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A atribuição do Ministério Público para firmar Acordo de Leniência

*Leandro Bastos Nunes é Procurador da República; especialista em direito penal e processo penal; articulista; autor da obra " evasão de divisas" ( editora juspodivm) e coautor do livro " temas atuais do Ministério Público Federal( editora juspodivm). Professor em cursos de atualização do Ministério Público Federal. Palestrante em crimes financeiros.

Resumo:

A evolução de valores axiológicos na sociedade trouxe a necessidade de adoção de critérios hermenêuticos consentâneos com a necessidade de compatibilizar os anseios sociais com a garantia de princípios e direitos fundamentais previstos no nosso ordenamento jurídico. A teoria dos poderes implícitos garante à própria sociedade a adoção de medidas por parte do órgão constitucional com competência para uma determinada função que adote medidas necessárias à consecução de suas finalidades. Os princípios da segurança jurídica e do interesse público legitimam a atuação do Ministério Público na condição de parte legítima com atribuição para firmar acordo de leniência, haja vista sua missão constitucional relacionada à defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais.  Defende-se que o acordo de leniência deve ser firmado, de forma conjunta, pelo Ministério Público e demais órgãos do Poder executivo, conferindo segurança jurídica e legitimidade na repressão aos atos ilícitos e contrários às leis, em consonância com os princípios da eficiência e da prevalência do interesse público; contudo, ainda que firmado exclusivamente pelo MP, não se pode alegar nulidade, ou ausência de atribuição legal ou constitucional, diante da teoria dos poderes implícitos, e da correta exegese oriunda do texto Constitucional (artigo 129, IX, da Lei Maior), assim como diante das cláusulas gerais de atribuições ligadas à pertinência temática do Parquet previstas nas Leis Orgânicas do Ministério Público e na Lei Complementar 75/93.

Palavras-chave: Ministério Público. Acordo de Leniência. Teoria dos Poderes Implícitos. Princípios da segurança jurídica e interesse público. Atribuição constitucional.

Introdução:

O presente artigo tem por finalidade analisar o fundamento da atribuição do Ministério Público para firmar acordos de leniência, quando estiverem presentes atos lesivos ao patrimônio público e à probidade administrativa. Com fundamento na teoria dos poderes implícitos, sustenta-se a necessidade de assegurar os meios (o que inclui os instrumentos e medidas necessárias) para assegurar a eficácia do lastro probatório contido nas ações civis públicas e de improbidade, que, por missão constitucional, estão a cargo do Parquet.

Defende-se que o acordo de leniência deve ser firmado, de forma conjunta, pelo Ministério Público e demais órgãos do Poder executivo, conferindo segurança jurídica e legitimidade na repressão aos atos ilícitos e contrários às leis, em consonância com os princípios da eficiência e da prevalência do interesse público.

Por fim, ainda que exclusivamente firmado pelo MP, diante da teoria dos poderes implícitos, e da correta exegese oriunda do texto Constitucional (artigo 129, IX, da Lei Maior), o Ministério Público detém atribuição derivada da lógica sistemática que vigora no ordenamento jurídico nacional.

Conceito do acordo de leniência:

O acordo de leniência é uma espécie de delação premiada para empresas, por meio do qual as companhias se comprometem a revelar fatos ilícitos apurados nas investigações internas relacionadas aos atos ilícitos praticados no âmbito da Petrobrás ou outras pessoas jurídicas vítimas ou envolvidas com atos de corrupção no Brasil.

A avença permite que as empresas continuem suas atividades – inclusive participando de contratos com o poder público- a fim de gerar os valores necessários à reparação dos atos ilícitos praticados. O pacto também estabelece mecanismos destinados a assegurar a adequação e a efetividade das práticas de integridade das empresas, prevenindo a ocorrência de novas irregularidades, privilegiando, em grau prioritário, a ética e a transparência na condução de seus negócios.

A Atribuição do Ministério Público Federal (MPF):

 Desde o ano 2014, o MPF (Ministério Público Federal) tem firmado diversos acordos de leniência no bojo da operação lava jato, suscitando-se algumas dúvidas e questionamentos sobre sua respectiva atribuição legal.

Conquanto a Lei 12.846/2013 (Lei anticorrupção) não tenha expressamente conferido poderes ao MP para firmar acordo de leniência, a referida atribuição decorre dos poderes conferidos pela própria Constituição Federal e Leis de regência.

 O art. 129, IX, da Lei Maior, expressamente trouxe a previsão de competência constitucional para que o MP exerça “outras funções”, que tenham pertinência temática com as suas finalidades institucionais.

Com efeito, o MP é o órgão responsável pela fiscalização da correta aplicação da lei e do combate efetivo à corrupção e formas de burla ao sistema legal e normativo.

Nesse sentido, considerando que o acordo de leniência tem por finalidade impor medidas de reparação do ilícito causado por atos violadores da Lei pelas empresas privadas, tendo por escopo promover o ressarcimento ao ente lesado, exsurge a respectiva atribuição do Parquet para firmar os compromissos contidos no pacto de leniência.

A Teoria dos Poderes Implícitos:

 A teoria dos poderes implícitos pode ser explicada, em linhas gerais, pelo famoso adágio “quem pode o mais, pode o menos”. Assim, se o Ministério Público detém ampla atribuição para determinada ação (exemplo: propor a ação penal), possuirá, como decorrência lógica, a atribuição para realizar investigações tendentes a colher provas necessárias ao processo criminal (realização de investigações criminais, de acordo com o procedimento previsto e regulado pela resolução n.º 13/2006 do CNMP- Conselho Nacional do Ministério Público).

No mesmo sentido, a teoria dos poderes implícitos explica que a Constituição Federal, ao outorgar atribuições a determinado órgão, confere-lhe, implicitamente, os poderes necessários para a sua execução. Desse modo, não faria o menor sentido incumbir à polícia a apuração das infrações penais, e ao mesmo tempo vedar-lhe, por exemplo, a condução de suspeitos ou testemunhas à delegacia para esclarecimentos

Basicamente, a indigitada teoria aduz que, em decorrência de a Constituição atribuir uma competência expressa a determinado órgão, estaria conferindo, na forma de poderes implícitos, ao respectivo órgão estatal, os meios necessários à integral realização de tais fins, que lhe foram outorgados, ficando sujeitas às proibições e limites estruturais da Constituição Federal. Exemplificando, como a Constituição Federal atribuiu ao TCU, em seu artigo 71, diversas competências, o Tribunal de Contas da União disporia de poderes implícitos para imprimir efetivo cumprimento às suas funções institucionais expressamente previstas pela CF/88.

Registre-se, porém, conforme ensinamento do professor Pedro Lenza, que os meios implicitamente decorrentes dos poderes expressos devem ser analisados, sob o crivo dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Os precedentes na jurisprudência pátria respaldam as decisões emanadas da teoria em tela, destacando-se o da Ministra Relatora Ellen Gracie, in verbis: “se ao CNJ foi concedida a faculdade de avocar processos disciplinares em curso, fase seguinte à sindicância administrativa e mais completa, nada o impede de obstar o processamento de uma sindicância, que é mero procedimento preparatório”. (STF, 2ª Turma, Rel. Ellen Gracie, MS 29925/DF, 13/10/2010).

No mesmo sentido, decidiu o STF, apreciando sobre a teoria dos poderes implícitos:

(…) é princípio basilar da hermenêutica constitucional o dos “poderes implícitos“, segundo o qual, quando a Constituição Federal concede os fins, dá os meios. Se a atividade fim – promoção da ação penal pública – foi outorgada ao parquet em foro de privatividade, não se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já que o CPP autoriza que “peças de informação” embasem a denúncia. (STF, RE 441004/PR, Rel. Joaquim Barbosa, 17/12/2009).

Com efeito, se o MP é o detentor exclusivo da promoção da ação penal segundo a constituição (atividade fim), implicitamente teria poderes para a respectiva investigação criminal (meios para se chegar na atividade fim). Referido entendimento também foi defendido pelo Ministro Marco Aurélio no RE 593727, e pela Ministra Ellen Gracie no RE 535478.

O tema voltou ao debate com a proposta de emenda constitucional de número 37, a popularmente chamada “Pec da impunidade”, na qual o poder investigatório seria retirado do MP e ficaria a cargo somente da polícia federal e civil, nos termos do artigo 144 da Constituição Federal, a qual, porém, não foi objeto de aprovação pelo Parlamento.

 De outra parte, é princípio basilar da hermenêutica constitucional o dos “poderes implícitos “, segundo o qual, quando a Constituição Federal outorga os fins, confere os meios para atingir o desiderato Nesse sentido, se a atividade fim – promoção da ação penal pública – foi outorgada ao Parquet privativamente, não se cogita em não lhe oportunizar a colheita de provas para tanto, porquanto o CPP autoriza que “peças de informação” embasem a denúncia. (STF, RE 441004/PR, 2ª Turma, Rel. Joaquim Barbosa, 19/12/2009)

O entendimento doutrinário reforça a tese ora defendida. Nesse ponto, conforme lições de Alexandre de Moraes, " a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda"(MORAES, p. 10).

No mesmo diapasão, preleciona Lenza: “...também chamado de princípio da eficiência ou da interpretação efetiva, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais deve ser entendido no sentido de a norma constitucional ter a mais ampla efetividade social" (LENZA, p. 73).

Vale salientar que, se cabe ao MP propor ações penais para combater crimes contra a ordem econômica, e que envolvam atos de corrupção passiva, fraudes em licitações, e ações civis públicas, decorre, pela teoria dos poderes implícitos, sua atribuição para propor investigações em inquéritos civis ou procedimentos criminais, que tenham por objetivo investigar, reprimir, e reparar condutas lesivas ao interesse público, e que decorram de suas atribuições legais previstas na Lei Orgânica do Ministério Público – Lei 8263/93, e na Lei Complementar 75/93.

No plano metódico, porém, deve-se afastar a invocação de ‘poderes implícitos’, de ‘poderes resultantes’ ou de ‘poderes inerentes’ como formas autônomas de competência, sendo admissível uma complementação de competências constitucionais, por intermédio da aplicação de instrumentos doutrinários de interpretação (sobretudo de interpretação sistemática ou teleológica). Por esta via, chegamos a duas hipóteses de competência complementares implícitas, conforme preleciona Canotilho:

(1) competências implícitas complementares, enquadráveis no programa normativo-constitucional de uma competência explícita e justificáveis porque não se trata tanto de alargar competências mas de aprofundar competências (ex.: quem tem competência para tomar uma decisão deve, em princípio, ter competência para a preparação e formação de decisão); (2) competências implícitas complementares, necessárias para preencher lacunas constitucionais patentes através da leitura sistemática e analógica de preceitos constitucionais.” (Canotilho, p. 543).

Nota-se, portanto, que o sistema constitucional não repudia a ideia de competências implícitas complementares, desde que necessárias para colmatar lacunas constitucionais evidentes. Por isso, afigura-se incorreta e contrária à jurisprudência pacífica a afirmação segundo a qual a competência do STF deve ser interpretada de forma restritiva. (STF, Pet 3433 / DF).

Previsão Legal para a Propositura do Pacto de Leniência pelo MP:

No plano da legalidade, destaque-se o teor do artigo 6º, da Lei 75/93, XIV, o qual atribui ao MP a missão de promover outras ações necessárias ao exercício de suas funções institucionais, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, especialmente quanto:

        a) ao Estado de Direito e às instituições democráticas;

        b) à ordem econômica e financeira;

        c) à ordem social;

        d) ao patrimônio cultural brasileiro;

        e) à manifestação de pensamento, de criação, de expressão ou de informação;

        f) à probidade administrativa;

        g) ao meio ambiente;

As “ações” aqui compreendida devem ser interpretadas em seu sentido amplo, a fim de abranger não só as ações judicias, mas as medidas necessárias para instrumentalizar e embasar os processos que serão movidos pelo Parquet, como guardião do interesse público e fiscal da correta aplicação da Lei, com fundamento, inclusive, na teoria dos poderes implícitos.

Demais disso, decorre do texto Constitucional, mais precisamente do art. 129, IX, da Lei Maior, o qual conferiu ao MP a atribuição para “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”, ou seja, atribui expressamente o munus de exercer funções que atendam ao interesse público decorrente de sua missão constitucional.

Não obstante, o pacto de leniência, a fim de conferir segurança jurídica às partes signatárias, evitando futuros questionamentos acerca de sua extensão e validade, deve ser firmado pelo Ministério Público, conjuntamente com os órgãos do Executivo que tenham pertinência temática com os fatos (v.g, CGU, TCU, CADE, entre outros).

Referida providência, além de atender aos imperativos de segurança jurídica, atende aos princípios constitucionais que norteiam a Administração Pública da eficiência, legalidade, e da supremacia do interesse público, conferindo ampla legitimidade e qualidade técnica ao aludido instrumento legal.

Conclusão:

O acordo de leniência deve ser firmado, de forma conjunta, pelo Ministério Público e demais órgãos do Poder executivo, conferindo segurança jurídica e legitimidade na repressão aos atos ilícitos e contrários às leis, em consonância com os princípios da eficiência e da prevalência do interesse público.

Contudo, ainda que firmado exclusivamente pelo MP, não se pode alegar nulidade, ou ausência de atribuição legal ou constitucional, diante da teoria dos poderes implícitos, e da correta exegese oriunda do texto Constitucional (artigo 129, IX, da Lei Maior), assim como diante das cláusulas gerais de atribuições ligadas à pertinência temática do Parquet previstas nas Leis Orgânicas do Ministério Público e na Lei Complementar 75/93.

Referências:

 CANOTILHO J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5 ed., Coimbra: Almedina.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado , 12. ed. 2008. São Paulo: Saraiva.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. 2007. São Paulo: Saraiva.

BRUM, Francisco Valle. Reclamação no TRF: Competência Constitucional Implícita. Revista Jus Navigandi, Teresina,  ano 17n. 311713 de jan. 2012. Disponível eem: <https://jus.com.br/artigos/20847>. Acesso em: 24 jan. 2017.



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