Por: César Dario Mariano da Silva
Não é de hoje que leis inaplicáveis em sua integralidade vêm sendo elaboradas.
Em 1.995 foi publicada a Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95), que em muitos de seus aspectos não vingou, como se fosse da natureza da lei “pegar” ou não. No entanto, a figura do Juiz investigador certamente não poderia ser aceita pela comunidade jurídica.
Mais recentemente foi sancionada a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2.006, que trata da violência doméstica e familiar contra a mulher.
O artigo 5º da Lei diz que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão que propicie a morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
O artigo 7º, por sua vez, diz que são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, dentre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Depreende-se do texto legal que são várias as formas de violência doméstica ou familiar contra a mulher. E a norma diz expressamente que essas formas são meramente exemplificativas, haja vista que podem existir outras não previstas na lei especial.
Com efeito, da conjugação dos artigos 5º e 7º, podemos chegar a algumas conclusões:
1) a violência doméstica e familiar somente pode ter como vítima a mulher, independente de sua condição pessoal ou preferência sexual
2) pode ocorrer em qualquer local em que a ofendida resida, ou mesmo fora dele, desde que praticada por pessoa que consigo conviva ou conviveu, com ou sem vínculo familiar, por familiares, por pessoas unidas por laços naturais, de afinidade ou por vontade expressa, ou, ainda, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação e de orientação sexual
3) as formas de agressão podem ser de índole corporal, psicológica, moral, patrimonial ou sexual em qualquer situação retratada no item 2 tendo como vítima apenas a mulher.
Dessa forma, o crime pode ser praticado pelo marido ou companheiro contra a esposa ou companheira, pelo namorado contra a namorada, pela mãe ou pai contra a filha, ou mesmo por pessoas que apenas convivam sob mesmo teto sem qualquer laço de parentesco, desde que a vítima seja mulher. Disso decorre que até a mulher pode ser sujeito ativo, mas a vítima será sempre a mulher.
Os crimes podem ser desde uma simples lesão corporal leve ou ameaça até um estupro ou homicídio, além de delitos patrimoniais como o furto.
Constatada a violência doméstica ou familiar, o juiz, sem a necessidade de ouvir o Ministério Público, no prazo de até 48 horas, poderá aplicar, dentre outras, liminarmente, qualquer das medidas protetivas de urgência previstas no artigo 22 da Lei, conjunta ou separadamente. São elas:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.
Para fazer valer as referidas medidas poderá o Magistrado requisitar auxílio policial (art. 22, § 3º) e, em qualquer fase do inquérito ou processo, decretar a prisão preventiva do agressor (art. 20 c.c. o art. 313, IV, do CPP com a nova redação dada pelo artigo 42 da Lei nº 11.340/2006).
O legislador criou uma espécie de prisão preventiva satisfativa, ou seja, que não visa assegurar a eficácia de um provimento jurisdicional. A prisão preventiva tem e sempre terá caráter cautelar e tem por função o bom andamento do processo e a aplicação de uma sentença penal condenatória. Ela visa apenas garantir a ordem pública ou econômica, assegurar a aplicação da lei penal ou para a conveniência da instrução criminal.
Não pode ser criada uma espécie de prisão preventiva que tenha por finalidade não o processo em si, mas a garantia da execução das medidas protetivas de urgência, que poderão não interferir no normal andamento processual.
Somente a título de argumentação, suponhamos que o marido agressor não aceite parar de freqüentar um clube em comum com a ofendida. A Lei, no caso, possibilita ao Magistrado decretar a prisão preventiva do marido. Além de o marido estar sendo tolhido de freqüentar um lugar público ou privado, violando sua liberdade de ir e vir, está sendo preso por não cumprir uma ordem judicial sem que tenha sido processado e condenado por crime de desobediência, que é de pequeno potencial ofensivo e dificilmente redundaria em condenação à pena privativa de liberdade.
Além disso, não é possível ao agressor ser beneficiado pelos institutos despenalizadores do Juizado Especial Criminal, ou seja, responderá a processo criminal que poderá levar a uma condenação com todas as suas conseqüências penais (art. 41). E na mesma situação, caso o agressor fosse a mulher, e a vítima homem, poderia ser beneficiada pela transação penal ou suspensão condicional do processo.
A lei penal, que sempre foi genérica e impessoal, está sendo empregada para beneficiar uma classe de pessoas (mulheres) e prejudicar outra (homens).
A nova Lei viola fragrantemente o princípio da isonomia, uma vez que homens e mulheres estão sendo tratados de maneira totalmente diferente em situações iguais. Embora não seja comum, há casos em que as agressões domésticas ou familiares têm como vítimas homens e agressores mulheres.
Suponhamos o seguinte caso: o marido ameaça a esposa. Ela se dirige ao Distrito Policial e narra os fatos ao Delegado, que representa ao Juiz solicitando a adoção de medidas protetivas. O Juiz as defere, determinando o afastamento do marido do lar conjugal e fixa alimentos provisórios. Determina, ainda, que o marido não se aproxime da esposa e nem dos filhos, ficando proibido qualquer tipo de comunicação com sua família e a freqüência a lugares em que esposa costuma ir, sob pena de decretação da prisão preventiva. Além disso, embora o crime seja punido com pena inferior a dois anos, o agressor deverá ser julgado de acordo com o procedimento comum, não se lhe aplicando os dispositivos da Lei nº 9.099/95. Por outro lado, se a ameaça partisse da mulher, o máximo que poderia ocorrer é ela ser submetida ao procedimento previsto na Lei nº 9.099/95.
Além das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor (art. 22), a Lei prevê medidas de proteção à pessoa da ofendida que poderão ser aplicadas pelo Magistrado sem prejuízo de outras (art. 23). São elas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos
IV - determinar a separação de corpos.
Para a proteção dos bens da sociedade conjugal ou de propriedade particular da mulher, o Juiz poderá determinar liminarmente as medidas seguintes, além de outras (art. 24):
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida
II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial
III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor
IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.
Os artigos 23 e 24 trazem medidas cautelares de natureza civil, que serão determinadas por juiz com competência criminal, ao menos até a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar. Esses juízes, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, acumularão as competências cível e criminal. Aliás, será garantido o direito de preferência nas varas criminais para o processo e julgamento dessas causas (art. 33). O dispositivo causa espécie, uma vez que será dada preferência de julgamento até sobre processos que envolvam réus presos em que se discute o direito à liberdade de alguém.
Trata-se de medidas que serão extremamente úteis para a proteção pessoal e do patrimônio da mulher, que muitas vezes acaba sendo dilapidado por seu marido ou companheiro.
Não há como negar que houve boa intenção por parte do Legislador. Entretanto, perdeu uma grande oportunidade de criar uma lei que protegesse todos os componentes de uma unidade familiar, sejam homens ou mulheres.
Várias das medidas protetivas violam bens jurídicos extremamente importantes e temos sérias dúvidas acerca de sua constitucionalidade. Não vemos como alguém possa ser proibido de freqüentar determinados lugares a pretexto de proteger a integridade física ou mental da mulher. Como será medida a distância que o agressor não poderá se aproximar da ofendida?
Essas situações e outras análogas, embora interessantes do ponto de vista teórico, são de difícil aplicação e fiscalização na prática.
Para que a Lei possa subsistir caberá ao Magistrado ter bom senso ao decidir e cercar-se de todos os cuidados para não ser enganado. Somente em situações graves e devidamente comprovadas poderá ser concedida uma medida protetiva liminamente, como já ocorre com as medidas cautelares, que exigem o “fumus boni iuris” e o “periculum in mora”.
Não vemos, também, como negar os benefícios da Lei nº 9.099/95 aos homens e possibilita-los para as mulheres na mesma situação fática. Assim, tanto para o agressor quanto para a agressora deverão ser possibilitados os institutos despenalizadores previstos na Lei nº 9.099/95. É uma forma de contornar a grave violação ao princípio da isonomia.
Acreditamos que a nova Lei não será aplicada em sua integralidade ou acabará sendo interpretada de modo a não ser considerada inconstitucional em vários pontos.
O agressor da mulher terá direito a ser julgado pelo Juizado Especial Criminal em homenagem ao princípio da isonomia.
A prisão preventiva somente será decretada quando presentes os requisitos previstos nos artigos 311 a 313 do CPP, e não para simplesmente garantir a eficácia das medidas protetivas de urgência.
Além disso, caberá ao Magistrado cercar-se de cautelas para não ferir desnecessariamente bens jurídicos de extrema valia no intuito de proteger a mulher. Certamente existirão situações montadas e fantasiosas criadas para beneficiar a parte que, em regra, é a mais fraca fisicamente, em detrimento do agressor, que, como já dito, pode ser homem ou mulher.
O melhor, na realidade, é que o Legislador reveja a lei e a modifique para proteger qualquer forma de violência doméstica ou familiar que tenha como vítima o homem ou a mulher.