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A desvinculação e a proibição de retrocesso

 

*Fabiana Lemes Zamalloa do Prado, Promotora de Justiça em Goiânia/GO, Mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Goiás.

A Operação Lavajato representou um divisor de águas no sistema de justiça criminal, com o alcance de uma camada social que, até então, a ele permaneceu imune. Entretanto, em razão dela, o Poder Judiciário e o Ministério Público (MP) entraram na “pauta de discussão” do Legislativo e do Executivo, que, de forma explícita, embora inconfessada, num violento atentado à democracia, buscam, por meio de alterações legislativas, enfraquecer as referidas instituições.

Dentre tantas outras propostas em discussão, encontra-se, em tramitação no Congresso Nacional, a PEC 62/2016 que, com o discurso aparentemente republicano de “garantir a autonomia dos entes federativos” e “reequilibrar as contas públicas”, objetiva alterar o modelo remuneratório de membros do Poder Judiciário e do MP, baseado na vinculação de subsídios, instituída pela PEC 19/1998.

O discurso oficial, entretanto, esconde o real objetivo da proposta: subjugar as referidas instituições e submetê-las ao balcão das negociações políticas, num evidente atentado à democracia e à efetividade dos direitos fundamentais.

O Poder Judiciário e o MP são as instituições a quem, por excelência, foi conferida, pela CF/88, a defesa da democracia, da ordem jurídica e dos direitos fundamentais. E por essa similitude de objetivos e convergência de atuação, deu o Constituinte Originário um tratamento isonômico a referidas instituições. Todas as garantias atribuídas ao Poder Judiciário e ao MP, bem como a seus membros, não são privilégios, mas instrumentos para a defesa da democracia e dos direitos fundamentais.

Por consubstanciarem garantias voltadas à efetivação dos direitos fundamentais e, em consequência, da própria democracia, as garantias dos membros do MP e do Poder Judiciários são cláusulas pétreas e estão salvaguardadas pelo disposto no artigo 60, § 4º, da CF, razão por que qualquer proposta de emenda constitucional tendente a aboli-las, é inconstitucional.        

O modelo remuneratório instituído a partir da EC 19/1998 objetivou concretizar a unidade do Poder Judiciário e do MP, imposta constitucionalmente, e afastar distorções remuneratórias decorrentes do modelo federativo, agravadas pelas injunções políticas recorrentes nos diversos Estados da Federação, incompatíveis com a independência e a autonomia conferida às referidas Instituições pelo Constituinte Originário, como condição necessária à defesa e efetivação dos direitos fundamentais.

Num sistema em que a hegemonia do Poder Executivo compromete a independência dos demais Poderes do Estado e o sistema de freios e contrapesos põe-se a serviço dos interesses pessoais dos detentores do poder, a vinculação de subsídios, no âmbito do Poder Judiciário e do MP representou um necessário aperfeiçoamento do sistema constitucional de garantias do Estado Democrático de Direito, porquanto retirou referidas Instituições do balcão das negociações, especialmente remuneratórias, com significativo fortalecimento do sistema de garantias instituído pela CF.

Nesses quase vinte anos de vinculação de subsídios, sensível foi o fortalecimento do Poder Judiciário e do MP, perceptível especialmente na atuação voltada ao combate à corrupção institucionalizada. Há vinte anos, não se cogitava que altas autoridades da República pudessem ser atingidas, como foram pelo Mensalão, pela Operação Monte Carlo, pela Operação Poltergeist e por tantas outras que ocorreram país afora e, agora, pela Operação Lavajato. E, certamente, assim ainda seria, não fossem os avanços institucionais indispensáveis ao fortalecimento da independência e da autonomia do Poder Judiciário e do MP, alcançados, dentre outras relevantes medidas, com a vinculação de subsídios.

Tal aperfeiçoamento não se constituiu em dádiva do Poder Reformador, mas verdadeiro cumprimento do dever imposto pela CF/88, pelo princípio da proibição de retrocesso social.

O princípio da proibição de retrocesso social tem sede material na CF/88, e é haurido do princípio do Estado Social e Democrático de Direito, da dignidade da pessoa humana, da máxima eficácia e efetividade das normas de direitos fundamentais, da segurança jurídica e da proteção da confiança. Além disso, o princípio decorre da imposição constitucional de ampliação dos direitos fundamentais, da redução das desigualdades sociais e da construção de uma sociedade marcada pela solidariedade e pela justiça social.

O princípio possui conteúdo positivo e negativo. O conteúdo positivo encontra-se no dever de o legislador ampliar, progressivamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas, o grau de concretização dos direitos fundamentais sociais. Cuida-se de verdadeira imposição da obrigação de avanço social. O conteúdo negativo - subjacente a qualquer princípio - refere-se à imposição ao legislador de, ao elaborar os atos normativos, respeitar a não-supressão ou a não-redução, pelo menos de modo desproporcional ou irrazoável, do grau de densidade normativa que os direitos fundamentais sociais já tenham alcançado. E nisso incluem-se as suas garantias. O princípio da proibição de retrocesso social é um princípio constitucional, com caráter retrospectivo, na medida em que tem por escopo a preservação de um estado de coisas já conquistado contra a sua restrição ou supressão arbitrárias.

A desvinculação dos subsídios dos membros do Poder Judiciário e do MP, na atual quadra de desenvolvimento social e institucional, representam, indiscutivelmente, supressão arbitrária de garantias indispensáveis à efetivação dos direitos fundamentais, numa flagrante violação ao princípio da proibição de retrocesso.

A partir do momento em que referidas garantias foram incorporadas ao sistema constitucional de garantias dos direitos fundamentais, não podem ser suprimidas, nem mesmo por emenda constitucional, sob pena de violação ao disposto no artigo 60, § 4º, da CF.

Não foi a vinculação de subsídios a razão do desequilíbrio das contas públicas, mas, dentre outras, as abusivas e antirrepublicanas desonerações fiscais, os excessivos gastos em áreas não prioritárias, como publicidade, e a corrupção institucionalizada.

Num momento de contenção de despesas e reequilíbrio de contas públicas, impostos a todos os entes da Federação, o argumento de impacto nos orçamentos estaduais como justificativa para a desvinculação não encontra amparo constitucional diante do retrocesso que a desvinculação proporcionará para a unidade e a independência do Poder Judiciário e do MP, essencial à efetividade do sistema de garantias fundamentais.

A PEC 62/2016 representa, em conjunto com outras medidas que se orquestram no Congresso Nacional, a consolidação de um projeto de poder autoritário, baseado, principalmente, no enfraquecimento social e das instituições democráticas.



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