Por: Lenio Luiz Streck, Jurista e Professor
Tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição 457, conhecida, de forma pejorativa, de PEC da Bengala, uma vez que altera a idade da aposentadoria compulsória de 70 para 75 anos no serviço público, o que inclui os ministros dos tribunais superiores do Brasil.
É simples assim. Em vez de, por exemplo, um ministro do STJ ou STF ter de se retirar aos 70 anos, passaria a ter o direito de ficar por mais 5 anos. Veja-se que os meios de comunicação e a população em geral já colocaram um apelido na Proposta de Emenda. PEC da bengala não parece ser o melhor epíteto, porque gera um certo preconceito contra as pessoas — hoje perfeitamente vivendo com saúde mental e física — que judicam nos tribunais superiores (e, obviamente, contra os demais servidores públicos). De todo modo, esse é o preço que a PEC tem de pagar em face de sua inoportunidade e inconveniência.
Em primeiro lugar, para que se faça uma emenda constitucional desse jaez é necessário um amplo debate no plano do serviço público do país. Não vi isso acontecer. É evidente que devemos fazer alterações legislativas visando a economizar na máquina pública cada vez mais inchada. Entretanto, isso não é tão simples assim. Fosse o caso, bastaria propormos a extinção dos tribunais militares, dos tribunais de contas do município, de algumas procuradorias de estatais passando o trabalho para a advocacia pública, não pagar determinadas vantagens que ultrapassam o teto, auxílios de vários tipos, extinguir cargos e funções sobrepostas e/ou inúteis, uso de carros oficiais, adicionais por tempo de serviço etc. Poderíamos propor também tribunais administrativos (como em países europeus) para substituir esferas da justiça federal, que só existem em face da ineficiência da administração pública... Ou simplesmente aumentar a idade mínima para aposentadoria em mais 5 anos. Daria um patamar de economia próximo ao da PEC da Bengala... Pois é. Mas assim, sem discussão? Algumas são mais simples; outras complexíssimas. Algumas se resolvem simplesmente a partir de uma sindicalidade constitucional; outras, de complicada lege ferenda.
Em segundo lugar, se for alterada a idade máxima, por certo não deveria atingir os atuais servidores públicos — o que inclui os componentes dos tribunais. Isso é o mínimo em uma República. Os atuais detentores de cargos não podem se beneficiar de uma alteração quando eles mesmos, por exemplo, os ministros do STF, terão que julgar eventual discussão acerca da inconstitucionalidade da proposta.
Em terceiro lugar, não há prognose acerca da necessidade ou dos benefícios que a alteração trará. Por exemplo, as entidades do Ministério Público e a Associação dos Magistrados Brasileiros dizem que, a despeito do inegável aumento da expectativa de vida — a partir da segunda metade do século XX —, a proposta implica graves prejuízos ao interesse público e às carreiras do Ministério Público e do Judiciário (e acrescento eu, às demais carreiras de Estado), em virtude: a) do engessamento das carreiras, em face da possibilidade oferecida pela proposição de longa e desproporcional permanência dos membros do Judiciário nos órgãos de cúpula e dos membros do Ministério Público que atuam perante esses órgãos; b) da possibilidade de — ao contrário do que se defende — aumento das despesas com a previdência pública, em virtude do fomento às aposentadorias voluntárias por tempo de contribuição, diante da perspectiva negativa de ascensão na carreira; c) dos obstáculos ao desenvolvimento gerencial dos órgãos das carreiras de Estado, pois o alongamento em mais cinco anos do exercício na carreira impediria a renovação da administração pública, das rotinas processuais das varas, dos tribunais, dos tribunais superiores, das procuradorias etc., necessárias para trazer a este poder a celeridade e a dinamização de que necessita, conforme determina o princípio da duração razoável do processo (artigo 5°, inciso LXXVIII, CF); d) de o Brasil ser ainda um país de instituições novas, as quais, em especial as instituições jurídicas, precisam, para sua natural evolução, também, de constante evolução do pensamento de seus integrantes.
Em parte, concordo com os argumentos. De todo modo, penso que falta mesmo à referida PEC uma prognose — como antes referi — que pode ser entendida como o prognóstico que o legislador deve fazer quando elabora uma lei (mormente uma PEC) acerca de algo que poderá vir a ocorrer caso ele não faça a alteração legislativa em questão. Isto é: o legislador deve dizer as razões pelas quais é indispensável alterar determinado padrão normativo (mormente no caso em que a Emenda Constitucional altera significativamente o futuro das carreiras jurídicas e da funcionalidade das Instituições, decorrente dessa mudança). Essa ausência de prognose, como se sabe, já é, hoje, motivo — no Constitucionalismo Contemporâneo — para a declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou de uma Emenda Constitucional. E, no caso em pauta (PEC 457 de 2005), é visível a ausência de prognose. Sim, sei da liberdade de conformação do legislador. Mas essa liberdade tem limites, como todos sabemos. Não fosse isso e não haveria controle de constitucionalidade.
Em quarto lugar, trata-se de uma proposta de alteração constitucional de “conveniência”, o que a torna igualmente inconstitucional. Juristas do quilate de Ronald Dworkin consideram ser inconstitucional uma lei feita para atender determinados interesses de pessoas ou de grupos. É o que se chama de “leis de conveniência”, que não devem ser aceitas em uma democracia.
Sem dúvida, não sou contra a priori a que se faça esse tipo de alteração constitucional. Mas, é claro, para que se a faça, teremos que fazer uma ampla discussão, com audiências públicas, cálculos, discussões com o amplo espectro do serviço público brasileiro.
No plano daquilo que está causando polêmica maior — a aplicação da PEC aos membros do STF, que, com isso, poderão permanecer mais 5 anos na judicatura — causa espanto que no mundo todo os tribunais caminham no sentido de estabelecer mandatos fixos para os juízes das supremas cortes. Só aqui é que, em vez de discutir isso a fundo, queremos fazer isso de forma genérica. Não dá para aceitar que a discussão seja posta desse modo. Sendo mais simples: tudo a está a indicar que os parlamentares, para conseguirem uma extensão do tempo de serviço dos membros dos tribunais superiores — e, por favor, todos sabemos a motivação já desde 2005 quando surgiu a PEC — constroem uma emenda para todo o serviço público (até porque não poderiam fazer uma PEC dirigida, explicitamente, aos tribunais superiores). Em nenhum momento o Parlamento demonstrou o contrário disso que estou falando. Um detalhe: se a PEC vem se arrastando desde 2005 e estando o Parlamento com nova composição (o senado com um terço renovado), não necessitaria o assunto voltar às comissões respectivas? Ao que vi no site da Câmara, a última movimentação foi em junho de 2006, portanto, nove anos atrás. Isso não é relevante? Como “aproveitar” o que já foi votado nessa PEC depois de tantos anos e várias legislaturas? Portanto, esse assunto deveria partir do zero. No mínimo para que os novos parlamentares possam discutir a matéria. Como “desarquivar” (não importa, aqui, se a matéria é ou não sujeita a arquivamento) desse modo? Mesmo que haja alguma brecha no regimento interno, não parece que essa normativa permissiva seja compatível com a principiologia constitucional (soberania popular, democracia representativa, etc; afinal, um novo parlamento não pode simplesmente sufragar o que outras composições fizeram anos atrás). Bingo, pois não? Obs: aliás, há algo mais confuso que o Regimento Interno da Câmara dos Deputados ou do Senado?
Ouvindo falar disso tudo, lembro do filme O Curioso caso de Benjamin Button, cujo ciclo da vida se fez ao contrário. Por uma rara doença, ele nasceu velho e foi ficando jovem na medida em que o tempo passava. Quem sabe a PEC da Bengala (cujo nome, como disse, abomino por ser preconceituoso) não deva ser chamada de A Curiosa PEC Benjamin Button. Vejam o filme e entenderão. Ela — a PEC — já nasce velha. E por que? Porque parece repleta da velha política. Igualzinho a coisas como “orçamento impositivo”. Ora, obrigar o governo a liberar o dinheiro das emendas parlamentares não me parece ser uma prática nova, certo? Dezesseis milhões por parlamentar? É disso que se trata? Qual é a prognose disso? O porteiro do Supremo Tribunal Federal deveria declarar essa emenda inconstitucional (aprovada no dia 10 último).
Esse é o problema: quando Benjamin fica velho, fica tão jovem que desaparece.
Post scriptum: Li na ConJur que um dos réus da "lava jato" (Carlos Alberto Pereira da Costa) é defendido pela Defensoria Pública da União. Pois é. Deve ter comprovado a sua hipossuficiência, pois não? Ou isso não mais é necessário? Revogaram (também) o dispositivo da Constituição que diz que a Defensoria defende os hipossuficientes? Ou, no caso concreto, o referido acusado na "lava jato" está “testando o sistema”?
*Publicado originalmente na revista eletrônica Consultor Jurídico, em 12 de fevereiro de 2015, na Coluna: Senso Incomum