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Do Poder Investigatório do Ministério Público no Brasil e no mundo

Por: José Damião Pinheiro Machado Cogan

Do Poder Investigatório do Ministério Público

no Brasil e no mundo

José Damião Pinheiro Machado Cogan

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Mestre em Processo Penal pela Universidade de São Paulo – USP.

Coordenador de Processo Penal da Escola Paulista da Magistratura

Professor Decano de Processo Penal da Academia de Polícia  Militar do Barro Branco-SP

Artigo doutrinário inserido no Juris Plenum Ouro nº 6, março de 2009.

Matéria que recentemente passou a ser discutida de forma apaixonada diz respeito ao poder investigatório do Ministério Público.

Passa-se a questionar de forma incisiva o poder do Ministério Público investigar, mormente num momento em que leva ao banco dos réus pessoas que exercem cargos nos poderes Executivo e Legislativo, ou que não convém a muitos sejam responsabilizadas em razão de interesses políticos menos nobres.

É de causar pasmo que advogados e delegados de polícia se tenham articulado de tal forma a, juntos, integrarem manifestação coletiva de órgãos classistas como se a simples investigação fosse o equivalente a condenação criminal irrecorrível e houvesse evidente usurpação dos poderes das autoridades policiais, ora apresentadas como excessivamente zelosas de suas atribuições.

O argumento trazido à colação de inconstitucionalidade na investigação ministerial, numa análise profunda, não colhe.

Trata-se de mero arremedo, verdadeiro ignoratio elenchi, para atingir objetivos outros.

Estabelece o art. 144, inciso IV, da Constituição Federal que é exclusividade da Polícia Federal exercer a função de polícia judiciária da União.

O parágrafo 4º desse artigo menciona que “às polícias civis, dirigidas por delegados de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.

Ora, o que a Constituição da República previu é que o inquérito policial, investigação originária, é exclusivo da polícia judiciária.

E tal fato nunca foi contestado, por dizer respeito à principal função da polícia judiciária.

Quando o Ministério Público investiga, não está ele usurpando função da polícia judiciária, por estar em atividade própria direcionada à formação de suaopinio delicti, posto ser sua principal função na seara criminal promover a ação penal pública.

O membro do Ministério Público que colhe elementos para complementar seu convencimento e incoar a ação penal não está presidindo inquérito policial, quando então estaria sua atuação vedada, mas sim agindo nos limites de suas atribuições funcionais visando um melhor esclarecimento dos fatos.

A própria Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, menciona, em seu inciso IV, que foi mantido o inquérito policial “como instrução provisória”, pois “é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspecta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas.”

Ademais, a autoridade policial não goza de garantia da inamovibilidade, que respalda a atuação do Ministério Público, sendo possível que, por ser hierarquicamente subordinada ao Poder Executivo, possa sofrer pressões maiores que inviabilizem apuração de delitos praticados por pessoas ligadas ao exercício momentâneo do poder.

E exemplos disso não faltam entre nós, como na investigação nas décadas de 60 e 70 do malsinado “Esquadrão da Morte”, cujos dirigentes ocupavam cargos de relêvo na hierarquia policial, contando com o beneplácito de alguns que ocupavam o poder.

Todas as investigações feitas pela própria polícia judiciária eram incapazes de chegar aos integrantes do grupo que, de forma acintosa, continuavam a retirar presos de estabelecimentos prisionais e executá-los covardemente, como se fossem senhores onipotentes e o cumprimento da lei fosse subordinado à sua exclusiva vontade.

Tais episódios, que perduraram por longos anos, enodoaram o nome do Brasil no rol das nações civilizadas.

Somente graças ao Regimento de Correições de 1930, elaborado pelo interventor em São Paulo, Cel. João Alberto Lins de Barros, é que uma vara de cada comarca acumula a função de Corregedoria de Polícia Judiciária, permitindo a apuração de crimes praticados por policiais, quando então se instaurou procedimento investigatório promovido pelo Ministério Público junto a Magistrado esclarecendo-se tais delitos, pondo-se fim ao grupo de extermínio.

Não se pode esquecer que quando a Constituição Federal faz menção à polícia preventiva e repressiva, não apresenta limitação absoluta à interpenetração de funções.

Quando a Polícia Militar persegue autor de crime ou averigua a existência noticiada de ponto de tráfico de drogas, já não está a agir como polícia preventiva.

Quando a Polícia Civil se vale de unidades de intervenção ostensiva como o GARRA e o GOE, não está a agir como polícia exclusivamente judiciária.

Caso se entendesse que a limitação das definições do art. 144 da Constituição Federal fosse absoluta, tais atuações seriam vedadas.

E não são elas criticadas pois atendem a um interesse maior, que é a mantença da ordem pública e a repressão à criminalidade.

Por outro lado, o art. 4º, do Código de Processo Penal, define que à polícia judiciária cabe a “apuração das infrações penais e da sua autoria”, acrescendo o parágrafo único que “a competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”.

A Lei de Falências anterior previa a existência de inquérito judicial,instaurado com base em relatório elaborado pelo síndico e movimentado pelo Ministério Público para o fim de apurar crimes praticados pelo falido (art. 103 e seguintes).

O art. 58 , parágrafo 3º, da Constituição Federal prevê a criação de “comissões parlamentares de inquérito” destinadas à “apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal de infratores”.

A Constituição Federal prevê no seu art. 129 , inciso III, que é função institucional do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.

Pelo inciso VI, do citado artigo, cabe ao Ministério Público “expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los”, acrescendo o inciso VIII que lhe cabe “requisitar diligências investigatórias”.

O art. 47 do Código de Processo Penal estabelece que “se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los”. Anote-se que tal requisição pode, inclusive, ser oralmente deduzida ao Delegado de Polícia quando o Ministério Público acompanha inquérito policial, como lhe faculta as Leis Orgânicas Nacional e Estadual, posto que, caso contrário, seria mero espectador inerte da atividade da polícia judiciária, já que sua presença é justificada pela fiscalização do ato e coleta de elementos para formação da sua opinio delicti.

Ora, frente a tudo isso, onde se encontra a exclusividade da investigação pela polícia judiciária?

Se houvesse exclusividade na investigação pela polícia judiciária caberia ao Promotor de Justiça que atuou no lamentável latrocínio do Bar Bodega, em São Paulo, onde a polícia judiciária frente à pressão da mídia, apontou como autores do indigitado evento pessoas que não teriam dele participado, simplesmente denunciar inocentes. Mas tal não ocorreu frente ao profissionalismo do Ministério Público que, em investigação própria, chegou a conclusão diversa do inquérito, depois demonstrada como verdadeira.

O poder de investigar também implica no resguardo do direito dos réus.

O fato de jovens Promotores de Justiça e Procuradores da República, ofuscados pela mídia inconseqüente, serem levados pelo verdor dos anos a excessivas declarações públicas, deve ser contido a nível institucional, mas não servir de justificativa para proibir o sério trabalho da maioria responsável.

Aliás é tendência mundial que o Ministério Público possa investigar.

O Código de Processo Penal Italiano de 1988, já afastado o Sistema de Juizado de Instrução, estabelece em seus artigos:

“Art. 326. Finalidade das investigações preliminares. – 1. O Ministério Público e a polícia judiciária realizam, no âmbito das respectivas atribuições, as investigações necessárias para as determinações inerentes ao exercício da ação penal. [50, 358, 405, 412].

Art. 327. Direção das investigações preliminares. – 1. O Ministério Público dirige as investigações e dispõe diretamente da polícia judiciária que, mesmo ainda depois da comunicação da notícia de crime, continua a realizar atividade de iniciativa própria segundo as modalidades indicadas nos sucessivos artigos (1).

Art. 358. Atividades de investigação do Ministério Público. – 1. O Ministério Público completa toda atividade necessária aos fins indicados no artigo 326 e realiza, outrossim, averiguações sobre os fatos e circunstâncias a favor da pessoa submetida à investigação.

Art. 370. Atos diretos e atos delegados (1). – 1. O Ministério Público completa pessoalmente qualquer atividade de investigação. Pode valer-se da polícia judiciária para o cumprimento da atividade de investigação e de atos especificamente delegados, aqui compreendidos os interrogatórios [375, 388] e os confrontos [211] dos quais participa a pessoa submetida à investigação que se encontra em estado de liberdade, com a assistência do defensor (2).

O Código de Processo Penal Português, complementado pelo Decreto-lei nº 35.007, de 13 de outubro de 1945, na sua exposição de motivos dessa legislação complementar estabelece:

“3. ...

A instrução preparatória destina-se a fundamentar a acusação, logo, é ao Ministério Público que cumpre recolher ou dirigir a recolha dos elementos de prova bastantes para submeter ao Poder Judicial as causas criminais.”

O art. 14 é específico:

“A direcção da instrução preparatória cabe ao Ministério Público, a quem será prestado pelas autoridades e agentes policiais todo o auxílio que para esse fim necessitar.

Parágrafo único. Para o coadjuvar directamente na instrução preparatória de qualquer processo, pode o agente do Ministério Público requisitar qualquer funcionário da respectiva secretaria judicial” (Código de Processo Penal Anotado e Comentado por Manuel Lopes Maria Gonçalves, 5ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 1982).

O Código de Processo Penal Português, com a redação dada pela Lei 59/98, de 25-8-98, estabelece:

“Artigo 262.º (Finalidade e âmbito do inquérito)

1. O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.

2. Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito.

Artigo 263.º (Direcção do inquérito)

1. A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal.

2. Para efeito do disposto no número anterior, os órgãos de polícia criminal actuam sob a directa orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional.

Artigo 264.º (Competência)

1. É competente para a realização do inquérito o Ministério Público que exercer funções no local em que o crime tiver sido cometido.”

O Código de Processo Penal Alemão estabelece:

“§ 160. Tan pronto el ministerio público entra en conocimiento de la sospecha de una acción punible por una denuncia o por otra vía, tiene que averiguar los hechos para tomar su decisión sobre si la acción pública debe ser promovida”.

“§ 161. Para el fin designado en el parágrafo anterior el ministerio público puede exigir información de todos los funcionarios públicos y practicar por sí mismo o hacer practicar por autoridades o funcionarios de la policía cualquier clase de diligencias con exclusión de interrogatorios bajo juramento. Las autoridades y funcionarios del servicio de policía están obligados a satisfacer el requerimiento o comisión del ministerio público”. (La Ordenanza Procesal Penal Alemana, Vol. II, organizado por Julio B. J. Maier, Ediciones Depalma, Buenos Aires, 1982).

O Código de Processo Penal Colombiano, estabelece:

“Art. 102. Sus funciones dentro del proceso - El Ministerio Público, como representante de la sociedad, debe procurar la sanción de los infractores de la ley penal, e a defensa de las personas acusadas sin justa causa y la indemnización de los perjuicios causados por la infracción.

“En cumplimiento de esos deberes, el Ministerio Público pedirá la práctica de las pruebas conducentes al esclarecimiento de la verdad, la detención o la libertad del procesado cuando sean pertinentes y, en general, intervendrá en todas las diligencias y actuaciones del proceso penal (Pág. 163/165).

“Art. 292 – Intervención del funcionario de instrucción y del Ministerio Público - Durante el proceso, la policía judicial actuará bajo las órdenes del respectivo funcionario de instrucción. Este podrá asumir en cualquier momento la dirección de las diligencias de indagación que adelante la policía judicial, o aprehender directamente la instrucción.”

“En las indagaciones que adelante la policía judicial podrá intervir el agente del ministerio público” (Nuevo Procedimento Penal Colombiano,

Editorial Temis, Bogotá, 1972, Pág. 365/366).

Outra não é a posição do Código de Processo Penal do Chile:

“Art. 75. El Fiscal de la Corte Suprema tendrá la supervigilancia del cumplimiento de las órdenes judiciales y podrá, en tal carácter, por sí o por medio de los oficiales del Ministerio Público, recabar informes, hacer inspecciones, prescribir órdenes para que los decretos judiciales sean legal y oportunamente acatados, praticar indagaciones y recibir declaraciones sin juramento, con el objeto de hacer efectiva la responsabilidad funcionaria o penal de los infractores” (Codigo de Procedimiento Penal, 11ª ed., Editoria Jurídica de Chile, Santiago, 1992).

O Código de Processo Penal Japonês ressalta:

“Art. 191. Um promotor público pode, se ele julgar necessário, investigar a ofensa ele mesmo.”

“Art. 193. Um promotor público pode, na sua jurisdição, dar necessárias sugestões gerais aos oficiais da polícia judiciária tendo em vista suas investigações.

...

3. Um promotor público pode, quando isso for necessário em um caso, ele mesmo investigar a ofensa, instruir os oficiais da polícia judiciária e compeli-los a auxiliar na investigação.

4. No caso dos três parágrafos precedentes, os oficiais da polícia judiciária seguirão as sugestões e instruções do promotor público.”

O art. 194 prevê remoção da polícia judiciária e punição disciplinar pela não observância das orientações dadas pelo Ministério Público (Código de Processo Penal – Lei nº 131/48, emendada pelas Leis nº 260/48, 116/49, 240 e 268/52, 172 e 195/53 e 57 e 163/54).

A Lei que rege o Ministério Público Japonês, estabelece

“Art. 6. Os promotores públicos podem investigar qualquer ofensa criminal.

2. O relacionamento entre os promotores públicos e outras pessoas que, de acordo com outras leis e decretos também têm o poder de investigação criminal, será estabelecido pelo Código de Processo Criminal.” (Lei nº 61/47, emendada pela Lei nº 195/47; Leis nº 31 e 260/48; Lei nº 138/49, Lei nº 96/50 e lei nº 268/52).

(Textos extraídos do livro The Constitution of Japan an Criminal Statutes, publicação original do Ministério da Justiça Japonês e republicado pela University Publications of América, Inc., Washington D.C., USA, 1979, págs. 130, 131, 403,404).

Como se vê, pois, no Japão, o membro do Ministério Público passa a dirigir as investigações, quando delas toma ciência.

Códigos de Processo Penal da Bolívia, Equador e Venezuela, entre tantos outros, permitem ao Ministério Público a condução das investigações, assessorado pelos órgãos policiais.

Ninguém ignora a força do Ministério Público Americano que, com menos garantias que o nosso, leva inúmeros criminosos ao banco dos réus, em investigações, por vezes próprias.

Assim, como se vê, é tendência mundial que o Ministério Público possa investigar. Caso contrário, seria ele mero ratificador de investigações policiais e poderia ser facilmente substituído por computadores, o que a ninguém interessa, já que é um dos sustentáculos da democracia moderna.

O lamentável é a sustentação do contrário, por meros interesses pessoais menores, principalmente quando ainda existem nessa República pessoas que se acreditam intocáveis e acima das leis, a quem, evidentemente, as investigações do Ministério Público incomodam.

Não é hora, frente à criminalidade crescente e organizada que a todos preocupa, de se procurar o isolacionismo entre Polícia Judiciária e Ministério Público, sob argumento de exclusividade do poder investigatório.

Quanto mais órgãos investigarem os ilícitos penais, maior é a certeza da sociedade de que os crimes, que tanto intranqüilizam os cidadãos ordeiros, terão pronta e eficaz repressão quer sejam praticados por hipossuficientes ou por aqueles adulados pelos poderosos do momento, posto que ensina a Lei Maior que “todos são iguais perante a lei”.


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