Por: Amaro Alves de Almeida Neto
1. O parágrafo único do art. 1.704, e o § 2º do art. 1.694 do Código Civil em vigor, cujos enunciados não constavam do revogado diploma, encerram uma evidente antinomia [1] com o sistema jurídico-legal dos alimentos (Subtítulo III, Título II, Livro IV), especialmente com o disposto nos arts. 1.702, 1.704, caput, e o parágrafo único do art. 1.708, do CC, e o art. 19 da Lei do Divórcio, mas que certamente será solucionada pela jurisprudência.
2. A prestação dos alimentos, na separação litigiosa, vem regulada pelo art. 1.702, que reza:
“Art. 1.702. Na separação judicial litigiosa, sendo um dos cônjuges inocente e desprovido de recursos, prestar-lhe-á o outro a pensão alimentícia que o juiz fixar, obedecidos os critérios no art. 1.694.”
3. Essa norma praticamente é repetida no art. 1.704, caput, que dispõe:
“Art. 1.704. Se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado culpado na ação de separação judicial”.
4. Ambos os dispositivos retro mencionados confirmam o entendimento já previsto na Lei do Divórcio [2], o qual sempre foi prestigiado pela doutrina e jurisprudência, sem oposições, qual seja, o cônjuge culpado pela separação judicial não tem direito a alimentos do outro.
5. E na mesma linha de princípio, ou seja, desobrigando o cônjuge inocente de prestar alimentos ao culpado, o art. 1.708 e, especialmente, o seu parágrafo único, estatuem que:
“Art. 1.708. Com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos.
Parágrafo único. Com relação ao credor cessa, também, o direito a alimentos, se tiver procedimento indigno com relação ao devedor.”
6. Entretanto, contrariando frontalmente esse entendimento, o novo Código Civil passou a admitir a possibilidade do cônjuge culpado pela separação receber alimentos do cônjuge inocente, estabelecendo, no § 2º do art. 1.694, que:
“Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.”
6.1. No mesmo sentido, o parágrafo único do mesmo art. 1.704, reza:
“Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência”.
7. Exsurge, assim, evidente a antinomia entre os dispositivos citados, porquanto, como visto, ex vi dos arts. 1.694, § 2º, e 1.704, parágrafo único, do CC, a conduta culposa, injuriosa ou indigna, cometida pelo cônjuge na constância do casamento, não é um impeditivo de uma possível pretensão alimentar, enquanto que para os demais (art. 1.702, 1.704, caput, e 1.708 e parágrafo único, do CC, e 19 da LD), o ato culposo ou indigno exclui o direito a alimentos, do culpado, em face do ex-cônjuge.
8. Tomemos para exame do que foi acima dito, duas hipóteses que revelam a incongruência das novas disposições:
8.1. Autor ingressa com ação de separação litigiosa alegando ser vítima de tentativa de morte pelo cônjuge, dando prova satisfatória do fato, o que caracteriza um ato indigno e uma ofensa ao dever de respeito e consideração imposto pelo matrimônio (CC, art. 1.566, V, e 1.573, II). No curso do processo a mulher faz prova de necessitar dos alimentos do marido ante a ausência de parente para sustentá-la e a impossibilidade de obter emprego. A final, por sentença é decretada a separação por culpa da mulher, sendo-lhe fixada, pelo juiz, entretanto, uma pensão alimentícia a cargo do varão, com base no disposto no art. 1.702, in fine, e § 2º do art. 1.694, do CC. Alguns meses após a separação, a mulher tenta novamente matar o ex-marido, não se consumando o delito. Com a prova da tentativa de homicídio, que é um evidente procedimento indigno [3] contra o devedor de alimentos, este consegue se exonerar da obrigação alimentar em juízo, invocando em prol de sua tese o disposto nos arts. 1.708, parágrafo único, e 1.814, I, [4] ambos do CC.
Ora, a conclusão absurda que extraímos é a de que a tentativa de homicídio contra o cônjuge não é um impeditivo absoluto do direito do ofensor de receber alimentos da vítima, mas é causa suficiente para a cessação da obrigação alimentar se a tentativa de homicídio ocorrer entre ex-cônjuges em resumo, para a lei civil é mais grave tentar contra a vida do ex-cônjuge do que contra a vida do cônjuge.
8.2. Marido ajuíza ação de separação litigiosa alegando adultério da mulher, dando prova satisfatória do fato. A sentença julga a mulher culpada por grave violação do dever de fidelidade imposto pelo casamento, tornando insuportável a vida em comum (CC, arts. 1.566, I, e 1.573, I), decretando a separação. No curso do processo a ré faz prova de ter sido abandonada pelo concubino e de necessitar dos alimentos do marido ante a ausência de parente para sustentá-la e a impossibilidade de conseguir emprego. Aqui também o juiz, na sentença de procedência da separação litigiosa, fixa uma pensão a cargo do varão, cônjuge inocente, sob o permissivo dos arts. 1.702, n fine, e § 2º do art. 1.694, do CC. Alguns meses após a separação, todavia, a mulher ingressa em concubinato com o mesmo homem com quem já se relacionava e, com essa prova, o ex-marido consegue se exonerar da obrigação, com base no art. 1.708, parágrafo único, do CC.
Ora, a outra conclusão absurda é a de que o concubinato no curso do casamento não se revela como um impeditivo absoluto do cônjuge infiel de receber alimentos do cônjuge traído, mas o concubinato do ex-cônjuge é motivo suficiente para a cessação da obrigação alimentar.
9. São hipóteses que encerram uma evidente contradição, necessitando urgentemente de uma solução.
10. E a solução, pensamos, pode ser encontrada na sempre precisa lição de Carlos Maximiliano ou seja, quando o intérprete estiver de frente com um caso de disposições contraditórias, deve inspirar-se em alguns preceitos diretores que ajudam a resolver o problema, dentre os quais destaca-se o seguinte:
“prefere-se o trecho mais claro, lógico, verossímil, de maior utilidade prática e mais em harmonia com a lei em conjunto, os usos, o sistema do Direito vigente e as condições normais da coexistência humana. Sem embargo da diferença de data, origem e escopo, deve a legislação de um Estado ser considerada como um todo orgânico, exeqüível, útil, ligado por uma correlação natural” [5].
11. E, sem dúvida, os textos legais que melhor se ajustam aos fatos acima narrados, e que então devem ser preferidos, são os do art. 1.702, 1.704, caput, 1.708, caput , e parágrafo único, do CC e art. 19 da Lei do Divórcio, os quais mantiveram o entendimento que já vinha sendo adotado pela doutrina e jurisprudência há anos, pelo qual não pode ter direito a alimentos – assistência, amparo - quem não é digno de recebê-los, o que é se extrai da seguinte lição de Cahali:
“...doutrina e jurisprudência se entrelaçam ao assegurar ao ex-marido a exoneração da obrigação alimentícia convencionada ou estatuída em sentença, se a alimentária passa a viver com outro homem, ou degenera em seu comportamento pessoal” (...) “Na verdade, não se compatibiliza com os princípios que informam o Direito de Família, nem mesmo sob o pálio de uma decantada modernidade de costumes, a instituição de uma “previdência privada” sob responsabilidade indefinida do ex-marido” [6]
12. E ainda que não houvesse disposição expressa que tratasse da indignidade na questão dos alimentos, assim já se manifestava a melhor doutrina, como lemos da lição de Caio Mário da Silva Pereira:
“Quid juris, entretanto, se o alimentado tentar contra a vida dos alimentante, ou ofender a sua integridade moral? Embora não se cogite expressamente da espécie, não é razoável que o devedor de alimentos continue a supri-los depois de haver o alimentário tentado contra sua vida, ou incorrido em crime de calúnia ou de injúria contra ele. Há um pressuposto moral que não pode faltar nas relações jurídicas, e que há de presidir à subsistência da obrigação de alimentos.” [7] (destaque nosso)
13. Portanto, constata-se que o § 2º do art. 1.694 e o parágrafo único do art. 1.704, contrariam todo o sistema de Alimentos do nosso ordenamento jurídico, não havendo razão suficiente para sua manutenção.
14. Por último, com a devida venia dos doutos que sustentam o contrário, não nos impressionam os argumentos de que motivos humanitários e de solidariedade humana justificariam a manutenção dos dispositivos que admitem o recebimento de pensão alimentícia pelo cônjuge culpado pela separação.
15. No caso ora em exame, estamos tratando de alimentos sob a forma de obrigação legal, que resulta de um vínculo familiar, o que é bem visível da leitura do art. 1.694, caput, do CC, que reza: “Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”. Só essas pessoas - do mesmo núcleo familiar - estão obrigadas pela lei civil a mutuamente prestar alimentos e desde que não se revelem indignos de recebê-los. As demais pessoas podem, mas não são obrigadas a prestar alimentos, ao menos perante o Direito Positivo.
16. Os alimentos - obrigação jurídico-legal - não se confundem com a caridade, como não se confunde a solidariedade familiar,legal, com a solidariedade humana:
“Assistir o próximo na necessidade é um dever vulgar, a caridade é uma simples virtude, inserida no dever moral. Como observa Beudant, esse dever não é, em princípio, senão um dever de consciência existe, porem, um minimum, que é convertido por lei em dever civil, por cuja execução o direito vela, e sito representa precisamente a obrigação alimentar tem esta seu fundamento na necessidade de proteção do adulto em razão de circunstâncias excepcionais, que transformam o dever moral de assistência em obrigação jurídica de alimentos”. [8]
17. Daí porque, fora do âmbito familiar, não pode o legislador impor a ninguém o dever de prestar alimentos, como também não pode impor, ainda que “por nobres razões humanitárias”, que o cônjuge ofendido preste alimentos rectius: caridade, ao cônjuge ofensor, o que caracteriza, como se diz vulgarmente, fazer cortesia com o chapéu alheio , uma injustiça que se agrava ainda mais quando lembramos que o “alheio” passa a se sujeitar à prisão, diante do disposto no art. 733 e §§ do diploma de regência, por eventual inadimplência de uma “obrigação alimentar” de duvidosa legalidade.
18. Diante do que vimos, o § 2º do art. 1.694 e o parágrafo único do art. 1.704, portanto, encerram uma manifesta incongruência no cotejo com o sistema dos Alimentos, porquanto: a) criam a condenação do inocente b) permitem ao cônjuge culpado exigir alimentos como resultado do casamento que ele destruiu c) contrariam frontalmente os princípios fundamentais de Direito: Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere alterum non laedere, suum cuique tribuere (Ulpiano - D. 1.1.10) - viver honestamente, não prejudicar ninguém, dar a cada um o que é seu.
19. Em suma, contém as normas em comento uma antinomia intolerável, apresentando textos inconciliáveis com todo o sistema jurídico-legal dos alimentos, especialmente com o disposto nos arts. 1.702, 1.704, caput, 1.708, parágrafo único, e 1.814, incisos I e II, todos do Código Civil, e o art. 19 da Lei do Divórcio, o que impõe a sua inaplicabilidade pelos operadores do Direito, e do que certamente se encarregará a jurisprudência dos nossos tribunais.
[1] “Podemos definir antinomia jurídica como a oposição que ocorre entre duas ou mais normas (total ou parcialmente contraditórias), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, as quais colocam o destinatário numa posição insustentável devido à ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado.” Tércio Sampaio Ferraz Jr. in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 7, p. 14.
2 Art. 19 da Lei do Divórcio: “O cônjuge responsável pela separação judicial prestará ao outro, se dela necessitar, a pensão que o juiz fixar”.
[3] Enunciado 264 do CEJ: “Na interpretação do que seja comportamento indigno do credor, apto a fazer cessar o direito a alimentos, aplica-se, por analogia, as hipóteses dos incs. I e II do art. 1.814 do Código Civil.” - in Código Civil e legislação civil em vigor, de Theotonio Negrão, 24a. ed., nota 3 ao art. 1.708.
[4] Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente.
[5] Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, editora Forense, 9a. ed., pgs. 134-136.
[6] Cahali, Dos Alimentos, Saraiva, 4a. ed., pgs. 497 e 508.
[7] Instituições de Direito Civil, Forense, vol. V, 1.981, p. 343.
[8] Cahali, Dos Alimentos, op. cit. p. 30.