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Corrupção pública: uma pandemia nacional

Por: Gustavo Senna Miranda

Gustavo Senna Miranda

Promotor de Justiça – ES

Professor da FDV

Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de corrupção; 3. corrupção como ilícito de natureza difusa; 4. Das conseqüências da corrupção e sua influência para os direitos humanos; 5. Fatores de disseminação da corrupção; 6. Entraves para o combate à corrupção; 7. Da legislação penal para o combate à corrupção; 8. Da insuficiência da legislação penal para o combate à corrupção; 9. conclusões; Referências.

1. Introdução

“Se o único ideal dos homens é a busca da felicidade pessoal, por meio do acúmulo de bens materiais, a humanidade é uma espécie diminuída” (Eric Hobsbawm).

É inquestionável que a Administração Pública exerce um papel fundamental para preservação do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Realmente, da Administração Pública depende a concretização de direitos sociais fundamentais, como saúde, educação, alimentação, trabalho, habitação, lazer, segurança publica, enfim, direitos essenciais para a própria sobrevivência humana, com o mínimo de dignidade.

Nesse sentido, a concretização de tais direitos é incompatível com uma administração desonesta e negligente. Fundamental, portanto, que todo agente público – desde o do mais alto escalão até o mais baixo – atue com observância irrestrita aos princípios que regem a boa Administração Pública, não sendo por outro sentido que foram eles cristalizados no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988, regra que serve de norte para o administrador público – em sentido amplo -, da qual não pode se afastar, sob pena de sacrificar vários direitos fundamentais.

Assim, um dos mais graves problemas enfrentados pela coletividade é justamente o de garantir uma administração proba, o que atualmente parece ser uma utopia, vez que diuturnamente a população brasileira testemunha, estarrecida, inúmeros escândalos de corrupção envolvendo agentes públicos e políticos de diversos escalões, que agem de forma a capturar o Estado fazendo com que ele funcione a seu favor, numa total inversão de valores, que aumenta ainda mais o abismo social, exterminando direitos essenciais da população, deixando o Brasil numa triste posição no cenário mundial: de um País com um dos mais altos índices de desigualdade social, com diversas regiões entre aquelas com o menor índice de desenvolvimento humano do planeta.

O Quadro realmente é desanimador. Vive o sofrido povo brasileiro uma verdadeira era de desencantos. Porém, não há como aceitar passivamente esse quadro de desolação, de descaso com a coisa pública. Com efeito, os atos caracterizadores de improbidade administrativa, pelos seus efeitos deletérios, devem ser controlados e combatidos com a máxima efetividade, vez que representam grande risco para a manutenção do próprio Estado Democrático de Direito, mormente através de uma de suas faces mais perversa: a corrupção, cujo combate tem que estar enraizado no coração e na mente de cada um, e que, de forma metafórica, é como um “cano de água” quando em seu percurso há diversos furos, o que importa em desperdício de uma necessidade vital da pessoa humana.

Frise-se que o combate à corrupção não é discurso demagógico. É lógico que medidas preventivas devem ser pensadas. Porém, não se pode olvidar de medidas repressivas, a fim de que não se generalize uma sensação de impunidade. Não por outra razão que o sancionamento dos atos de improbidade administrativa é inegavelmente um dos comandos da atual Constituição Federal, como se percebe pelo seu art. 37, § 4, que determina a punição de tais condutas com graves sanções, o que foi regulamentado através de uma das leis mais importantes para a concretização dos direitos sociais: a Lei nº 8.429/1992, que tipifica os atos de improbidade administrativa, cominando as respectivas sanções, sem prejuízo da ação penal cabível, um outro importante instrumento para um efetivo enfrentamento desse grave problema.

É premente para os operadores jurídicos a reflexão sobre os graves efeitos da corrupção, notadamente no contexto atual, diante da lamentável constatação de verdadeiro descaso com a coisa pública, do absoluto desrespeito por parte dos agentes públicos e políticos aos princípios que regem a boa Administração Pública, fulminando diversos direitos, em especial os direitos sociais cristalizados na atual Constituição Federal, comprometendo, repita-se mais uma vez, a manutenção do próprio Estado Democrático de Direito, cujo cenário ficou ainda mais caótico no ano de 2005, quando a população assistiu desencantada a corrupção vencer a esperança.

Nessa linha, o presente estudo tem por objetivo fazer uma análise no problema da corrupção – sua origem e conceito, suas conseqüências etc. -, sendo importante destacar que nos ocuparemos tão-somente da corrupção pública, vez que a corrupção privada demandaria estudo em separado, em vista de suas peculiaridades e distinção nas estratégias de combate.

2. Conceito de corrupção e sua influência para os direitos humanos

Sob o prisma léxico múltiplos são os significados do termo corrupção, expressão que se origina do latim corruptione, que dá a idéia de corromper, que por sua vez significa decomposição, putrefação, depravação, desmoralização, devassidão, suborno ou peita, chegando-se até a afirmar que suas raízes se insinuam no cerne da alma humana, eis que os atos que a caracterizam se encontram ligados a uma fraqueza moral.[1] Assim, em resumo, a corrupção tanto pode indicar a idéia de destruição como a de mera degradação, ocasião em que assumirá uma perspectiva natural, como acontecimento efetivamente verificado na realidade fenomênica, ou meramente valorativa.

Porém, atualmente a corrupção vem sendo ligada aos atos desviantes dos agentes públicos (em sentido amplo) frente à Administração Pública, materializados na conduta abusiva no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, com o objetivo de obter ganhos privados e, conseqüentemente, lesando o patrimônio público.

Não se trata de fenômeno atual da sociedade moderna, eis que sua prática remonta a épocas passadas de nossa história, conforme salientam os doutrinadores. Assim, segundo Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Júnior, a corrupção pública configura fenômeno antigo, que inclusive já encontrava previsão na Lei das XII Tábuas, que punia severamente condutas desonestas dos juízes, aplicando àqueles que recebiam pecúnia a pena capital, destacando que a severidade da punição era comum entre os povos da antiguidade. [2]

Porém, não se desconhece que a corrupção também incide - de forma igualmente grave - na esfera particular, sendo emblemática a questão da sonegação fiscal no Brasil. Nesse ponto, conforme observa Luciano Feldens, em excelente obra sobre crimes de colarinho branco, no ano de 1998 a Secretaria da Receita Federal diagnosticou que 11,7 milhões de pessoas e 464.363 empresas não declararam imposto de renda, sendo paradoxal a constatação de que tiveram capacidade financeira suficiente para movimentar nas instituições financeiras (bancos) 341,6 bilhões de reais, valor esse que escapou integralmente ao fisco. Só para se ter uma idéia do que isso representa, observa o autor que no mesmo exercício (1998), o Produto Interno Bruto brasileiro, que, como se sabe, é o índice que registra toda a produção de bens e serviços do País e representa, em termos Monetários, o porte da economia nacional, alcançou o patamar de R$ 899,8 bilhões.[3]

Assim, ao lado da corrupção pública temos a corrupção privada. Porém, esta última, pela sua complexidade e peculiaridades, merece estudo específico, o que foge aos objetivos desses comentários. Daí porque nos próximos pontos nos limitaremos à corrupção pública, pela gravidade que representa para a manutenção do Estado Democrático de Direito.

Realmente, na esfera pública a questão da corrupção se agrava ainda mais, notadamente quando a Administração Pública deve respeito irrestrito aos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade e eficiência, conforme dispõe o art. 37 da Constituição Federal, dos quais o agente público não pode se afastar, sob pena de comprometer o adequado funcionamento da administração e, conseqüentemente, a deficiência das prestações sociais de responsabilidade do Estado.[4]

Logo, por conseqüência, se pode dizer que os atos de corrupção pública, que podem ocorrer de diversas formas[5], acabam sendo os mais elevados grau de improbidade administrativa, uma vez que o agente público, dolosamente, atua visando o benefício próprio ou alheio, num total desrespeito aos padrões normativos do sistema, quando deveria dirigir sua conduta com observância estrita aos princípios que regem a Administração Pública, do que se conclui que sua ação desviante configura ato ilegal e imoral, vez que substitui as finalidades da função pública pelo interesse particular na obtenção de alguma vantagem, seja patrimonial ou moral.

Daí porque da necessidade de que as normas existentes para seu combate e controle, como será explicitado mais adiante, não podem mais se restringir tão-somente à esfera penal, merecendo, outrossim, ser interpretadas com a máxima efetividade, o que se afigura fundamental para a preservação do Estado Democrático de Direito e da própria credibilidade da Administração Pública[6], já que, com isso, se objetiva resguardar não apenas o patrimônio público, mas, também, a probidade administrativa, cuja importância foi cristalizada pela atual Constituição Federal (art. 37, § 4º), como possibilidade de punição civil, penal e administrativa.

Porém, infelizmente, nos dias atuais presenciamos diversos casos de corrupção pública campeando em todo Brasil[7], o que se deve principalmente em decorrência da liberdade de imprensa e do avanço dos meios tecnológicos. Referidas práticas têm deixado a população atônita, mormente diante da audácia e o total descaso com a coisa pública e com os princípios consagrados na Constituição Federal, em especial os relacionados aos direitos humanos, uma vez que a população acaba sendo privada de suas necessidades básicas.

Só para ilustrar, é de se recordar a denominada “Máfia do Sangue”, que há pouco tempo a população acompanhou, estarrecida, como mais um dos inúmeros casos de corrupção no Brasil, e que foi descoberta pela chamada “Operação Vampiro”, desenvolvida pela Polícia Federal em conjunto com o Ministério Público Federal.

Os denominados “vampiros da mala preta” formaram uma organização criminosa composta por servidores do Ministério da Saúde, empresários, lobistas etc., que durante mais de uma década (1990 a 2002), instalou um esquema de fraudes no setor de compras do Ministério da Saúde, que fez sangrar os cofres públicos em mais de 2 (dois) bilhões de reais, tendo tal esquema sobrevivido a doze ministros.

Assim, recursos essenciais à saúde, direito fundamental da pessoa humana, eram dolosamente desviados para benefício de particulares e servidores públicos, estes últimos valendo-se de suas funções para o cometimento de tão hedionda conduta. Serviram-se, ao invés de servir, enquanto que grande parcela da população brasileira padecia nas tristes filas dos hospitais públicos.

Infelizmente, esse é somente apenas mais um dos inúmeros casos de que se tem notícia. Muitos outros poderiam ser enumerados na triste história brasileira, o que é impossível de ser realizado na presente dissertação, eis que demandaria um estudo específico sobre o tema. Porém, só para se ter uma idéia da gravidade do problema da corrupção, façamos uma breve análise do melancólico exemplo das mais de cinco mil prefeituras existentes pelo Brasil.

Em matéria de capa publicada na revista Veja, edição nº 17, de 28/04/2004, intitulada “Pragas urbanas – Desperdício, desvio e corrupção”, que faz um mapeamento da corrupção e inépcia nas prefeituras do Brasil, é noticiado que são desviados mais de 20 bilhões de reais por ano, o que representa um aumento de 400% na média de recursos federais desviados pelas prefeituras nos últimos cinco anos[8].

Aliás, em reportagem mais recente publicada em outra revista de circulação nacional, entre os diversos casos de corrupção citados, destacamos mais um relacionado às administrações municipais, que diz respeito à descoberta de um esquema no interior do Estado de Alagoas envolvendo um grupo composto por diversos agentes públicos, entre os quais se encontram oito prefeitos. Segundo a matéria, apurou-se que referido grupo é responsável pelo desvio de verbas públicas do Fundo Nacional de Ensino Fundamental (Fundef) e do Sistema Único de Saúde, que foram estimados em cerca de R$ 2 milhões, chamando atenção o caso pelo fato de que as regiões em que a organização criminosa operava estão entre aquelas com os piores indicadores de qualidade de vida do País, conforme os padrões da ONU.[9]

Destaque-se que isso só diz respeito às administrações municipais, não se olvidando a incidência da corrupção em outras esferas da Administração Pública. É de ser lembrado aqui os recentes escândalos do “mensalão” (compra de votos) e do financiamento de campanhas, ambos divulgados a exaustão nos meios de comunicação a partir do final do primeiro semestre do ano de 2005, que, em tese, configuram novos casos a atingir a já combalida credibilidade do Congresso Nacional e do próprio Governo Federal, não só perante a população, mas, também, perante a comunidade internacional, não sendo por outro sentido que o Brasil, segundo o ranking de índice de percepção de corrupção divulgado pela Ong Transparência Internacional[10] em 2004, ocupa uma incomoda 59ª posição entre 146 países avaliados, obtendo a pontuação de 3,9, repetindo o desempenho obtido no ano anterior[11], situação que não melhorou em nada no ano de 2005, no qual o Brasil aparece agora em 62ª posição entre 159 países, obtendo pontuação de 3,7.[12]

E assim, conforme os nomes de batismos dados às operações de combate à corrupção no Poder Público, dia-a-dia, em número cada mais crescente, acompanhamos uma sucessão de “pragas” que assolam o País: vampiros, gafanhotos, sanguessugas, ratos, mais parecendo um zoológico[13], sendo que no Estado Espírito Santo a essas pragas é acrescentado mais um fenômeno, agora sobrenatural, a existência de fantasmas, apesar de terem CPF. [14]

Tais fatos deixam patente uma constatação inexorável: a corrupção acarreta a diminuição na qualidade de vida da população, sendo uma doença mundial[15], que compromete a manutenção do Estado Democrático de Direito, sendo, portanto, um ilícito que viola os direitos fundamentais da pessoa humana, na medida em que acaba configurando sério risco a tudo que dá respeitabilidade ao homem, como direito à vida, dignidade, ao trabalho, à moradia, à educação, à justiça social, à alimentação, à segurança pública etc., enfim, das prestações sociais obrigatórias por parte do Estado, como representante da sociedade.

Portanto, os atos de corrupção acabam representando séria violação ao princípio da fraternidade (ou da solidariedade) que configura, juntamente com os princípios da liberdade e da igualdade, princípios axiológicos supremos dos sistemas de direitos humanos. Com efeito, Como ensina Fábio Konder Comparato, é com base no princípio da solidariedade que os denominados direitos sociais passaram a ser reconhecidos como direitos humanos, na medida em que ostentam o importante papel de servir como garantia de amparo e proteção social aos hipossuficientes, para que assim possam viver dignamente.[16]

Não é por outro sentido que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, dispõe em seu art. 15 que “a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela administração”.

Assim, os atos de corrupção praticados por agentes públicos criam verdaeiro paradoxo, uma vez que acabam por transformar o Estado em inimigo justamente daquele que representa e o qual deve proteger: o povo, provocando a segregação das pessoas, que são privadas de seus mínimos direitos.

Logo, repita-se, é patente a violação aos direitos fundamentais, pois nas palavras de Regis Fernandes de Oliveira,

“Se entendermos os direitos humanos como aqueles bens da vida consagrados nas Constituições e que permitem uma vida digna, inequívoca a conclusão de que a corrupção impede a plena preservação dos direitos sagrados do indivíduo. Os direitos fundamentais vêm consignados nos textos formais das Constituições das grandes democracias. Só que o desvio dos recursos impede a plena execução material dos direitos consagrados nos modernos diplomas legais”.[17]

Assim, arremata o autor que a

“Conseqüência evidente da corrupção é a agressão aos direitos humanos. Na medida em que os recursos públicos são desviados para pagamento de propinas, para extorsão de servidores, para fraudes, para compra de consciências, para liberação acelerada de verbas, para ganho em licitações, para não pagamento de tributos, para sonegação, enfim, para deturpação de qualquer espécie, o lesado não é o governo, mas o ser humano”.[18]

Porém, os recentes acontecimentos não podem deixar a falsa impressão de que a corrupção é um problema atual no Brasil. Pelo contrário, os estudos demonstram que ela remonta ao descobrimento, permeando até os dias atuais, do que se constata que vivemos mais de 500 anos de corrupção, como destaca Sérgio Habib em obra sobre o tema, de leitura obrigatória.[19]

Trata-se, assim, de problema antigo, tanto que o Padre Antônio Vieira, em lapidar observação que continua atual, já asseverava:

“Não são só os ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os reis encomendam os exercícios e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam”.[20]

Portanto, não se pode ignorar que a corrupção sempre existiu, não sendo uma exclusividade do recente Estado Democrático de Direito brasileiro, pois o que ocorria em épocas pretéritas, principalmente em regimes autoritários, como o que vivenciamos em passado não tão distante da nossa história, era o desconhecimento da população, o que se devia a diversos fatores, mas principalmente pela ausência de liberdade de imprensa e de atuação efetiva de instituições democráticas de defesa dos direitos da coletividade, como o Ministério Público.

Destarte, a sensação de aumento da corrupção, que ultimamente vem sendo turbinada com escândalos de toda ordem envolvendo a alta cúpula do Governo Federal[21] e membros do Congresso Nacional, se deve principalmente pelo fato de que agora temos liberdade para retirarmos o véu que encobria a corrupção, mostrando sua face perversa[22], de tantos efeitos deletérios para a coletividade.

3. Corrupção como ilícito de natureza difusa

Os ensinamentos do Padre Antônio Vieira, como destacado, continuam de uma atualidade impressionante, revelando a gravidade que a corrupção representa, mormente quando sua incidência se dá no setor público, pois, como destacamos, acaba comprometendo a prestação das obrigações sociais assumidas pelo Estado, fazendo com que essas obrigações fundamentais para a pessoa humana, infelizmente, fiquem apenas na promessa, nunca passando para o plano real.

De fato, como o advento da Constituição Federal de 1988 mudou-se o eixo do constitucionalismo brasileiro, com relevantes inovações voltadas para um Estado “Democrático” e de “Direito” preocupado com o destino do povo, com uma carga axiológica calcada em princípios que incorporam um componente de transformação inspiradas principalmente nas reformas democráticas provenientes dos movimentos sociais dos anos 80. Portanto, é fundamental que o desempenho da função pública seja encarado como um poder/dever do agente público, que não tem aptidão para optar por seu exercício ou não, sendo impróprio falar-se aqui em discricionariedade, uma vez que o agente não tem disponibilidade dele. Sendo assim, se pode concluir que o agente tem o poder porque tem que cumprir um dever, dever esse de finalidade legal e de interesse da coletividade, e nunca, sob pena de patente desvio e desrespeito aos princípios constitucionais, o pessoal.

Logo, chega-se à inexorável conclusão de que a competência administrativa não é uma faculdade que se outorga ao agente público, pois configura atribuição de um poder de atuação vinculado ao dever de realizar uma finalidade pública que a lei determina, sendo, portanto, um corolário do princípio da legalidade, do qual o agente público não pode se afastar.

Com efeito, por qualquer ângulo de apreciação, o exercício da função pública oferece a inafastável idéia de satisfação do interesse coletivo, sob os auspícios da legalidade dos direitos fundamentais. De fato, em um Estado que se diz Democrático e de Direito, como o nosso, que anuncia a semente popular de seu poder, só pode ser o povo o destinatário de toda atividade pública, pois é ao povo que deve a Administração Pública servir, na busca do bem-estar social. Portanto, os agentes públicos, no exercício do mandato, cargo, emprego ou função pública, atuam em nome do povo, sendo inconcebível que se valham da função pública para satisfação de interesses pessoais, numa total inversão de valores.

Assim, não resta dúvida que quando aquele que tem por função servir o público, se vale dela para satisfazer interesses particulares, atinge interesse de toda coletividade, causando vários reflexos deletérios na sociedade, do que se conclui que seu ilícito é de natureza difusa, eis que atinge vítimas indeterminadas.

Inegavelmente, muito pior que o ladrão, o homicida, enfim, do criminoso comum, é o corrupto, o dilapidador dos cofres públicos, da moral administrativa, pois esse último, com sua conduta ilícita, acaba atingindo o direito de um número indeterminado de pessoas, impossibilitando investimentos em diversas áreas e projetos sociais, como, por exemplo, os relativos à segurança pública, no combate à fome, à educação, saúde, à construção e reforma de escolas, hospitais etc., enfim, acaba-se privando milhões de brasileiros de suas necessidades básicas, fundamentais para a sobrevivência da pessoa humana.

Tal constatação é visível, bastando analisar as conseqüências da corrupção, como demonstraremos abaixo.

4. Das conseqüências da corrupção

Sem dúvida alguma, como destacado, a corrupção, mormente aquele ocorrente na esfera pública, acarreta a diminuição na qualidade de vida da população, variando seus efeitos deletérios de acordo com as peculiaridades de cada país.[23]

De fato, é inquestionável que a corrupção é a via mais rápida de acesso ao poder. No entanto, traz consigo o deletério efeito de promover a instabilidade política, já que as instituições não mais estarão alicerçadas em concepções ideológicas, mas sim, nas cifras que as custearam, configurando um ciclo vicioso, de efeitos devastadores para a coletividade, o que faz com que seja aumentado ainda mais o abismo social, com sério comprometimento do regime democrático.

Com efeito, enquanto a corrupção se agrava cada vez mais, no Brasil e no mundo real, segundo Relatório de Desenvolvimento Humano de 2001 das Nações Unidas, 22% da população (mais de 35 milhões de pessoas) vive abaixo da linha de pobreza (US$ 2/dia); praticamente 50% da população urbana nacional está lançada á periferia das capitais, onde só tem o caminhão de lixo passando à frente de sua residência (quando passa); o índice de analfabetismo atinge 20%; falta água em 7 dentre 30 dias no mês; apenas 30% das casas são atendidas por sistemas de esgotos, e a água encanada decorre de ligações clandestinas[24], não se vislumbrando melhores perspectivas para os anos seguintes.

Mais recentemente um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas sobre o custo da corrupção revelou que a economia brasileira perde com sua prática nefasta de 3% a 5% do PIB, o que equivale a 72 bilhões de reais, o que representa - só para se ter uma idéia do volume - mais de sessenta vezes do valor que o Governo Federal investiu em todo o setor de transportes no ano de 2004. No mesmo estudo é noticiado que a redução de apenas 10% no nível e corrupção aumentaria em 50% a renda per capita do brasileiro num período de 25 anos, bem como de que aqueles países que forem bem-sucedidos no combate à corrupção podem aumentar seu produto interno bruto em até 400%, segundo a ONU. O problema é tão grave que em um país corrupto, levando-se em contra o pagamento de propinas e as perdas de produtividade com a burocracia, um investimento acaba saindo, em média, 20% mais caro, conforme dados do Banco Mundial, que também informa que a cada ano, tanto países desenvolvidos como nos em desenvolvimento, mais de 1 trilhão de dólares são pagos em propina.[25]

Enquanto isso, empresários corruptos ficam cada vez mais ricos; políticos inescrupulosos utilizam-se da coisa pública em seu benefício próprio; servidores públicos se servem da coisa pública ao invés de servir à população; cargos públicos são preenchidos por apadrinhados. Enfim, presenciamos uma verdadeira farra com a coisa pública. Um total desrespeito aos princípios básicos da administração pública (legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência). A conduta ímproba acaba sendo a regra no atuar dos agentes públicos. O quadro realmente é desanimador, parecendo que vivenciamos uma verdadeira era de desencantos.

Não se preocupam com a falta de vagas nas escolas, com as condições do ensino público, com a precariedade dos hospitais, com os doentes nas filas e nos corredores dos hospitais, com o descrédito das instituições (efeito deletério da corrupção policial), com a inanição de milhares de brasileiros, com a segurança pública. Não! Preocupam-se com seus bolsos, com seus carrões, jóias e festas inúteis das colunas sociais. É a lei da vantagem, do famoso “jeitinho” brasileiro, idéia infelizmente enraizada na cultura do povo brasileiro, mas que, a cada dia, vem se indignando. O que se vê, em suma, é uma crise ética que decorre principalmente do utilitarismo exacerbado que se orienta pelo lema do “tirar vantagem em tudo”.[26]

Assim, inegavelmente, quanto maior for a relevância dos interesses que o agente público venha a dispor em troca das benesses que lhe sejam ofertadas, maior será o custo social de sua conduta.[27]

Portanto, conforme observa corretamente Waldo Fazzio Júnior, “os atos de corrupção colocam as atividades públicas em risco de se desfazer pela dissociação finalística, à medida que células do organismo administrativo passam a atuar com outra finalidade, precisamente, uma finalidade oposta a sua razão de ser”[28], totalmente desvirtuada dos princípios que regem a administração pública, tornando impossível que o Estado realize seus objetivos, notadamente em relação à promessa de democracia social.

Destarte, não há dúvidas em relação à natureza difusa dos atos de corrupção, com seus nefastos efeitos para a coletividade, não encontrando sua prática amparo no sistema jurídico, tendo estreita ligação com variadas espécies de crimes, do que se conclui, lamentavelmente, que acaba por gerar um elevado custo social, com inegáveis reflexos para a tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana e para a manutenção do próprio Estado Democrático de Direito, eis que configura um dos fatores da crise da governabilidade, colocando em risco a democracia, na medida em que gera desconfiança nas instituições estatais.

5. Fatores de disseminação da corrupção

São variados os fatores de disseminação da corrupção. Dentre outros, a ineficiência estatal quer seja na esfera legislativa, administrativa ou jurisdicional, é um importante fator de desenvolvimento das práticas corruptas. Nesse sentido, oportunas são as observações de Emerson Garcia[29], que em perfeita síntese destaca que

“como manifestações inequívocas das falhas do aparato estatal, podem ser mencionadas: a) as decisões arbitrárias que resultam de uma excessiva discricionariedade dos agentes públicos e desvirtuam o uso do poder, estimulando as práticas corruptas e o seu uso em benefício de terceiros; b) as conhecidas mazelas no recrutamento dos ocupantes dos cargos comissionados, que relegam a plano secundário a valoração da competência e prestam-se ao favorecimento pessoal, o que termina por estimular a corrupção em razão dos desvios comportamentais de tais agentes; c) o corporativismo presente em alguns setores do poder, em especial no Judiciário e no Legislativo, isto sem olvidar o Ministério Público – que, no Brasil, em que pese não ostentar esse designativo, tem prerrogativas próprias de um Poder – o que em muito dificulta a investigação de ilícitos praticados pelos setores de maior primazia nesses órgãos; d) a quase que total ineficiência dos mecanismos de repressão aos ilícitos praticados pelos altos escalões do poder; e) a concentração, em determinados funcionários, do poder de gerenciar ou arrecadar elevadas receitas; e f) a tolerância, em especial na estrutura policial, das práticas corruptas”.

Não bastasse isso, como destaca mais uma vez Emerson Garcia[30], deve ser ressaltado que os desvios comportamentais trazem como conseqüência o estímulo à proliferação da corrupção – o que podemos chamar de efeito cascata -, pois acabam sendo consideradas como práticas rotineiras. Assim, com tais desvios, se cria terreno fértil até mesmo para o surgimento de um código paralelo de conduta, totalmente divorciado da lei de dos princípios que regem a boa Administração Pública, sendo essa, como observa com propriedade o citado autor[31], uma dimensão mais deletéria e maléfica à organização estatal, e que, o que é pior, paulatinamente vai se incorporando ao standard de normalidade do homo medius, pois é quase certo que “uma vez iniciado esse processo, difícil será a reversão ao status quo, fundado na pureza normativa de um dever ser direcionado à consecução do bem de todos”; situação que se agrava quando sua prática se dá no ápice da pirâmide hierárquica, pois com isso acaba servindo de estimulo – de mau exemplo - para os agentes que ocupam posição inferior, sendo, portanto, fator multiplicador de corrupção, verdadeiro ciclo vicioso.

Assim, por exemplo, o prefeito que se utiliza de bens públicos para fins particulares, acaba fomentando nos demais agentes de posição hierárquica inferior a idéia de que tal conduta é normal e aceita pela sociedade, o que acaba acarretando inúmeros desvios comportamentais absolutamente divorciados do fim público que deve nortear todo comportamento dos agentes públicos.

Um outro grave fator diz respeito ao financiamento de campanhas, atualmente em discussão por todo Brasil em vista dos escândalos envolvendo partidos políticos, inclusive o Partido dos Trabalhadores (PT).

Com efeito, não podemos olvidar que não raro os desvios comportamentais dos gestores do patrimônio público, especificamente daqueles que ascenderam ao poder por meio de eleição para ocupar um mandato político, em muitos casos acabam sendo meros desdobramentos de alianças que precederam a própria investidura do agente, verdadeiras “negociatas” realizadas de forma clandestina e invisível aos olhos da população, não sendo ignorado por ninguém, com o mínimo de percepção, que o resultado de um procedimento eletivo não se encontra unicamente vinculado às características intrínsecas dos candidatos vitoriosos, pois é sabido que o êxito nas eleições, infelizmente, acaba sendo uma conseqüência do poder econômico, receita que é originária de financiamentos, diretos ou indiretos, de natureza pública ou privada.

O que se percebe é que o dinheiro público, de forma dissimulada e sorrateira, acaba sendo injetado em atividades político-partidárias, valendo-se o administrador muitas vezes de expedientes com maquiagem de legalidade, como o de liberação de verbas orçamentárias, de celebração de convênios às vésperas do pleito etc., angariando, assim, maior popularidade, que certamente reverterá para si na forma de voto, caso seja candidato a reeleição, ou beneficiando terceiro, a quem pretende apoiar no pleito.

Por outro lado, em se tratando de financiamento privado, valendo-se novamente das observações de Emerson Garcia[32], se pode afirmar que a imoralidade assume perspectivas de proporções ainda maiores, pois estas receitas, geralmente de origem duvidosa, não são um mero ato de benevolência ou um abnegado ato de exteriorização de consciência política do financiador privado. Não! Pelo contrário, pois, de regra, encobrem interesses escusos e imorais, que podem ser concebidos como a prestação devida por um dos sujeitos de uma relação contratual de natureza que pode se dizer sinalagmática, eis que caberá ao outro, tão logo assuma o mandato, cumprir a sua parte no “ajuste”, que se materializa, normalmente, em favorecimento ou fraudes de futuras licitações, contratação de pessoas indicadas pelos colaboradores para o preenchimento de cargos em comissão ou temporários etc.

Aqui vale destacar a estreita ligação com as organizações criminosas, pois estas, para garantir a impunidade e a facilitação na prática de crimes, buscam a união com os poderes estabelecidos (políticos e/ou jurídicos). É comum estabelecer essa união de interesses consistente na ajuda financeira para campanhas eleitorais. Trata-se de uma das características mais presentes nos últimos tempos. Assim, as organizações criminosas, visando aumentar seu poder, sua conexão, ora financiam campanha de candidatos, que depois ficam sob sua dependência, ora infiltram seus próprios membros nos setores do poder público. Para ilustrar tal característica vale lembrar o que disse certa vez ‘Big’ Paul Castelano, sucessor de Carlo Gambino na chefia de uma das cinco famílias da máfia de New York. Disse ele: “Eu já não preciso mais de pistoleiro, agora quero deputados e senadores”.[33]

Assim, além da necessidade de se repensar o sistema de financiamento de campanhas, tornado-as mais transparentes – saindo da penumbra -, impõe-se urgentemente uma fiscalização mais efetiva, de modo a criar o máximo de obstáculos para que a Administração Pública não venha a se tornar um “balcão de negócios” escusos, de efeitos devastadores para a coletividade, o que não pode ser feito de forma açodada, pois se trata de uma das questões cruciais para o combate à corrupção, sendo um de seus anticorpos, necessários para a cura ou sobrevivência - com dignidade - do combalido Estado brasileiro, que clama desesperadamente por socorro.

6. Entraves para o combate à corrupção

Apesar de se ter afirmado que o combate à corrupção necessita ser enfrentado com a máxima eficácia, infelizmente ainda é pífia a punição efetiva de um corrupto no Brasil, fazendo com que essa sensação de impunidade gere uma situação de revolta e indignação na população, contribuindo ainda mais para a proliferação desse câncer que se enraíza cada vez mais nos poderes públicos.

Com efeito, fala-se em igualdade na Constituição Federal, porém, o que vemos na justiça, especialmente na criminal, é uma patente situação de desigualdade, ou uma igualdade meramente formal – em alguns casos nem isso -, como se suas garras existissem apenas para atingir à população pobre, numa postura seletiva e segregatória, que raramente alcança os corruptos, os criminosos de colarinho branco. [34]

Acresça-se a isso outro importante aspecto: o fato de que, via de regra, os delinqüentes do “colarinho branco”, os autores de crimes de corrupção, ao contrário dos delinqüentes de rua, participam dos mesmos locus sociais de lazer e entretenimento daqueles que haverão de processá-los e julgá-los pelas práticas de seus crimes (os operadores jurídicos), circunstância que inegavelmente contribui, per si, para que tais agentes não sejam estigmatizados como autênticos delinqüentes que efetivamente são, inclusive a influenciar a postura da população diante das práticas ilícitas cometidas pelos referidos agentes, não raramente enxergando-as como condutas normais, que revelariam, no máximo, esperteza. Nesse sentido, quem não conhece o velho jargão brasileiro “rouba, mas faz”, infelizmente, aceito como conduta normal por grande parte da população? [35]

Assim, como destacamos anteriormente, muito embora o Brasil ocupe, de forma vergonhosa, a 62ª posição entre os países com maior “índice de percepção de corrupção” do mundo, o número de punições, de agentes processados chega a ser ridículo proporcionalmente, sendo aquilo que se denomina de “cifra dourada da criminalidade”[36], que não figura nas estatísticas.

Como já foi ressaltado, diversos fatores contribuem para essa caótica situação, podendo aqui ser lembrado, a título de exemplo, os seguintes: 1) aceitação como normal de algumas condutas ilícitas dos agentes públicos (ex: uso de bens públicos – automóveis); 2) insuficiência de legislação material e processual; 3) falta de uma decidida vontade política dos poderes públicos para prevenir, controlar e castigar tais práticas delitivas; 4) a existência de imunidades parlamentares de cunho exagerado; 5) o foro por prerrogativa de função; 6) o caráter de clandestinidade dos atos de corrupção[37]; 7) a não capacitação dos agentes responsáveis pelo controle e combate da corrupção; 8) o fraco combate à lavagem de capitais obtidos por meios ilícitos etc.

Nesse passo, especial atenção merece a questão das imunidades parlamentares, que encontra previsão no art. 53 da Constituição Federal. Muito embora tenha havido um avanço com o advento da Emenda Constitucional nº 35, tais imunidades ainda persistem de forma exagerada e perigosa, sendo possível a suspensão de um processo criminal instaurado em face de um parlamentar, ainda que o crime não tenha nada haver com o exercício de suas funções, o que acaba sendo, de certa forma, um escudo para a prática de crimes e atos de improbidade administrativa.

Também deve ser ressaltada a questão do foro por prerrogativa de função, consistente na prerrogativa de que alguns agentes possuem de serem processados e julgados perante os tribunais, o que dificulta sobremaneira a punição desses agentes, como se constata na prática, na qual se vê, de regra, uma tramitação extremamente morosa dos processos criminais, que dificulta sobremaneira a produção de provas. Basta aqui lembrar o absurdo rito previsto na Lei nº 8.038/1990, que regula o procedimento das ações penais originárias. Em alguns casos, a ação penal, para ser recebida, necessita da manifestação de todos membros do tribunal superior, tendo se notícia de denúncias que não foram recebidas após dois anos de sua propositura. E isso quando se fala – o que agora é uma garantia fundamental explicitada na Constituição Federal – em “duração razoável do processo”. Ora, para isso não basta uma simples “penada”, é preciso vontade política, investimento, tecnologia.

Não bastasse no Brasil os agentes terem tal prerrogativa de função em matéria criminal, em 24 de dezembro de 2002, os parlamentares, legislando em causa própria, chegaram ao absurdo de se autoconceder um verdadeiro presente de Natal, quebrando uma tradição brasileira já secular, ao estender o foro por prerrogativa de função para ilícitos civis, fazendo com que doravante caso o agente tenha prerrogativa de função em matéria criminal, também a teria pela prática de atos de improbidade administrativa, que são ilícitos civis administrativos.[38]

Tratou-se de alteração legislativa vergonhosa, que além de ter representado uma tentativa de diminuição dos poderes do Ministério Público, representou um retrocesso sem precedentes no combate à corrupção no Brasil, que acaso persistisse certamente traria efeitos deletérios para a já sofrida população brasileira, tornando ainda mais difícil a punição dessas condutas, pois é de conhecimento notório que os tribunais superiores já se encontram abarrotados, não estando vocacionados para o julgamento de tais agentes.[39] Felizmente, o Supremo Tribunal Federal extirpou, por enquanto, referida regra do nosso ordenamento jurídico em julgamento de ação direta de inconstitucionalidade em setembro de 2005.

Falamos por enquanto, porque primeiro está pendente de julgamento no STF a Reclamação nº 2.138-6/190-DF[40], proposta pela União em desfavor do juiz federal substituo da 14ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal, na qual se tenta tornar impossível a aplicação da Lei nº 8.429/1992 aos agentes que respondam pelos crimes de responsabilidade previstos na Lei 1.072/1950. O pior é que a citada reclamação o Min. Nélson Jobim, que é o relator, votou pela procedência, tendo, até o momento, sido acompanhado por mais quatro ministros (Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Maurício Corrêa e Ilmar Galvão), estando atualmente o julgamento suspenso em face de pedido de vista, do Ministro Carlos Velloso.[41]

Em segundo lugar, há também proposta de emenda à Constituição Federal, que praticamente resgata os revogados § § 1º e 2º, do art. 84 do CPP.[42] Como se vê, a luta contra os ataques à probidade administrativa está longe de acabar, devendo a sociedade e o Ministério Público está em constante estado de alerta.

Porém, esse são apenas alguns exemplos de mais um dos duros golpes no combate à corrupção. Muitos outros podem ser aqui lembrados, só para se ter uma idéia da postura imoral que campeia em nosso País, como a própria tentativa de amordaçar o Ministério Público e a imprensa[43], com os famigerados projetos de lei intitulados de “Lei da Mordaça”, bem como as alterações promovidas na Lei de Improbidade Administrativa pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 2001, que chegou, inclusive, a prever possibilidade de condenação do membro do Ministério Público à perda do cargo, em caso do pedido na ação de improbidade administrativa ser julgado improcedente, numa clara tentativa de inibir a atuação do órgão ministerial.[44]

Olvida-se da importância da Lei de Improbidade Administrativa, atualmente um dos mais importantes mecanismos para o combate aos atos de corrupção pública, complementando, portanto, a repressão penal, que atualmente se afigura insuficiente para tal desiderato, conforme veremos abaixo.  

7. Da legislação penal para o combate à corrupção

Como se sabe, o Código Penal atualmente em vigor prevê expressamente a corrupção como ilícito penal praticado contra a Administração Pública, punindo a conduta do corruptor (corrupção ativa)[45] e do corrompido (corrupção passiva).[46] Apesar da expressão “corrupção” constar como nomem iuris apenas nesses dois tipos penais, é certo que existem outras formas de corrupção como ilícito penal, podendo aqui ser lembrado, como exemplo, os crimes de peculato, concussão e prevaricação, que acabam sendo, juntamente com o crime de corrupção passiva, as expressões penais mais salientes da corrupção pública[47], devendo ser lembrado ainda os arts. 359-A a 359-H, também do Código Penal, que prevê crimes contra as finanças públicas praticados por qualquer autoridade em cargos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional.

Fora do Código Penal encontramos a Lei nº 8.666/1993, a denominada Lei de Licitação, que prevê sanção criminal ao agente público com atribuição para autorizar ou dispensar a abertura de licitação. Trata-se de legislação importantíssima, que merece ser conhecida com profundidade se se deseja de fato um combate efetivo aos atos de corrupção, pois é sabido que uma das formas mais usuais de corrupção pública é o caminho das licitações fraudulentas.

Ainda no campo penal, no que se refere agora à conduta dos membros do executivo, é também de se destacar a Lei nº 1.079/1950, que define os “crimes de responsabilidade” do Presidente da República e outros agentes, bem como do Decreto-lei nº 201/1967, que dispõe sobre os crimes de responsabilidade dos prefeitos e vereadores.[48] Infelizmente, o que se constata é uma baixa aplicação das regras previstas nos citados diplomas, mormente em relação ao primeiro, que se vem se mostrando absolutamente inadequado para o combate à corrupção, o que se explica principalmente em vista do julgamento político previsto na Constituição Federal.[49]

Um esclarecimento deve ser feito a respeito da natureza jurídica dos atos previstos na Lei nº 1.079/1950. Em verdade, em seu sentido ontológico, referida condutas não podem ser consideradas como crimes, já que não possuem como conseqüência uma pena privativa de liberdade. Nesse sentido, aliás, é a posição de Paulo Brossard, que em obra clássica sobre o tema[50], invocando o magistério de José Frederico Marques, observa:

“Destarte, convém seja notado, a expressão ‘crime de responsabilidade’, que ‘entrou na Constituição sem exato conceito técnico ou científico’ – a sentença é de José Frederico Marques – nem sempre corresponde a infração penal. Quando motiva o impeachment, por exemplo, caso em que, sem dúvida, a despeito do nomen juris que lhe dá o Código Supremo e a Lei que lhe é complementar, o ilícito a ele subjacente não é penal. ‘Se o crime de responsabilidade não é sancionado com pena criminal, como delituoso não se pode qualificar o fato assim denominado, pois o que distingue o crime dos demais ilícitos é, justamente, a natureza da sanção abstratamente cominada’”.

No que se refere ao Decreto-Lei nº 201/1967, muito embora se tenha previsão de condutas criminais (art. 1º), ainda se nota, lamentavelmente, uma atuação tímida no combate aos delitos que configuram atos de corrupção pública cometidos prefeitos municipais, o que se explica por variadas razões, dentre as quais o distanciamento dos tribunais e do próprio órgão de execução do Ministério Público do local dos fatos. Assim, entendemos que seria fundamental a criação no âmbito das Procuradorias de Justiça – logicamente nos Estados que ainda não existam - de grupos especializados no combate a esses tipos de delitos, formados pro procuradores e promotores de Justiça com atribuição em todo Estado, logicamente com respeito ao princípio do promotor natural.   

Outra lei importante no combate à corrupção e a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04/05/2000), que configura salutar conjunto normativo a orientar uma Administração Pública proba. Realmente, pensando na real disciplina do bom uso do dinheiro público referida lei surgiu de uma determinação contida no art. 163 da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional 19/98.

Assim, a Lei de Responsabilidade Fiscal “integra um conjunto de medidas do Programa de Estabilidade Fiscal (PEF) apresentado à sociedade brasileira e tem como objetivo a drástica e veloz redução do déficit público e a estabilização do montante da dívida pública em relação ao Produto  Interno Bruto da economia”.[51] Portanto, podemos dizer que a principal finalidade da Lei de Responsabilidade Fiscal

 “é proibir os entes da Federação de gastarem mais do que arrecadam, estabelecendo, para tanto, limites e condições para o endividamento público. Ela surge no bojo de uma unanimidade na opinião pública, reclamando que as finanças públicas deveriam ser disciplinadas por regras inflexíveis, para pôr termo aos gastos exacerbados”.[52]

Mas, tendo em vista que o esquema normativo constitucional admite a vinda de outras leis duras, que possam impedir os desmandos, o descaso com a coisa pública, e, finalmente, considerando que tanto a Lei de Improbidade Administrativa, quanto a Lei de Responsabilidade Fiscal, não disciplinam condutas criminosas, foi editada a Lei nº 10.028/2000, criando novos tipos penais sobre crimes de responsabilidade fiscal, ampliando o leque de legislações que buscam colocar um basta nos maus administradores, não afeitos aos princípios constitucionais e aos limites orçamentários.[53]

Outra lei extremamente relevante no combate à corrupção é a Lei nº 9.613/1998, conhecida como Lei de “Lavagem de Capitais”, que tem por objetivo evitar que o agente torne lícito o produto ou os proventos de crimes anteriormente praticados[54], dentre os quais se encontram previstos os crimes praticados contra a administração pública. Apesar de vigente há praticamente sete anos, percebe-se uma baixa aplicação da citada lei, sendo, infelizmente, pífia, o número de ações penais ajuizadas tratando da matéria.

Essa baixa utilização da lei por último citada se deve a fatores como falta de conhecimento dos operadores jurídicos em relação a matéria, que se revela de elevada complexidade, mas, também, pela ausência de capacitação e reciclagem dos agentes – membros do Ministério Público, magistrados, autoridades policiais – no tema que atualmente é um dos mais controversos da moderna criminalidade, daí porque é louvável a iniciativa do Ministério da Justiça em promover cursos teóricos e práticos sobre lavagem de dinheiro, o que é necessário não só para o aprimoramento dos agentes, mas, com igual importância, para proporcionar uma maior interação entre as instituições e seus agentes.    

8. Da insuficiência da legislação penal para o combate à corrupção

Uma conclusão inexorável diante de tudo o que foi visto, notadamente pela gravidade que representa e pelo risco ao Estado Democrático de Direito e aos direitos fundamentais, é que o combate à corrupção não pode ser limitar tão-somente à esfera penal. Assim, novos caminhos devem ser buscados pelo legislador no combate aos atos atentatórios ao patrimônio público, nunca olvidando, obviamente, de medidas preventivas.

Com efeito, a repressão criminal não vem se mostrando suficiente para a repressão de conduta tão grave como a corrupção pública, o que se reflete no baixo índice de condenação dos agentes.

Entendemos que diversos fatores contribuem para essa situação, sendo, porém, um dos mais salientes as notórias deficiências do processo criminal, que ainda se desenvolve por meio do já “idoso” Código de Processo Penal de 1941, dotado de instrumentos pouco eficientes para o enfrentamento da questão, com seus ritos morosos, que privilegiam como resultado a imposição de uma pena de prisão, apesar de haver previsão de medidas cautelares de caráter patrimonial, como arresto, seqüestro, hipoteca legal etc, infelizmente ainda de escassa utilização.

Soma-se a isso a cultura dos próprios operadores que atuam na justiça criminal, infelizmente ainda acostumados ao enfrentamento das questões relacionadas à criminalidade tradicional e visível, envolvendo conflitos entre os conhecidos “Tício” e “Caio”, valendo-se de técnicas pouco afetas à solução de ilícitos com vítimas difusas, mormente aqueles em que há lesão de grande vulto ao erário.

Também devem ser destacados alguns obstáculos peculiares da justiça criminal para a punição de determinados agentes, bastando aqui lembrarmos novamente a previsão das imunidades parlamentares e do foro por prerrogativa de função, praticamente inexistentes no juízo cível, como agora não deixa dúvida o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da inconstitucionalidade do § 2º (e também § 1º) do art. 84 do Código de Processo Penal, acrescentado pela nefasta e imoral Lei nº 10.628/2002.

Assim, a perseguição dos atos de corrupção por meio também da justiça civil, mormente através da jurisdição civil coletiva, em especial por meio da ação de improbidade administrativa contemplada na Lei nº 8.429/1992, acaba sendo medida necessária e complementar à justiça criminal, na medida em que a corrupção deve ser enfrentada com a máxima efetividade, vez que, como vimos, além de comprometer o Estado Democrático de Direito acaba caracterizando conduta violadora dos direitos humanos.

Para arrematar, pode-se dizer, inclusive, que essa visão acaba sendo uma decorrência do mandado constitucional existente na própria Constituição Federal, conforme se pode notar pelo seu art. 37, § 4º, bem como de outras regras constitucionais que visam resguardar o patrimônio público e a probidade administrativa.

9. Conclusão

Portanto, todos os meios possíveis, cíveis e criminais, se revelam importantes no combate à corrupção, para que ao menos possamos mantê-la em níveis toleráveis, já que sua completa erradicação não passa de utopia, o que não impede que se lute em busca desse objetivo, pois se trata de um sonho pelo qual vale a pena lutar, na busca de uma sociedade mais justa e igualitária.

Aliás, é tão importante essa bandeira, que basta conferimos as conclusões exaradas em estudo realizado pelo Banco Mundial, publicado na revista VEJA[55], para termos certeza que estamos no caminho certo.

Não por outro sentido que atualmente o problema da corrupção representa uma preocupação mundial, importando na celebração de diversos tratados e convenções de direito internacional[56] visando seu controle e combate, pois é cada vez mais corrente a constatação que a corrupção acaba sendo um verdadeiro flagelo para a humanidade.

Assim, não resta dúvida de que um corrupto, por praticar um ilícito de natureza difusa, atingindo interesse de toda coletividade, merece enérgica e eficaz punição. Falando de forma metafórica, vampiro se mata com uma estaca no peito.

Mas, o povo brasileiro não é corrupto, pelo contrário, é formado por cidadãos de bem, homens e mulheres de fibras, que lutam pela sobrevivência em um país marcado por extrema desigualdade. Logo, é oportuno invocar o imortal Rui Barbosa que, em lição ainda atual, disse:

 “O Brasil não é ‘isso’. É ‘isso”. O Brasil, senhores, sois vós. O Brasil é esta Assembléia. O Brasil é este comício imenso, de almas livres. Não são os comensais do erário. Não são as ratazanas do Tesouro. Não são os mercadores do Parlamento. Não são as sangues-sugas da riqueza pública. Não são os falsificadores de eleições. Não sãos os compradores de jornais. Não São os corruptores do sistema republicano”.

Destarte, urge um combate efetivo à corrupção, em todas suas formas, para que a esperança finalmente prevaleça, para que o bem supere o mal. E Bertolt Brecht, em Mãe Coragem e seus filhos, resume o que queremos dizer:

 “Chegará o dia em que a página será virada

para nós.

Ele está próximo.

 

Nós, o povo, poremos fim então

À grande guerra dos grandes senhores.

 

Os mercadores, com todos os seus lacaios

E sua dança de guerra e morte,

Serão para sempre descartados

Pelo novo mundo do homem comum.

Chegará o dia, mas hora de sua chegada

Depende de mim, depende de ti.

Quem ainda não está marchando conosco,

Que trate de pôr o pé na estrada sem demora”.

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[1] Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Corrupção e Democracia. In O Regime Democrático e a Questão da Corrupção Política. Coordenadores: ZILVETI, Fernando Aurelio; LOPES, Sílvia. São Paulo: Atlas, 2004, p. 18.
[2] PAGLIARO, Antonio; COSTA JR., Paulo José. Dos crimes contra a Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 98. Destacam os citados autores que “Entre os povos da Antiguidade a severidade não era menor. A lei mosaica punia o juiz corrupto com a flagelação, e a grega, com a morte. Heródoto recorda que Cambises mandou esfolar vivo um juiz corrupto, utilizando sua própria pele para recobrir a cadeira que iria ser ocupada por seu sucessor. Recordam, ainda, os historiadores que Dario fez pregar numa cruz um juiz julgado corrupto”. No mesmo sentido, destacando que a corrupção remonta aos tempos bíblicos: RIBEIRO, Antonio Silva Magalhães. Corrupção e Controle na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2004, p. 21.
[3] FELDENS, Luciano. Tutela Penal de Interesses Difusos e Crimes do Colarinho Branco. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 143. Mais recentemente, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) em relação a estudos sobre sonegação fiscal no país, consta-se que a prática da sonegação fiscal e o caixa dois das empresas vem crescendo, tendo alcançado no ano de 2004 a cifra astronômica de 1,028 trilhão (em 2001 esse valor atingiu a casa dos R$ 587,7 bilhões), o que significa que 39,27% da arrecadação anual do país escorra pelo vão dos dedos do leão (Fonte: Jornal folha de São Paulo, de 14/08/2005, Caderno Dinheiro, p. B 1). Nem com dados como esses há uma sensibilidade do legislador para a adoção de medidas eficazes para o combate à sonegação fiscal, principalmente quando a lei e a jurisprudência consagraram o entendimento de que basta o agente pagar o tributo devido para se ver livre da responsabilidade criminal, criando entre muitos empresários inescrupulosos, com o objetivo de “levar vantagem a todo custo”, o raciocínio lógico de que é melhor correr o risco e sonegar, pois se acaso descoberto, basta pagar, consagrando-se patente violação ao princípio da isonomia, uma vez que referido benefício não existe em relação a delitos patrimoniais, como o furto. 
[4] Conforme doutrina Emerson Garcia (et at, Improbidade Administrativa, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 7), “Especificamente em relação à esfera estatal, a corrupção indica o uso ou a omissão, pelo agente público, do poder que a lei lhe outorgou em busca da obtenção de uma vantagem indevida para si ou para terceiros, relegando a plano secundário os legítimos fins contemplados na norma. Desvio de poder e enriquecimento ilícito são elementos característicos da corrupção”.
[5] Destaca Gianfranco Pasquino (Dicionário de Política: vol. um: a-j, 5ª ed., São Paulo: UnB, 2004, p. 291-292) que podem ser distinguidas três tipos de corrupção: “a prática da peita ou uso da recompensa escondida para mudar a seu favor o sentir de um funcionário público; o nepotismo, ou concessão de empregos ou contratos públicos baseada não no mérito, mas nas relações de parentela; o peculato por desvio ou apropriação e destinação de fundos públicos ao uso privado”. Em relação ao nepotismo, muito embora tenha uma certa aceitação por parte de determinada parcela da sociedade, acaba configurando um ato de corrupção extremamente danoso para a coletividade, vez que além de atentar, dentre outros, contra o princípio da impessoalidade, olvidando da obrigatoriedade do concurso público, acaba comprometendo seriamente a eficiência da Administração Pública, daí porque é estarrecedor ver nos dias atuais parlamentares defendendo a legalidade de tal prática através de reserva de cotas (pasmem!) para parentes nos serviços públicos, como se constatou em matéria jornalística publicada no jornal O Globo (edição do dia 22/05/2005, coluna O País, p. 12), intitulada “Deputados agora defendem cotas para parentes”.  
[6] Conforme destaca Luiz Regis Prado (Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 4 – Parte Especial. Arts. 289 a 359-H, 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 441), “Não se pode olvidar que a eficácia funcional do Estado depende precipuamente da honestidade e da eficiência com que os agentes públicos atuam no seu mister, já que, como longa manus daquele, suas atividades refletem positiva ou negativamente na coletividade, no que tange à formação moral e política dos cidadãos e no respeito que estes devem ter para com os entes públicos, essencial para a própria solidez do Estado Democrático de Direito, planificado pela Constituição Federativa do Brasil”. Assim, arremata o autor (idem, p. 441-442), “o funcionário probo, que cumpre seu desiderato visando atingir sempre o interesse público, alcança a admiração dos cidadãos, que passam não só a defender os seus atos, como também a respeitá-lo. Contudo, quando o funcionário público (lato sensu) envereda-se por caminhos escusos, buscando apenas, com os citados atos, o enriquecimento ilícito ou a mera satisfação pessoal ou de outrem, abusando do exercício da função, o próprio ente público cai em descrédito perante os cidadãos. Estes passam a vê-lo como um mero instrumento colocado a serviço dos detentores do poder político e econômico e de seus apaniguados, com efeitos nefastos para a sociedade, como o desrespeito dos cidadãos para com a lei e os bens públicos, a má formação de novos agentes públicos, o estímulo à sonegação fiscal e o incremento generalizado da corrupção administrativa, entre outros”. 
[7] Só para se ter uma idéia, em matéria intitulada “No rastro dos corruptos”, publicada no jornal o Globo do dia 22/05/2005, na coluna O País (p. 3), é noticiado que em apenas dois anos a Polícia Federal prendeu 819 pessoas por fraudes com dinheiro público, com operações desencadeadas em 26 Estados, indo desde o Estado de Roraima ao Rio Grande do Sul, sendo que estima-se que as fraudes detectadas são estimadas no valor de R$ 2,7 bilhões contra a Administração Pública. Levando-se em conta que os atos de corrupção são ilícitos praticados de forma clandestina (ilícito invisível), em muitos casos de difícil comprovação, acaba sendo uma tarefa hercúlea imaginar o volume de verba pública que todos os dias são desviados pelo Brasil. 
[8] A aludida reportagem é iniciada com um curioso caso, que vale a pena reproduzir, só para demonstrar o incrível descaso com dinheiro público, a falta de moralidade e probidade. Diz a matéria: “Os 20.000 habitantes de Ponta de Pedras, cidade situada na exótica Ilha de Marajó, no Pará, tinham razões de sobra para entrar em estado de alerta cada vez que o prefeito viajava para Belém para sacar o dinheiro da prefeitura. Em abril de 2001, ele desembarcou na capital, sacou o dinheiro e foi assaltado. Foram-se 160.000 reais. Quatro meses mais tarde, o prefeito retornou a Belém, retirou o dinheiro e deu-se novo infortúnio: roubaram-lhe 120.000 reais. Passaram-se dois meses e ele voltou a Belém, ao banco e – suprema desgraça – ao assalto. Dessa vez, sumiram 80.000 reais. Em sete meses, o prefeito Bernadino Ribeiro, do PSDB, sofreu três assaltos. A cidade logo entendeu por que o prefeito não usava o posto bancário de ponta de Pedras e fazia questão de manter a conta em Belém, a três horas de barco, e sacar tudo em dinheiro vivo. Em agosto de 2002, acusado de improbidade administrativa, ele perdeu o mandato. ‘Alguns funcionários da prefeitura ficaram até seis meses sem receber salário’, conta a vice-prefeita, Consuelo Castro, que sucedeu ao cassado – e nunca foi assaltada”.
[9] Cf. reportagem “Bandalheira em Cascata”, publicada na Revista Época, nº 366, de 23/05/2005 (p. 38-45). Outro caso incrível citado na matéria diz respeito ao esquema de corrupção no Estado de Rondônia, no qual deputados estaduais foram flagrados tentando extorquir o governador Ivo Cassol, tendo as imagens da citada extorsão sido divulgadas para todo Brasil pelos meios de telecomunicação, deixando a população mais uma vez em estado de choque diante da audácia dos agentes, revelando um comportamento cruel e uma triste constatação: a de que “o Estado não é um instrumento para atender ao bem de todos, mas um lugar para se encostar e arrumar dinheiro e benesses pessoais”.
[10] Trata-se de entidade criada em 1993 por um grupo de ex-executivos do Banco Mundial, que se dedica à luta contra a corrupção e à promoção da transparência nas transações comerciais e financeiras no âmbito mundial.
[11] Cf. reportagem “Corrupção no país não diminui e Brasil fica na 59ª posição”, publicado no Jornal A Gazeta, no caderno de Política, p. 23. Importante destacar que o índice varia de 0 a 10 pontos, sendo que 10 indica menor grau de corrupção. Aliás, mais recentemente, conforme ranking divulgado em 2005 pelo Banco Mundial, o Brasil aparece com 53,2 pontos na escala de controle de corrupção, que vai de zero a 100 (cf. reportagem “Temporada de caça aos Ratos”, publicada na Revista Veja, ano 38, nº 21, de 25/05/2005, p. 46-53).
[12] Conforme opinião dos observadores internacionais, refletida no Indicie de Percepção de Corrupção divulgado em 18/10/2005 pela Transparency Internacional, o grua de corrupção atribuído ao Brasil não se alterou em relação aos sete anos anteriores, isso porque é impossível determinar a evolução comparando-se a lista do ano passado (que incluía 146 países) com o ano de 2005 (com 159 países). Portanto, referida comparação deve ser feita eliminando-se da lista de 2005 os países que não apareciam na lista de 2004 e reordenando a lista resultante, levando-se, ainda, em consideração a margem de erro que afeta a posição de cada país. Portanto, a conclusão é que o Brasil não piorou nem melhorou (Fonte: <http://www.transparencia.org.br/index.html>, acesso em 18/10/2005).
[13] Conforme salientou o membro da Ong Transparência Capixaba Rafael Simões, no artigo intitulado “De vampiros e outros bichos”, publicado no Jornal A Gazeta, do dia 13/06/2004.
[14] A alusão se deve a um fato notório envolvendo funcionários fantasmas na Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo, ocasião em que o parlamentar responsável pela indicação dos funcionários que não trabalhavam observou que não haveria em que se falar em funcionários fantasmas, uma vez que as pessoas contratadas tinham CPF. Deve ser destacado que referido fato mereceu pronta atuação do Ministério Público que ajuizou ação civil pública por atos de improbidade administrativa.
[15] Evidente que não se trata de fenômeno exclusivamente brasileiro, bastando aqui lembrar alguns escândalos internacionais, como os seguintes: 1) EUA – A Haliburton, escolhida para reestruturar o setor petroleiro do Iraque, teve o vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, como seu diretor e um dos principais acionistas; 2) Alemanha – O chanceler alemão Helmut Kohl recebeu pelo menos US$ 6 milhões de doações secretas para seu Partido Democrata-Cristão em troca de decisões que beneficiariam os doadores; 3) Japão – Subornos pagos sistematicamente a um grande número de políticos importantes fizeram em 1993 o Partido liberal Democrata ser alijado do poder pela primeira vez desde 1948; 4) ONU – empresa suíça Cotecna, que geria o programa que permitia ao Iraque, sob vigilância da ONU, vender petróleo durante o embargo econômico, emprega Kojo Annan, filho do secretário-geral da organização, Kofi Annan; 5) França – Há cerca de 50 funcionários públicos de alto escalão condenados ou sob julgamento por casos de pagamentos por empreiteiras ao partido do presidente Jacques Chirac e seus aliados; 6) Itália – Investigações sobre propinas pagas a políticos mostram um sistema de corrupção generalizada no país e levaram a Democracia Cristã e o Partido Socialista à extinção; 7) China – O capitalismo chinês depende de autorizações oficiais para a instalação de qualquer empresa, sendo que vendas dessas autorizações já derrubaram importantes membros do Partido Comunista (Fonte: reportagem “Bandalheira em Cascata”, publicada na Revista Época, nº 366, de 23/05/2005, p. 38-45). Ainda, sobre o fenômeno da corrupção no plano internacional, conferir: GLYNN, Patrick; KOBRIN, Stephen J.; NAÍM, Moisés. A globalização da corrupção, in A Corrupção e a Economia Global, Organizadora Kimberly Ann Elliott, tradução Marsel Nascimento Gonçalves de Souza, Brasília: UnB, 2002, p. 27-57.
[16] Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 62-64. A respeito da abrangência dos direitos sociais, destaca o autor que “Os direitos sociais englobam, de um lado, o direito ao trabalho e os diferentes direitos do trabalhador assalariado; de outro lado, o direito à seguridade social (saúde, previdência e assistência social), o direito à educação; e, de modo geral, como se diz no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (art. 11), ‘o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida’” (Idem, ibidem).
[17] OLIVEIRA, Regis Fernandes de. A corrupção como desvio de recursos públicos (a agressão da corrupção aos direitos humanos). Revista dos Tribunais nº 820, fevereiro de 2004, Ano 93, São Paulo: RT, p. 428.
[18] Idem, p. 429.
[19] Brasil: Quinhentos Anos de Corrupção. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1994.
[20] In Sermões – Sermão do bom Ladrão – Ob. Completa, Lello & Irmão Editores, vol. V, p. 69.
[21] Sobre o tema conferir: CAVALCANTI, Luiz Otávio. Como a corrupção abalou o governo Lula. Por que o presidente perdeu a razão e o poder. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
[22] Cf. GARCIA, Emerson et al, Improbidade Administrativa, ob. cit., p. 9.
[23] Conforme salienta Kimberly Ann Elliott na introdução da obra coletiva “A Corrupção e a Economia Global (ob. cit., p. 17-18), “A quantidade e a diversidade de países acometidos pelos escândalos de corrupção em anos recentes evidenciam o fato de a corrupção diferir radicalmente nas formas, na disseminação e nas conseqüências. Em países pobres, a corrupção pode encolher o crescimento econômico e comprometer a legitimidade política; conseqüências essas que, por seu turno, exacerbam a pobreza e a instabilidade política. Em países desenvolvidos, os efeitos econômicos podem ser menos severos; todavia, mesmo em países ricos os recursos desviados não estarão disponíveis para a melhoria dos padrões de vida. A corrupção tende também a aprofundar as desigualdades de renda, isso por aumentar o poder daqueles que têm disposição e capacidade de pagar propinas em detrimento daqueles que não podem fazê-lo: essa questão vem ganhando crescente preocupação em países desenvolvidos e em países atualmente em desenvolvimento. Enfim: a corrupção pode minar a legitimidade política de democracia industrializadas e em desenvolvimento quando aliena os cidadãos de sua liderança política, e quando dificulta a eficiência do governo. A corrupção pode causar os mais nefastos efeitos nos países em transição, como a Rússia, por exemplo, onde, caso não sejam tomadas providências, ela pode abalar o apoio à democracia e a economia de mercado”.
[24] Reportagem nacional de Alexandre Secco e Larissa Squeff intitulada “A Explosão da periferia”, publicada na Revista VEJA, a. 34, n. 3, ed. 1684, de 24/01/01, são Paulo, Abril, p. 86-93
[25] Confira reportagem “Temporada de caça aos Ratos”, publicada na Revista Veja, ano 38, nº 21, de 25/05/2005, p. 46-53. Em outra reportagem intitulada “Pragas urbanas – Desperdício, desvio e corrupção”, publicada na Revista Veja, ed. 1851, a. 37, nº 17, de 28 de abril de 2004, p. 40 a 47, é noticiado que “as 5.560 prefeituras brasileiras movimentam uma bolada de 107 bilhões de reais por anos, cifra que corresponde à metade do PIB do Chile, a mais azeitada economia do continente. Não se sabe com precisão quanto dessa dinheirama some no ralo da corrupção – 10%? 20%? 30% -, mesmo porque parte da roubalheira se dá na surdina, no varejo e no anonimato que os rincões oferecem. As indicações mais seguras dão conta de que os desvios ficam, calculando-se por baixo, na órbita dos 20 bilhões de reais”.
[26] Nesse sentido, são ainda válidas as seguintes observações de Sérgio Habib (Brasil: Quinhentos Anos de Corrupção, ob. cit., p. 112/113): “Ao lado da ‘cultura do jeitinho’, convive o brasileiro com uma outra: a da ‘lei da vantagem’. É comum nestes dias, como certamente o foi em dias avoengos, ainda que, possivelmente, sem a mesma intensidade, o interesse em levar-se vantagem em todas as pessoas. Cada qual busca, não o bem de todos, mas o seu próprio, não o interesse geral, mas a satisfação de uma aspiração pessoal. Há nisso, sem dúvida, uma forte característica de egoísmo, ainda quando as pessoas não se dêem conta. Poder-se-ia identificar tal fenômeno, quiçá, com o desencanto, o sentimento de frustração coletiva pelos repetidos insucessos da Nação no que se refere à melhoria do seu nível de vida; o malogro decorrente de um projeto econômico inviável, de uma política descomprometida com o aspecto social, a cujos desatinos tem o povo assistido ao longo da história, de tal forma que já não acredita nos governos, assumindo uma postura em que coloca o Estado como uma terceira pessoa sem a mínima identificação consigo”.
[27] A propósito, salienta Emerson Garcia (et al, Improbidade Administrativa, ob. cit., p. 21): “As políticas públicas são sensivelmente atingidas pela evasão fiscal, que consubstancia uma das facetas dos atos de corrupção. Com a diminuição da receita tributária, em especial daquela originária das classes mais abastadas da população, diminui a redistribuição de renda às classes menos favorecidas e aumenta a injustiça social. Esse quadro ainda servirá de elemento limitador a ajuda internacional, pois é um claro indicador de que os fundos públicos não chegam a beneficiar aqueles aos quais se destinam”, o que agrava ainda mais a situação econômica do País. Com efeito, como destaca o autor, “Esse ciclo conduz ao estabelecimento de uma relação simbiótica entre corrupção e comprometimento dos direitos fundamentais do indivíduo. Quanto maiores os índices de corrupção, menores serão as políticas públicas de implementação dos direitos sociais. Se os recursos estatais são reconhecidamente limitados, o que torna constante a invocação da reserva do possível ao se tentar compelir o poder público e concretizar determinados direitos consagrados no sistema, essa precariedade aumentará na medida em que os referidos recursos, além de limitados, tiverem redução de ingresso ou forem utilizados para fins ilícitos”.
[28] FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Corrupção no Poder Público. São Paulo: Atlas, 2002, p. 38.
[29] Improbidade Administrativa, ob. cit., p. 21.
[30] Idem, p. 13.
[31] Idem, p. 13.
[32] Idem, p. 10.
[33] Cf. MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado. Aspectos gerais e mecanismos legais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 17. Sobre a simbiose existente entre crime organizado e o Poder Público, interessante é a observação de Luiz Flávio Gomes, que elenca a conexão estrutural ou funcional existente entre o crime organizado com agentes do Poder Público como uma das características do fenômeno. Diz o autor: “O crime organizado, não raramente, tudo dependendo do seu grau de desenvolvimento, acaba por formar uma simbiose com o Poder Público, seja em razão do seu alto poder de corrupção, seja em virtude do seu alto poder de influência. Pode dar-se que da própria estrutura da organização tomem parte agentes do Poder Público. Pode ocorrer, de outro lado, que seu funcionamento seja favorecido pelo Poder Público. Em ambas as hipóteses temos um sinal patente de organização criminosa, que, para alcançar a impunidade, busca a todo custo a união com os poderes estabelecidos (político e/ou jurídicos). Uma das formas mais comuns de se estabelecer essa união de interesses consiste na ajuda financeira para campanhas eleitorais. Alcançando-se esse nível é evidente o risco da constituição de um ‘Anti-Estado’, seja pela impunidade que resulta a garantia, seja pelas atividades tipicamente estatais que a organização passa a desempenhar” (GOMES, Luiz Flavio; CERVINI, Raúl. Crime Organizado. Enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e político-criminal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 96-97.  
[34] Salienta-se que tal situação de desigualdade já vem sendo apontada há tempos por renomados penalistas, podendo aqui ser destacada a abalizada observação de Heleno Cláudio Fragoso (“Ciência e Experiência do Direito Penal”, Revista de Direito Penal, v. 26, Rio de Janeiro, 1979, p. 14-15): “A Criminologia, voltando-se para a análise do próprio mecanismo repressivo veio revelar que a justiça criminal funciona seletivamente sobre os pobres e desfavorecidos. Como disse muito bem Eduardo Novoa, o Direito Penal é o direito dos pobres, não porque os tutela e projeta, mas sim porque sobre eles exclusivamente faz recair sua força e seu rigor. Eles é que constituem a clientela do sistema e são por ele, virtualmente, oprimidos. Só os pobres sofrem processo por vadiagem e só eles são vítimas das batidas policiais com o seu cortejo de ofensas e humilhações. Os ricos livram-se facilmente, contratando bons advogados, recorrendo ao tráfico de influência e à corrupção. Eles nunca vão às prisões. Quando, em situações excepcionais, isso vem a suceder, logo ficam doentes e são transferidos para os hospitais. Pode-se imaginar o impacto que tais considerações produzem nos que se ocupam com a elaboração técnica do direito Penal, procurando aperfeiçoá-lo. Parece certo que a realização do sistema punitivo funciona como um processo de marginalização social, para atingir uma determinada clientela, que está precisamente entre os mais desfavorecidos da sociedade”.
[35] Antonio Silva Magalhães Ribeiro (Corrupção e Controle na Administração Pública, ob. cit., p. 29), faz interessante observação: “De grande relevância, em função da ótica com que analisa o fenômeno, é o estudo do comportamento da sociedade frente a esse problema. RIOS (1987), por exemplo, afirma que, embora a nossa opinião pública mostre-se extremamente sensível ao escândalo financeiro e aos atentados contra o erário, é muito menos perceptiva a formas mais sutis e costumeiras de fraudes que todos praticam, desde as mais simples até as mais complexas, no cotidiano brasileiro. Com isso, ele tenta demonstrar que, enquanto se escandalizam com os grandes escândalos nacionais, as pessoas não se inibem de praticar pequenos delitos, a exemplo de infringir as regras do trânsito, furar filas e disputar privilégios, imprimindo-lhes a sensação da aventura ou proeza, porque o ‘ser esperto’ seria um lado do ‘ser brasileiro’”. Acrescenta o autor que “Dados levantados nos últimos anos, no entanto, indicam que tal percepção é apenas parcialmente verdadeira no que diz respeito ao aspecto da tolerância da população frente aos grandes escândalos. Uma pesquisa publicada pelo Jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, demonstra que pelo menos 29% dos paulistas – o que não é tão pouco – preferem um político que ‘rouba, mas faz’ a um que é honesto, mas como menor capacidade para realizar obras”.
[36] Cf. CERVINI, Raúl. Análise Criminológica do Fenômeno do Delito Organizado. In: Ciência e Política em Honra de Heleno Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p.. 489/515.
[37] “A corrupção é uma espécie de criminalidade oculta. Seu modus faciendi tem a marca da clandestinidade e do sigilo. As transações ilícitas exigem a absoluta discrição dos protagonistas. São realizadas à sorrelfa. Ninguém fala, ninguém vê, ninguém escuta: essa é a regra. Corrupto e corruptor não querem publicidade. Muito menos investigações dos auditores fiscais da Receita Federal, do Tribunal de Constas e do Ministério Público. Os acertos, por mais espúrios e arriscados que sejam, são protegidos por um manto do silêncio. Isso torna impossível o dimensionamento dos delitos praticados em nível nacional e internacional. As estatísticas apresentadas até hoje baseiam-se em dados estimativos que não correspondem à realidade. Dados extraídos de repartições públicas ou coletados nos meios de comunicação. Existe um profundo abismo entre a criminalidade aparente (captada pelos órgãos de controle social) e a criminalidade real (atos concretos de improbidade). O desencontro de informações impede que se tenha uma noção exata da escalada da corrupção em nível nacional e internacional” (SARMENTO, George. Improbidade Administrativa. Porto Alegre: Síntese, 2002, p. 28-29).
[38] Trata-se da famigerada Lei 10.628/2002, que por meio de seu art. 1º acrescentou os § § 1º e 2º ao art. 84 do CPP, garantindo foro por prerrogativa de função ao ex-agentes que tenha cometido crimes relativos às suas funções e durante seu exercício, bem como assegurando o foro privativo originário para os agentes públicos que tivesse igual prerrogativa em matéria criminal.
[39] Como destaca Emerson Garcia (Improbidade Administrativa, ob. cit., p. 12) “um país cuja classe política tem a coragem (ou o desatino) de idealizar, discutir, votar, aprovar, sancionar e publicar uma lei como essa, certamente ainda tem um longo caminho a percorrer”, mormente quando tentam enfraquecer, diminuir os poderes de uma instituição como o Ministério Público, constitucionalmente vocacionada para defender os interesses da sociedade, inclusive velando pelo patrimônio público e o respeito à probidade administrativa.
[40] Rcl 2138-DF, DJ 17.09.2002. A reclamação em tela, ajuizada pela Advocacia-Geral da União, insurge-se contra decisão de 1ª instância proferida na ação nº 1999.34.00.016727-9, que julgou procedente os pedidos formulados em ação de improbidade promovida pelo Ministério Público Federal, condenando o réu nas penalidades previstas no art. 12 da Lei nº 8.429/1992, e art. 37, § 4º, da CF. A inicial imputava conduta ímproba ao réu, então Ministro-Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos – SAE da presidência da República, o sr. Ronaldo Mota Sardenberg, consistente “na solicitação e utilização indevidas de aeronaves da FAB para transporte particular seu e de terceiros, sem vinculação às suas atividades funcionais. A solicitação de aeronaves deu-se a partir de comunicações feitas pelas autoridades federais ao Chefe de Gabinete do Ministério da Aeronáutica em Brasília-DF, e a utilização ilegal das aeronaves ocorreu a partir de Brasília-DF ou nela foi finalizada”. Como observa Fábio Medina Osório (Obstáculos processuais ao combate à Improbidade Administrativa: uma reflexão geral.In Improbidade Administrativa: responsabilidade social na prevenção e controle. Coleção Do Avesso ao Direito. Vitória: Ministério Público do Estado do Espírito Santo – Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, 2005, p. 199), “Curiosamente, a Advocacia-Geral da União figura como defensora direta dos interesses do acusado, o que não deixa de ser uma distorção em si mesma, em se tratando de ação punitiva endereçada pessoalmente contra determinada figura, e não contra entidade estatal”.
[41] O pedido de vista foi renovado, de forma justificada, para aguardar o julgamento das ADIN’s 2.797 e 2.860, que envolve temas relacionados à reclamação.
[42] Por ocasião do exame da emenda constitucional referente à Reforma do Judiciário, o Senado Federal inseriu alterações e acréscimos ao texto aprovado pela Câmara dos Deputados. Dentre os acréscimos merece destaque o relativo ao foro por prerrogativa de função, constante da Proposta de Emenda à Constituição nº 29, de 2000 (nº 96, de 1999, na Câmara dos Deputados), que tem o seguinte teor: “Art. 97-A. A competência especial por prerrogativa de função, em relação a atos praticados no exercício da função ou a pretexto de exercê-la, subsiste ainda que o inquérito ou a ação judicial venham a ser iniciadas após a cessação do exercício da função.Parágrafo único. A ação de improbidade de que trata o art. 37, § 4º, referente a crime de responsabilidade dos agentes políticos, será proposta, se for o caso, perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de função, observado o disposto no caput deste artigo”.
[43] Projeto de Lei nº 2.961, de 1997. Chama a atenção o art. 4º do aludido projeto, que diz: “Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (...) j) revelar o magistrado, o membro do Ministério Público, o membro do Tribunal de Contas, a autoridade policial ou administrativa, ou permitir, indevidamente, que cheguem ao conhecimento de terceiro ou aos meios de comunicação fatos ou informações de que tenha ciência em razão do cargo e que violem o sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra das pessoas; (...)”. Olvida o famigerado projeto de lei, dentre outras coisas, o fundamental papel que representa a imprensa, por exemplo, no combate e controle da corrupção. Com efeito, conforme observam Patrick Glynn, Stephen J. Kobrin e Moisés Naím (A globalização da corrupção, ob. cit., p. 38), “A explosão da comunicação e da informação não apenas dificulta como nunca a manutenção do sigilo como também obriga os governos a serem mais atenciosos com um público globalizado formador de opinião (investidores, jornalistas, políticos, entidades multilaterais e a opinião pública internacional em geral) que se soma às limitações com as quais esses governos devem lidar. Os riscos que as autoridades do governo correm e, talvez, mais ainda, os executivos de grandes empresas, de ver seu nome manchado por acusações de corrupção de escala global, são maiores que nunca. É de se presumir, pois, que tal aplicação de riscos possa surtir efeito coercitivo”.
[44] Nesse sentido, em publicação coletiva do Ministério Público do Estado do Espírito Santo, Fábio Medina Osório revela interessante pesquisa relativa às tentativas de ataques ao Ministério Público (Obstáculos processuais ao combate à improbidade administrativa: uma reflexão geral. In Improbidade Administrativa: responsabilidade social na prevenção e controle. Coleção Do Avesso ao Direito. Vitória: Ministério Público do Estado do Espírito Santo – Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, 2005, p. 228-229): “Em pesquisa efetuada junto ao site eletrônico da Câmara dos Deputados, utilizando as palavras ‘Ministério Público’ e ‘Público’, foram localizados 272 (duzentos e setenta e dois) itens, sendo que, deste universo, nove projetos de lei tentam, de algum modo, suprimir alguma espécie de garantia ou atribuição do Ministério Público, dentre elas o estabelecimento dos mesmos meios processuais para intimação utilizados para as demais partes do processo (PL-624/1999) e revogação de dispositivo que concede ao Ministério Público, quando parte no processo, prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer, a fim de igualá-lo ao particular (PL-4331/2001), entre outros. Quanto a Projetos de Emenda Constitucional, foram encontradas 58 (cinqüenta e oito) ocorrências, sendo que merece ser citado o PEC-368/2001, que revoga o inciso I do art. 129 da Constituição Federal, retirando a função institucional do Ministério Público de promover, privativamente, a ação penal pública. Há muitos outros ataques institucionais ocultos em projetos de lei e emendas constitucionais, em via incidental, que tramitam no Congresso Nacional, revelando o momento peculiar da Instituição e o ambiente de hostilidade reinante”. Sem adentrar no mérito das alterações, a observação é importante para demonstrar a clara tentativa de cercear as funções de uma das instituições que vem se revelando como uma das mais importantes na promoção da Justiça, na defesa dos interesses difusos da coletividade. Corre-se inclusive o risco de abrir caminho para a vingança privada, ao se retirar o caráter privativo das ações penais públicas das mãos do Ministério Público. Olvida-se que já há mecanismos legais de se coibir eventuais abusos por parte de membros da instituição, bem como de que a diminuição de suas prerrogativas pode representar verdadeiro retrocesso social, a comprometer a tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana.   
[45] “Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”.
[46] “Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora das funções ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de vantagem”.Art. 318. 
[47] Cf. FAZZIO JUNIOR, Waldo. Corrupção no Poder Público, ob. cit., p. 87.
[48] Na verdade trata dos crimes (art. 1º) e das infrações político-administrativas (art. 4º) praticados por prefeitos, sendo impropriedade da lei falar em vereadores, vez que estes não respondem criminalmente com base na presente lei, salvo se estiver exercendo o cargo de prefeito ou se cometer a infração em concurso com o alcaide.
[49] Cf. art. 52, CF.
[50] O Impeachment. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 70. Na linha desse entendimento é a posição de Eugênio Pacelli de Oliveira (Curso de Processo Penal. 4ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, pp. 87-88), que acrescenta: “Não bastasse, e se necessário fosse ir mais longe, não se pode perder de vista que o crime é fenômeno social, sempre ligado às regras da convivência humana, do que resulta a exigência de um Direito Penal de intervenção mínima, como ultima racio, legitimando-se a criminalização somente diante de ofensas, efetivas ou potenciais, a bens jurídicos indispensáveis à sobrevivência do corpo social”. Ademais “Os crimes de responsabilidade, quando não tipificados também como crimes comuns, não têm a dimensão coletiva e difusa própria dos interesses do Direito Penal, no que se refere aos bens selecionados para a necessária tutela. Relembre-se, como exemplo, o fato definido no art. 9º, item 7, da Lei n. 1.079/50, que estabelece ser crime de responsabilidade do Presidente da República o proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Percebe-se, aqui, e a toda evidência, que semelhante tipificação não ostenta nem sequer atributos mínimos daquela própria do Direito Penal, na medida em que deixa exclusivamente ao juízo político do Senado da República a fixação dos critérios em que deveria se pautar o Chefe do Executivo para atender ao decoro do cargo”. Importante destacar que o STF possui posição diversa do aqui sustentado, reconhecendo a natureza criminal do processo de impeachment, como restou patenteado no julgamento do Mandado de Segurança nº 21.564-0-DF impetrado pelo ex-Presidente Fernando Collor. Aliás, mais recentemente a posição foi reafirmada, como se nota no julgamento das PET-1954 (DJ 01.08.2003) e PET-1.656-DF – Rel. Min. Maurício Corrêa, Informativo n. 281. Também na doutrina a posição do STF tem seus defensores, destacando-se, aqui, o posicionamento de Cármen Lúcia Antunes Rocha (Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 405), que invocando o julgamento do caso Collor, conclui que “O processo de impeachment é de natureza político-penal, conforme a maioria das opiniões dominantes, tendo sido esse tema abordado no Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do ‘caso Collor’”.
[51] Flávio Régis Xavier de Moura e Castro. Prefácio. In: Carlos Pinto Coelho Motta et alli. Responsabilidade fiscal: Lei Complementar 101 de 04.05.2000. Belo Horizonte: Del Rey, 200º, p. 14-15.
[52] Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Crimes de Responsabilidade Fiscal, ed. RT, 2001, p. 12.
[53] Cf. arts. 359-A a 359-H
[54] Aqui se tem, acreditamos, um dos principais pontos que prejudicam uma maior efetividade da lei. Realmente, espera-se que o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional venha a eliminar a exigência de crime antecedente, a exemplo do que já ocorre em outros países, ou então, não sendo possível alteração tão ampla, que se aumente o leque de crimes antecedentes, contemplando condutas que incrivelmente ficaram de fora, como os delitos de sonegação fiscal.
[55] Nº 1.491, de 14/03/2001. Diz a matéria: “Acaso diminuídos os níveis de corrupção pela metade, acarretariam eles a redução dos seguintes fatores de arrefecimento social: a) mortalidade infantil – 51%; b) desigualdade na distribuição de renda – 54%; c) porcentagem da população que vive como menos de dois dólares por dia – 45%. Além disso, ressalta que “a diferença básica entre os países não é a existência da corrupção, mas a forma de puni-la. Há, neste particular, diferenças culturais. No Japão, país opaco, políticos e empresários que são flagrados recebendo regalos em troca de benefícios se matam de vergonha. Na Itália, perdem o poder. Na Arábia Saudita, perdem a mão. Em Cingapura, paraíso de transparência, são condenados à morte”.
[56] Como exemplo lembramos a Convenção Interamericana contra a Corrupção, subscrita pelos Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 29 de março de 1996, na Cidade de Caracas, e que foi ratificada pelo Brasil em 25 de junho de 2002, posteriormente promulgada pelo Decreto nº 4.410, de 7 de outubro de 2002 (DOU de 08/10/2002), tendo sido alterada pelo Decreto nº 4.534, de 19 de dezembro de 2002.

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