Por: Gustavo Senna Miranda
Foi publicada no Diário Oficial da União do dia 08.08.2006 a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, que “Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; Dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências”.
Segundo o art. 46 do referido diploma legal, a Lei 11.340/2006 entrará em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua publicação, ou seja, no dia 22/09/2006.
A lei trouxe diversas novidades, podendo o CACR, com o objetivo de auxiliar os órgãos de execução do Ministério Público, destacar inicialmente as seguintes CONCLUSÕES:
1) A lei cuida de crimes nos quais configuram violência doméstica e familiar contra mulher, que existirá em relação a qualquer conduta (ação ou omissão) baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual e psicológico e dano moral ou patrimonial, de acordo com as situações previstas no art. 5º da Lei nº 11.340/2006, observando as formas de violência previstas no art. 7º do mesmo diploma legal.
2) Através de uma interpretação sistemática da lei, NÃO CONFIGURA CRIME EM QUE HAJA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU FAMILIAR CONTRA A MULHER AS CONDUTAS DE NATUREZA CULPOSA, NÃO SE APLICANDO AS NOVAS REGRAS, PORTANTO, EM RELAÇÃO AOS CRIMES PRATICADOS CONTRA MULHER A TÍTULO DE CULPA. Assim, por exemplo, tendo havido uma lesão corporal culposa contra mulher a competência será dos JECRIM, com todas as conseqüências da Lei nº 9.099/1995: competência dos JECRIM, lavratura de termo circunstanciado, crime condicionado à representação, possibilidade de composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo.
3) Qualquer crime no qual haja violência doméstica ou familiar contra mulher (sobre o significado, vide art. 5º da Lei nº 11.340/2006), ainda que menor potencial ofensivo, deverá haver inquérito policial, conforme se extrai dos arts. 12 e 41 da Lei nº 11.340/2006, merecendo destaque o último artigo citado, que dispõe: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”.
4) Não se aplica a Lei nº 9.099/1995 em relação aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra mulher, independentemente da pena aplicada – conclusão que se extrai dos art. 41 da Lei, acima transcrito.
ATENÇÃO1: Assim, de acordo com a referida regra, OS CRIMES COMETIDOS COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER ESTÃO FORA DA COMPETÊNCIA DOS JECRIM, AINDA QUE A PENA SEJA INFERIOR A DOIS ANOS. Também se valendo do artigo mencionado também não será possível a aplicação de nenhum dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/1995, ou seja: a) composição civil dos danos (art. 74); b) transação penal (art. 76); c) exigência de representação para as lesões leves e culposas; d) suspensão condicional do processo.
Poderá haver divergência em relação à possibilidade de aplicação de suspensão condicional do processo, uma vez que o referido instituto não é exclusivo dos JECRIM, sendo cabível para qualquer crime da competência ou não dos JECRIM, desde que a pena mínima cominada seja igual ou inferior a um ano. A não aplicação, em termos absolutos, da suspensão condicional do processo poderá acabar sendo considerada uma posição inconstitucional, em vista do princípio da proporcionalidade, eis que o instituto será cabível em outros crimes mais graves, porém, não incidirá quando houver violência doméstica e familiar contra mulher. Veremos como a doutrina e jurisprudência irão se manifestar sobre o tema.
ATENÇÃO2: CONSIDERANDO QUE OS INSTITUTOS DESPENALIZADORES DA LEI Nº 9.099/1995 SÃO CONSIDERADOS NORMAS DE NATUREZA MISTA (PENAL E PROCESSUAL PENAL AO MESMO TEMPO), NO CONFLITO TEMPORAL DE LEIS, DEVE SER APLICADA A NORMA MAIS BENIGNA. ASSIM, AS NOVAS REGRAS DA LEI Nº 11.340/2006, DE NATUREZA PENAL OU MISTA – COMO A DO ART. 41 –, POR CONFIGURAM CASO DE“NOVATIO LEGIS IN PEJUS”, SOMENTE PODERÃO SER APLICADAS A PARTIR DA DATA EM QUE A LEI ENTRAR EM VIGOR. PORTANTO, OS CASOS QUE ESTÃO EM CURSO NOS JECRIM DEVERÃO LÁ PERMANECER, SEGUINDO SEU CURSO NORMAL, INCLUSIVE COM A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DOS CITADOS INSTITUTOS DESPENALIZADORES. DESTARTE, AS NOVAS REGRAS DE CONTEÚDO PENAL E DE NATUREZA MISTA SOMENTE TERÃO INCIDÊNCIA A PARTIR DO DIA 22/09/2006, OU SEJA, QUANDO A LEI ENTRAR EM VIGOR.
5) Na elaboração de eventual denúncia por crime no qual haja indícios de ocorrência de violência doméstica e familiar contra mulher, o órgão de execução do Ministério Público deverá ter o cuidado de narrar na inicial alguma das situações que caracterizam tal tipo de violência, de conformidade com os arts. 5º e 7º, da Lei nº 11.340/2006, sob pena de inépcia. Destarte, será recomendável – por se de boa técnica - combinar o artigo de Código Penal relativo ao crime (lesão corporal, homicídio, delitos sexuais etc.), com o citado art. 5º da nova Lei.
6) Apesar do que estabelece o art. 16 da Lei nº 11.340/2006 (“Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”), não há previsão na lei de crimes de ação penal pública condicionada à representação, sendo, aparentemente, uma regra totalmente inócua.
7) Em sendo o crime cometido com violência doméstica e familiar contra mulher não será possível a aplicação – como pena alternativa – de pena de prestação de “cestas básicas” ou de outra prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de pena de multa (art. 17 da Lei nº 11.340/2006). Assim, havendo condenação do agente a uma pena igual ou inferior a 4 (quatro) anos, deverá se ter atenção para a nova regra, que revogou parcialmente o art. 45, § 1º, do CP, pois não será possível a aplicação de pena de prestação pecuniária quando o crime for cometido com violência doméstica e familiar contra mulher.
8) Independente da pena prevista para o delito, sendo o crime cometido com violência doméstica e familiar contra mulher, será possível a decretação de prisão preventiva (art. 20, da Lei nº 11.340/2006), observando-se - é claro - os requisitos previstos nos arts. 312 e seguintes do CPP. Importante destacar que a nova Lei, pelo seu art. 42, acrescentou um inc. IV ao art. 313 do CPP, permitindo a decretação de prisão preventiva “se o crime envolver violência doméstica ou familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”.
9) De acordo com o art. 21 da nova Lei, no curso dos processos criminais instaurados contra o agressor que tenha cometido delito que importe violência doméstica e familiar contra mulher, a ofendida deverá ser intimada de todos atos processuais relativos ao agressor (ex: interrogatório, oitiva de testemunhas etc.), destacando-se os atos relativos à prisão e de revogação da custódia cautelar (relaxamento, liberdade provisória, revogação). Também haverá necessidade que igual medida seja adotada em relação à execução penal.
10) Na proteção da mulher vítima de crime de violência doméstica e familiar, para maior tutela dos direitos da ofendida, o juiz poderá decretar – cumulativa ou alternativamente - as medidas protetivas e de urgência previstas nos arts. 22 e 23 da Lei nº 11.340/2006, que, portanto, também poderão ser requeridas pelo Ministério Público.
11) Novamente uma nova lei reforça o papel do MINISTÉRIO PÚBLICO na defesa dos direitos individuais e sociais indisponíveis, com destaque para a tutela da dignidade da pessoa humana. A Lei nº 11.340/2006 contemplou a atuação do Ministério Público nos arts. 25 e 26, consagrando sua posição como órgão agente ou interveniente, inclusive no que diz respeito à tutela coletiva (art. 37).
12) A COMPETÊNCIA para julgamento dos crimes em que haja violência doméstica e familiar contra mulher caberá aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (art. 14 da nova Lei). Porém, ENQUANTO QUE NÃO FOREM CRIADOS E ESTRUTURADOS, A COMPETÊNCIA CABERÁ A UMA VARA CRIMINAL COMUM (art. 33, da Lei nº 11.340/2006).
ATENÇÃO: Uma das grandes inovações da Lei diz respeito à competência cumulativa de questões cíveis e criminais pelo juiz criminal, havendo clara exceção ao sistema da separação e independência de instâncias, pelo qual as demandas criminais são julgadas por um juiz criminal, e as cíveis por um juiz civil. Adotou a lei o sistema da confusão, pelo qual é possível o ajuizamento das duas pretensões – civil e penal – num só pedido, o que já é uma realidade em alguns países, como a Alemanha (v. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 2º volume. 21ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 8/9).
13) O art. 43 da Lei nº 11.340/2006 alterou a letra “f” do art. 61 do CP – que trata das circunstâncias agravantes – dando-lhe nova redação.
14) Foi alterado pelo art. 44 da nova Lei o § 9º do art., 129 do CP, que passou a ter a seguinte redação: “§ 9º. Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade. Pena – detenção, de 3(três) meses a 3(três) anos”. Portanto, ainda que a lesão corporal seja leve, com a alteração, caso ocorra uma das situações previstas no aludido parágrafo, a tipificação deverá nele ser enquadrada, desconsiderando-se o caputdo art. 129 do CP. O tipo, que antes era de menor potencial ofensivo (pena máxima de 1 ano) passou a ser infração de médio potencial ofensivo, estando, portanto, fora da competência dos JECRIM. Trata-se de norma penal mais prejudical (novatio legis in pejus), não podendo, assim retroagir.
Foi acrescentado ainda pelo mesmo artigo o § 11 ao art. 129 do CP, prevendo causa de aumento de pena caso o crime previsto no novo § 9º do mesmo artigo tenha sido cometido contra pessoa portadora de deficiência. Também se trata de norma penal mais gravosa (novatio legis in pejus), não podendo também retroagir.
ASSIM, OS ÓRGÃOS DE EXECUÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DEVERÃO TER ATENÇÃO EM RELAÇÃO AOS CRIMES DE LESÃO CORPORAL DOLOSA LEVE QUANDO A VÍTIMA FOR UMA DAS PESSOAS ACIMA MENCIONADAS E O AGRESSOR TENHA SE APROVEITADO DAS RELAÇÕES DOMÉSTICAS, DE COABITAÇÃO OU HOSPITALIDADE. NA HIPÓTESE, PORTANTO, A INFRAÇÃO DEIXA DE SER DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO EM RAZÃO DA PENA MÁXIMA COMINADA EM ABSTRATO (3 ANOS). TRATA-SE DE REGRA CLARA QUE TENTA COIBIR A VIOLÊNCIA INTRA-FAMILIAR.
São essas as conclusões iniciais que podem ser extraídas da nova lei pelo CACR, esperando mais uma vez ter contribuído com a atualização dos órgãos de execução do Ministério Público, com especial destaque para a atuação prática daqueles que atuam na área criminal.
Aguardamos sugestões e manifestações dos colegas a respeito da nova lei, que poderão ser encaminhadas para o e-mail do CACR (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.).
Atenciosamente,
Gustavo Senna Miranda
Promotor de Justiça/Dirigente do CACR