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PEC 37: o paraíso da impunidade pode ser aqui

Por: Vinícius Gahyva Martins

A população brasileira acompanha, apreensiva, a tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição Federal, que pretende estabelecer a privatividade da investigação das infrações penais para as polícias civis e federal. A PEC nº 37/11, de iniciativa do deputado federal e delegado de polícia Lourival Mendes (PTdoB-MA), propõe a alteração da Lei Maior do país, para que somente os próprios delegados de polícia possam conduzir a investigação de crimes no Brasil.

Para que possamos compreender a dimensão da PEC 37 e suas consequências para a sociedade, precisamos ter em mente que a investigação criminal nada mais é do que a arte, o ofício ou a função de indagar, de inquirir, de pesquisar e de documentar os vestígios e os sinais deixados por fatos definidos na lei como crimes. Como tal, a atividade investigativa não é um fim em si mesmo na medida em que, por si só, não acarreta qualquer consequência prática ou jurídica, seja no aspecto preventivo (até porque o crime já ocorreu), seja no aspecto retributivo (ao final da investigação, o investigado não é condenado a cumprir pena). Mas se trata de uma atividade essencial, porquanto seja através da investigação que se produz as provas que serão utilizadas no processo criminal.

A Constituição Cidadã de 1988 estabeleceu a forma democrática com que a república e a sociedade brasileira, sob os influxos do princípio da universalização da investigação, deve se organizar na apuração da prática dos crimes e suas autorias. Em atenção ao mandamento constitucional, desenvolvemos um sistema nacional de controle, fiscalização e investigação de crimes que passa pela atuação, autônoma ou em regime de força-tarefa, não somente das polícias civis e federal (através de inquérito policial), mas também dos outros ramos policiais (PM, PRF, PFF), das inteligências fiscais (receitas federal, estaduais e municipais), das Controladorias da Administração Pública, dos órgãos ambientais, dos Conselhos de defesa dos interesses de crianças e adolescentes, idosos, deficientes físicos, da saúde, dos Tribunais de Contas, do Coaf, do Banco Central, dos Procons, dos órgãos de defesa do direito econômico, da sociedade civil organizada (movimentos e articulações sociais de defesa dos direitos humanos e de combate à corrupção), das delegacias do trabalho, da imprensa investigativa, dos cidadãos, do Ministério Público, do Poder Legislativo (CPIs), do Judiciário, enfim, de todas as instâncias comprometidas em modificar o deficitário quadro de impunidade deste país. 

Portanto, ao estabelecer a privatividade da investigação das infrações penais às polícias ditas judiciárias, a PEC 37 acaba por afrontar o desiderato e a coerência constitucional, na medida em que exclui, afasta, marginaliza os vários organismos públicos e privados, governamentais e não governamentais, que hoje prestam relevantes serviços na elucidação de crimes e na redução dos alarmantes índices de impunidade Brasil afora.

Nota-se que o inquérito policial (espécie), não é o único instrumento de investigação criminal (gênero). Vários dos atores referidos, assim como qualquer cidadão pode encaminhar provas diretamente ao Ministério Público, enquanto titular constitucional da Ação Penal, para que se inicie do processo penal, este sim, apto à aplicação da pena criminal e a conduzir o criminoso à prisão. O Código de Processo Penal é claro em prever a dispensabilidade do inquérito policial e a possibilidade da Justiça processar uma Ação Penal com base nas chamadas peças de informação e procedimentos investigatórios que fundamentem a ação do Ministério Público, fornecendo-lhe a chamada justa causa, ou seja, a materialidade e a autoria delituosa.

Ademais, nós sabemos, pelos próprios policiais, o quanto as estruturas dos órgãos de segurança pública estão delibilitadas, sucateadas e expostas a vulnerabilidades como a corrupção e a violência policial. Vale lembrar que os dados recentemente divulgados, por meio do Mapa da Violência no Brasil e os indicadores da Estratégia Nacional de Segurança Pública (ENASP) são coincidentes em apontar que apenas 8% (oito por cento) dos homicídios praticados no país são solucionados. E notem que, além do homicídio situar-se como o ponto culminante na orografia dos crimes, é o que mais deixa vestígios e sinais a serem investigados. Imaginem aqueles que sequer se tornam registros da violência e incrementam as chamadas cifras ocultas, para descrédito das instituições e recrudescimento da sensação de impunidade.

Nos países como o Brasil, que seguem a tradição romano-germânica, do direito continental europeu (Civil Law), as constituições e as leis autorizam o Ministério Público a realizar investigações criminais autônomas, principalmente nas situações em que a polícia costuma sofrer pressões corporativas e políticas que a impedem de atuar com imparcialidade e com independência. A realidade cotidiana está a demonstrar que as pressões corporativas prejudicam as investigações policiais sobre o envolvimento de seus próprios agentes em crimes funcionais e em violações de direitos humanos. Os delegados de polícia também sofrem fortes pressões e ingerências do poder hierárquico, que embaraçam as suas investigações, quando os fatos apurados envolvem agentes políticos nos crimes que lesam o patrimônio público.

É muito comum os Promotores de Justiça serem procurados pelos próprios delegados de polícia em busca de apoio, quando recebem notícias de crimes praticados pelos detentores do poder político, do poder econômico, ou de grande influência social, pedindo que o Ministério Público assuma a investigação, porque não terão condições de levá-las a frente. Portanto, é bom que se diga: o MP não concorre com a polícia e não quer se apropriar do inquérito policial. As investigações dos órgãos ministeriais caminham por áreas de atuação criminal onde a polícia não tem vez.

Em situações como estas e outras, os membros do Ministério Público brasileiro têm realizado numerosas investigações criminais autônomas e em parceria com a polícia e outras instituições, que vêm dando origem a processos penais contra pessoas muito influentes na política e na economia, e que até bem pouco tempo estavam acima das leis e da Justiça.

Portanto, que fique bem claro que, o Ministério Público e as instituições com que faz questão de dividir a atividade investigatória estão democratizando o banco dos réus e resgatando o ideal republicano de que todos são iguais perante a lei. Em recente pesquisa realizada pelo prestigiado IBOPE, 96% dos entrevistados disseram-se favoráveis aos procedimentos investigatórios autônomos realizados pelo Ministério Público e apenas 4% manifestaram que as investigações criminais deveriam ser monopólio da polícia.

Sendo assim, qual seria a razão da PEC 37? Não precisa de muito esforço para perceber que o fortalecimento do sistema de justiça criminal brasileiro acaba por incomodar uma minoria poderosa e bem articulada, que tem se disposto a engendrar uma série de ataques contra o Ministério Público, através de propostas legislativas que visam suprimir algumas de suas funções institucionais e fragilizar as garantias de independência dos seus membros.

Dentres as proposições reacionárias, a mais despudorada de todas é justamente a PEC 37. Ainda que flagrantemente contrária aos interesses da sociedade e da nação, a chamada "PEC DA IMPUNIDADE" foi aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça e por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados e poderá ser votada em Plenário a qualquer momento.

Caso venha a ser aprovada, o Brasil voltará a ser o paraíso da impunidade para os delinquentes de colarinho branco e estará desrespeitando abertamente vários compromissos assumidos por meio de tratados e convenções das Nações Unidas, que recomendam a participação do Ministério Público nas investigações criminais como forma de garantir isenção, independência e eficiência no combate à tortura, à corrupção e ao crime organizado.

Estaremos ao lado de exemplos como Uganda, Quênia e Indonésia. Será que o povo brasileiro merece isso?

Vinicius Gahyva Martins, cidadão, Promotor de Justiça, Presidente da Associação Mato-grossense do Ministério Público e Secretário Geral da CONAMP.


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