.

O “caput” do artigo 35 descreve a associação para a prática de qualquer dos crimes previstos nos artigos 33, “caput” e § 1º, e 34, e o parágrafo único, com a mesma pena cominada, tipifica a associação para a prática reiterada do crime descrito no artigo 36 (financiamento e custeio do tráfico). Assim, para a associação para o tráfico, exige-se a reunião de pelo menos duas pessoas com o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes descritos no tipo. Já para a associação para o financiamento ou custeio do tráfico de drogas, além de duas ou mais pessoas em associação, a norma exige o propósito de reiteração na prática do crime descrito no artigo 36. Como já ocorria no regime anterior, há necessidade de vínculo psicológico para a prática dos delitos por tempo indeterminado. O verbo “associarem-se” significa a reunião com vínculo estável e permanente (tempo indeterminado), no caso, de duas ou mais pessoas. A expressão “reiteradamente” significa repetidamente, ou seja, com continuidade. Na associação para o tráfico pode existir, ou não, o propósito de praticar os delitos (arts. 33”, caput”, § 1º ou 34) reiteradamente. Já na associação para o financiamento ou custeio, o tipo exige o propósito de reiteração da prática do crime do artigo 36. No entanto, não há necessidade de que os crimes sejam cometidos, mas que a associação se dê com esse propósito.

Foram criados tipos penais para aquele que custear ou financiar o tráfico de drogas (art. 36) e para aquelas pessoas que são os informantes dos traficantes (art. 37), tendo como maior exemplo os “olheiros”. A pena para o financiador ou custeador será de oito a vinte anos de reclusão, e pagamento de 1.500 a 4.000 dias-multa, e para o informante de dois a seis anos de reclusão, além de 300 a 700 dias multa.

A divergência doutrinária que pode ocorrer quanto ao crime de financiamento ou custeio do tráfico de drogas é se o crime é habitual ou instantâneo. Entendido como habitual, não ocorrendo a reiteração de atos, o sujeito será partícipe do crime para o qual financiou ou custeou (arts. 33, “caput”, § 1º ou 34) com a causa de aumento de pena prevista no artigo 40, inciso VII (o agente custear ou financiar a prática do crime). Por outro lado, entendido como crime instantâneo, não poderá ser aplicada essa causa de aumento de pena para aquele que estiver incurso no crime do artigo 36 a fim de que não ocorra dupla valoração (bis in idem).

Outra questão que vai causar controvérsia é sobre a derrogação, ou não, do artigo 2º, § 1º da Lei nº 8.072/90, que veda a progressão de regime de cumprimento de pena ao autor de tráfico de drogas. A lei nova nada diz sobre o assunto. No entanto, o artigo 44 veda a concessão da liberdade provisória, com ou sem fiança, o sursis, a graça, o indulto, a anistia, a conversão da pena prisional em restritivas de direitos e somente permite o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, caso não seja reincidente específico, aos autores dos crimes previstos no artigo 33, “caput” e § 1º, e 34 a 37. Com isso, surgirão dois posicionamentos:

1) como a lei vedou todos esses benefícios legais, mas nada disse sobre a impossibilidade de progressão de regime prisional, não mais é aplicável os dispositivos pertinentes da Lei nº 8.072/90, que foi derrogada no que tange ao tráfico de drogas. As vedações de benefícios são apenas as constantes da lei nova. Com efeito, a fixação do regime de cumprimento de pena deve seguir o disposto no Código Penal, que em seu artigo 12 diz que as normas gerais serão aplicadas à legislação especial, se ela não dispuser de modo diverso

2) como a lei nova somente revoga a anterior se assim dispuser expressamente, se com ela for incompatível ou se regular inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (art. 2º, § 1º, da LICC), continua sendo aplicável a impossibilidade de progressão de regime ao autor de tráfico de drogas. Isso porque a nova Lei Antitóxicos não revogou expressamente a Lei dos Crimes Hediondos e é plenamente compatível com ela, além de não regular toda a matéria, necessitando ser complementada por outras normas. Aliás, a Lei dos Crimes Hediondos foi criada por determinação constitucional (art. 5º, XLIII) e propugna tratamento mais severo ao autor dessa modalidade de delito e aos equiparados, dentre eles o tráfico de drogas. Com efeito, como a Lei dos Crimes Hediondos tem índole constitucional, deve ser aplicada ao autor de tráfico de drogas, conduta essa que merece tratamento diferenciado e mais grave. E quais seriam os tipos penais abrangidos? Sobre o assunto, poderão surgir dois entendimentos:

a) pela lei anterior, de forma majoritária, entendia-se que somente os crimes descritos nos artigos 12 e 13 eram considerados modalidades de tráfico de drogas, ficando de fora a associação para o tráfico (art. 14). Os artigos 33, “caput” e § 1º, e o 34, guardam similitude com os artigos 12 e 13 da lei revogada, sendo considerados tráfico de drogas para esse fim.

b) foram criados os crimes de financiamento e custeio para o tráfico (art. 36) e o de colaboração como informante para o tráfico (art. 37). Esses delitos nada mais são do que formas de colaboração para o tráfico especialmente tipificadas e punidas, que poderiam ser enquadradas como participação no crime de tráfico com fulcro no art. 29 do CP. Visando uma diferenciação na cominação das penas, o legislador os definiu como crimes autônomos (exceção pluralista à teoria unitária no concurso de pessoas). Cuida-se, à evidência, de espécies de tráfico de drogas e devem ser tratadas como tal, sendo, portanto, igualmente vedada a progressão de regime prisional para o praticante dessas espécies de delito.

No que tange ao livramento condicional aos autores de tráfico de drogas houve pequena modificação. De acordo com o artigo 83, inciso V, do Código Penal, o autor de crime hediondo ou equiparado somente terá direito ao livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, desde que não seja reincidente específico em crime da mesma natureza. Essa reincidência específica diz respeito a posterior cometimento de crime hediondo ou equiparado, após o trânsito em julgado de sentença que tenha condenado o agente por outro crime hediondo ou equiparado. O artigo 44, parágrafo único, da nova Lei de Tóxicos também permite o livramento condicional ao autor dos crimes previstos nos artigos 33, “caput” e § 1º e 34 a 37 após cumprir ao menos dois terços da pena, sendo óbice para o benefício a reincidência específica. No caso, como a lei trata de crimes relacionados a drogas, a reincidência específica ocorrerá quando o sujeito, já definitivamente condenado por um dos crimes previstos nos artigos 33, “caput”, § 1º ou 34 a 37 vier a praticar novamente qualquer um deles. Assim, para efeito de livramento condicional, a reincidência específica dar-se-á apenas nos crimes descritos na Lei de Tóxicos acima mencionados.

Cuidando-se de qualquer crime descrito nos artigos 33 a 39 da Lei nº 11.343/2006 praticado por agente em situação de inimputabilidade em razão de dependência, ou sob o efeito de droga proveniente de caso fortuito ou força maior, deverá ser aplicado o artigo 45, “caput”, do referido diploma legal, que determina a isenção de pena. Nessas mesmas circunstâncias, praticado o crime por agente em situação de semi-imputabilidade, a pena aplicada será reduzida de um a dois terços (art. 46). Nas situações retratadas, não se aplica o artigo 26 ou 28 do Código Penal, mas as disposições da lei especial.

Quando o artigo 45 diz “qualquer que tenha sido a infração praticada”, está se referindo aos crimes descritos no seu Capítulo II, do Título IV. Não há como aplicar os artigos 45 a 47 aos crimes previstos no artigo 28, uma vez que eles estão inseridos em outro título e possuem regra própria para quem for condenado por esses delitos. Como essa norma é especial e cuida de delitos relacionados a tóxicos, não pode ser aplicada a crimes descritos em outro diploma legal, que observarão as disposições gerais pertinentes previstas no Código Penal.

Absolvido o agente pelo reconhecimento pericial da inimputabilidade em razão de dependência de drogas ou de seu efeito proveniente de caso fortuito ou força maior, o juiz poderá determinar, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado (art. 46, parágrafo único). Em nosso entender o tratamento médico poderá ser determinado quando o agente for dependente do uso de drogas. Reconhecido o caso fortuito ou a força maior como causa da inimputabilidade pela ingestão de droga, não vemos como possa ser imposto tratamento médico obrigatório, uma vez que ao autor do fato estará sendo imposta uma sanção mesmo tendo ele agido sem culpa (em sentido amplo). Por outro lado, no caso de condenação e reconhecimento da semi-imputabilidade, a natureza da sentença é condenatória, mas há obrigatoriedade da redução da pena (um a dois terços).


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