Por: Janaina Andrade de Sousa
O papel do Ministério Público na efetivação da aplicação do critério da autoidentificação como forma de superação da visão etnocêntrica nos estabelecimentos prisionais do Estado do Pará
Janaina Andrade de Sousa*
"(...)na definição da identidade étnica, é essencial levar em conta as percepções dos próprios sujeitos que estão sendo identificados, sob pena de se chancelarem leituras etnocêntricas ou essencialistas dos observadores externos provenientes de outra cultura, muitas vezes repletas de preconceito. A idéia básica, que pode ser reconduzida ao próprio princípio da dignidade da pessoa humana, é de que na definição da identidade, não há como ignorar a visão que o próprio sujeito de direito tem de si, sob pena de se perpetrarem sérias arbitrariedades e violências, concretas ou simbólicas”(Daniel Sarmento – Parecer - Territórios Quilombolas e Constituição: A ADI 3.239 e a Constitucionalidade do Decreto 4.887/03)
O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (Constituição Federal, artigo 127).
Estabelece ainda a Constituição Federal, que são funções institucionais do Ministério Público zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia, bem como promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social e de outros interesses difusos e coletivos (Constituição Federal, artigo 129, I e III).
Nesse trilhar, dentre as atribuições acima elencadas, ao Ministério Público é conferida a defesa dos direitos coletivos dos povos indígenas e das minorias éticas, seja na esfera cível, como na seara penal.
De outra banda, objetivando regulamentar a atuação do Ministério Público no âmbito do sistema prisional, foi editada pelo Conselho Nacional do Ministério Público-CNMP a Resolução n. 56, de 22.06.10, (alterada pela Resolução n. 80, de 18.10.2011), estabelecendo que os membros do Ministério Público incumbidos do controle do sistema carcerário deverão preencher mensalmente formulário de avaliação do sistema penal.
No referido formulário, no tópico IV, do Perfil dos presos/internos e da população, um dos itens a ser preenchido é o quantitativo de custodiados indígenas[1].
Ocorre que em visita carcerária realizada no Complexo Penitenciário da comarca de Capanema-PA restou evidenciado que o critério da autoidentificação[2] não é observado, especialmente por falta de conhecimento das autoridades administrativas, típico de uma cultura etnocêntrica[3].
Embora a resolução n. 56 do CNMP não traga a previsão expressa da adoção do critério do autorreconhecimento, não podemos olvidar que a Constituição da República veda todo e qualquer entendimento jurídico, de forma direta ou indireta, na tese, já superada, da superioridade cultural da sociedade dita majoritária.
De outro giro a Lei de Execução Penal no capítulo I, “Da Classificação”, estabelece que:
“Art. 5º Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal.
Art. 6o A classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação que elaborará o programa individualizador da pena privativa de liberdade adequada ao condenado ou preso provisório. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003)
Art. 7º A Comissão Técnica de Classificação, existente em cada estabelecimento, será presidida pelo diretor e composta, no mínimo, por 2 (dois) chefes de serviço, 1 (um) psiquiatra, 1 (um) psicólogo e 1 (um) assistente social, quando se tratar de condenado à pena privativa de liberdade.
Parágrafo único. Nos demais casos a Comissão atuará junto ao Juízo da Execução e será integrada por fiscais do serviço social.
Art. 8º O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução.
Parágrafo único. Ao exame de que trata este artigo poderá ser submetido o condenado ao cumprimento da pena privativa de liberdade em regime semi-aberto.
Art. 9º A Comissão, no exame para a obtenção de dados reveladores da personalidade, observando a ética profissional e tendo sempre presentes peças ou informações do processo, poderá:
I - entrevistar pessoas;
II - requisitar, de repartições ou estabelecimentos privados, dados e informações a respeito do condenado;
III - realizar outras diligências e exames necessários”.
Sucede que os dispositivos legais acima indicados foram elaborados sob o paradigma de direitos da pessoa humana anterior à Constituição Democrática, não prevendo, pois, expressamente a realização de estudos antropológicos do preso e/ou adoção do critério da autoidentificação.
Sem embargo, entendemos que, no contexto do multiculturalismo, a análise do perfil preso indígena deve considerar suas peculiaridades culturais, pelo que a elaboração do estudo antropológico é medida necessária. “Para Villares (2009, p. 302), o laudo antropológico-cultural deveria ser obrigatório porque só ele poderá demonstrar no caso concreto a inserção de um valor cultural numa pessoa criada em uma sociedade diversa[4]”.
Neste diapasão, temos que a Constituição é o fundamento de validade de toda a ordem jurídica, e que se revela incompatível no ordenamento qualquer norma dissociada de suas diretrizes. Assim, a supremacia da Constituição exige nova interpretação dos dispositivos da Lei de Execução Penal para ir ao encontro à diretriz constitucional, que reconhece aos índios sua organização social, costumes, língua, crenças e tradições (Constituição Federal, art. 231).
O critério da autodefinição assegura aos índios, inclusive aos que vivem fora de suas comunidades tradicionais, se considerarem índios, porque se autoidentificam como tais. “A única tutela admissível com a promulgação da Constituição brasileira de 1988 é aquela revestida de caráter público, que visa a proteger os povos indígenas e seus bens, sob a perspectiva de que se trata de minorias culturais”[5].
De mais a mais, o emprego do critério da autodefinição também é previsto no art. 1º, item 2, da Convenção 169 da OIT, que trata dos direitos dos povos indígenas e tribais, norma de escalão hierárquico superior, a qual encontra-se plenamente em vigor no ordenamento jurídico brasileiro(promulgada pelo Presidente da República através do Decreto n. 5051, de 19/04/2004)[6].
Assim, a correta identificação do preso indígena tem consequências de várias ordens, especialmente se considerarmos que os povos indígenas podem aplicar as sanções previstas em seus sistemas normativos, nos termos dos artigos 9º e 10 da Convenção 169 da OIT[7]. Citemos como exemplo a Ação Penal n. 92.0001334-1, que tramitou na Justiça Federal de Roraima, na qual os jurados consideraram que o fato do índio Basílio ter sido julgado e condenado segundo os costumes de sua comunidade indígena era suficiente para isentá-lo de pena decorrente do julgamento realizado pelo Tribunal do Júri Federal(o paradigmático “Caso Basílio”)[8]. De igual modo, é caso exemplificador, o julgamento do Agravo de Instrumento n.º 41518 PR (2005.04.01.041518-8 /TRF-4) que levou em consideração as normas do sistema jurídico Kaingang, o qual permite a pena de transferência/banimento[9].
Por sua vez, no contexto do sistema prisional, a correta indicação da etnia do detento interfere no regime de cumprimento da pena, conforme preconiza o Estatuto do Índio. O parágrafo único do art. 56 da Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio), prevê que se deve priorizar o "regime de semiliberdade", ou seja, semiaberto. Por regime semiaberto conceitua-se aquele em que "o condenado fica sujeito a trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar" (art. 35, § 1º do Código Penal). Assim, as penas de reclusão e de detenção, data venia, deverão ser cumpridas em regime especial de semiliberdade na sede da FUNAI mais próxima da habitação do condenado.
Nessa senda, a necessidade de se adotar o critério da autoidentificação ganha maior relevo quando se leva em consideração o recorte etnográfico do Estado do Pará, considerado a segunda Unidade Federativa em número de populações indígenas, segundo as estatísticas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), possuindo oficialmente 39 terras indígenas e 41 etnias. E ainda segundo, levantamentos recentes, mostram que tal número pode ser maior: havendo registro da existência de 55 etnias no Estado, falando 27 idiomas[10].
Pelo exposto, percebe-se que nos tempos da propalada pós-modernidade, o Direito e a antropologia parecem cada vez mais trilhar em lados opostos. Lamentavelmente a visão etnocêntrica ainda é a regra, conforme se percebe da leitura de postagens em canais de mídias sociais intitulado: “É, leitor, cada vez mais, o bom negócio é ser índio. Comece a pensar no assunto”[11].
Portanto, resta evidente que é dever institucional do Parquet fomentar a superação da visão integracionista, resguardando os bens(patrimônio cultural) e valores(diversidade étnica e cultural), inclusive, com a propositura de ações cíveis e criminais competentes.
Nesse contexto, também configura atribuição do Ministério Público, no exercício de suas atribuições institucionais na defesa dos direitos assegurados na Magna Carta Constitucional, emitir recomendações dirigidas ao Poder Público, aos órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, aos concessionários e permissionários de serviço público e às entidades que exerçam função pública delegada ou executem serviço de relevância pública (art. 27, parágrafo único, inciso IV, da Lei n.º 8.625/93), nos termos das disposições no art. 55, parágrafo único, inciso IV, da Lei Complementar Estadual nº. 057/06, bem como do artigo 27, parágrafo único, inciso IV, da Lei nº 8.625/93 c/c art. 6º, inciso XX, da Lei Complementar Federal n° 75/93(em análise sistêmica aplicado ao Parquet Estadual).
Registra-se, por fim, que foi expedida no âmbito da 3ª PJ de Capanema a Recomendação 083/2011, no sentido de que o Diretor do Presídio daquela comarca adotasse as providências necessárias para levantamento do quantitativo de presos indígenas valendo-se do critério da autodefinição, bem como adotasse as providências necessárias para qualificar custodiados indígenas que porventura ingressarem na Casa Penal, também, pelo critério do autorreconhecimento e, em havendo preso indígena, que o fato fosse imediatamente comunicado ao Ministério Público Estadual e Federal, bem como à FUNAI para adoção das providências que entenderem cabíveis no âmbito de atribuição de cada Instituição[12].
*Janaina Andrade de Sousa é Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará