Por: Ronaldo Batista Pinto
É discutível a legitimidade do promotor de justiça para propor a revisão criminal, dividindo-se a doutrina a respeito dessa questão (1). Os principais argumentos no sentido de negar ao parquet a legitimidade ativa para ajuizar o pedido são que, primeiro, a lei não prevê tal possibilidade, conforme se verifica do minucioso rol trazido pelo art. 623 do CPP. E, segundo, que não teria cabimento o Ministério Público ocupar o pólo ativo da relação processual, na qualidade de autor do pedido revisional e, ao mesmo tempo, compor o pólo passivo desta mesma relação, eis que, nas revisões criminais, é o parquet a parte passiva na demanda (2).
Pensamos diferentemente. O Ministério Público, conforme tantas vezes alertado, de há muito deixou de atuar no processo penal como um verdadeiro acusador profissional, buscando, a qualquer custo, uma condenação, pouco se importando com a forma pela qual obtida. Ao revés, encarna hoje o interesse primordial do Estado que consiste na obtenção de uma sentença justa, seja ela absolutória ou condenatória. Por ser umaparte diferenciada (ou parte imparcial, para se utilizar de força de expressão), é que se admite, de forma hoje incontestável, que, por exemplo, recorra em favor do réu, que peça antes sua absolvição ou que impetre habeas corpus em prol do agente. Assim, agindo como fiscal da correta aplicação da lei, naquilo que se convencionou chamar de custos legis, não há como se negar, ao Ministério Público, a titularidade da revisão criminal.
Não aproveita se afirmar que o art. 623 do CPP não prevê tal possibilidade. É que o código, quando trata de recursos, em mais de uma passagem elenca um rol apenas exemplificativo, sem inibir que outras pessoas, além daquelas apontadas no texto legal, possam recorrer. Assim,v.g., ao tratar dos legitimados para a apelação, no art. 577, o código não mencionou a figura do curador e, apesar disso, jamais lhe foi negada a legitimidade ativa para interpor o recurso (3). De outro lado, ao tratar da legitimidade do assistente de acusação, no art. 271, o código não alude à possibilidade dele opor embargos de declaração da sentença ou do acórdão e, apesar disso, alguém negaria essa faculdade ? Não se ignora, é verdade, o tranqüilo entendimento no sentido de que a revisão criminal não possui a natureza jurídica de recurso. Todavia, para fins de argumentação, parece válida a analogia sugerida entre legitimidade para recorrer e legitimidade para propositura da revisão.
Outro argumento a ser lembrado é que o CPP em vigor é datado de 1941, quando a posição do Ministério Público era totalmente diversa, não tendo assumido, ainda, o status de defensor da sociedade bem delineado pela Constituição de 1988. Não é de se estranhar, assim, que o legislador do processo penal não apontasse o parquet como um dos legitimados para propor a revisão criminal.
Parece não refutar esse entendimento o argumento contrário consistente no fato de que o Ministério Público jamais poderia compor os dois pólos da revisão criminal: como réu, representando o Estado e, como autor, propondo a revisão criminal (4). Ora, quando oferta a denúncia e, ao final do processo, pede a absolvição, também não ocorreria o mesmo antagonismo ? Ou, quando apesar de propor a inicial, recorre em favor do réu condenado, também não estaria o Estado presente nos dois pólos do pedido, como recorrente e recorrido ? Apesar disso, de há muito se confere ao Ministério Público a possibilidade de pedir absolvição ou recorrer em favor do réu. Ou, ainda, quando impetra habeas corpus contra uma sentença transitada em julgado, não estaria o Estado ocupando ambos os pólos da demanda ? Não vislumbramos, assim, qualquer impedimento que possa ser suscitado sob esse fundamento. A propósito, excetuando-se o nomem juris e os pressupostos que são típicos de cada pedido, não há qualquer diferença, quanto à legitimidade ativa, entre se impetrar um habeas corpus contra sentença transitada em julgado ou se propor uma revisão criminal na mesma situação.
Aliás, não há nada de inédito no fato do Estado, de forma simultânea, ser encontrado em ambos os pólos da relação processual. Quando, através da Procuradoria do Estado (ou Defensoria Pública), se ingressa, em favor da pessoa pobre, com uma ação de indenização contra o Estado, um outro setor da mesma Procuradoria (ou Defensoria), será incumbido da defesa. Quando o Promotor de Justiça recorre pleiteando a absolvição do réu e a Procuradoria-Geral emite parecer contrário à apelação, é o Estado, através da mesma Instituição (Ministério Público), ofertando posicionamentos diversos para o mesmo caso. O Estado é um só. Por razões de boa administração é que ele se divide. Caberá a um outro órgão do Estado, o Poder Judiciário (“Estado-Juiz”), dar a palavra final. De qualquer sorte, mesmo que se admitisse essa incompatibilidade, não se poderia negar ao Ministério Público, na ação penal privada, a legitimidade para propor revisão criminal em favor do querelado, pois, nessa hipótese, não foi oparquet quem movimentou o processo inicial, mas sim o querelante, desaparecendo, assim, a alegada incongruência entre uma e outra posição.
Em suma, tomado o Ministério Público de forma mais abrangente, despido da condição de mero acusador, não há como se negar à Instituição a possibilidade de, na busca da correta aplicação da justiça, manejar pedido de revisão criminal.
Notas
1. pela legitimidade do MP: Ada, Magalhães e Scarance, Recursos no processo penal. p. 311; Tourinho Filho, Processo penal, vol. 4, p. 605; Demercian & Maluly, Curso de processo penal, p. 575; Sérgio de Oliveira Médici, Revisão criminal, p. 155. Negando essa possibilidade: Julio Fabbrini Mirabete, Processo penal, p. 733; Guilherme de Souza Nucci, Manual de processo e execução penal, p. 852.
2. na jurisprudência, não reconhecendo a legitimidade do MP: RT 795/524 (STF), 694/375.
3. claro que o curador aqui mencionado não é mais aquele nomeado em favor do réu menor de 21 anos, ante a revogação do art. 194 do CPP pela Lei nº 10.792/03. Mas, por exemplo, o curador indicado em prol do réu que apresente problema mental, nos termos do art. 151 do CPP.
4. mesmo a posição do Ministério Público como parte passiva da relação processual é discutida na doutrina. No sentido afirmativo, Ada, Magalhães e Scarance, ob. cit. , p. 308. Em sentido contrário, isto é, negando ao parquet a qualidade de parte, Sérgio de Oliveira Médici, ob. cit., p. 311.
Ronaldo Batista Pinto é promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela UNESP e Professor Universitário.