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Democracia à la Carte

Democracia à la Carte

 

Nestes quase trinta anos de nossa Constituição Federal, o processo penal brasileiro se viu envolto em diversos modismos, que foram invocados como fórmulas mágicas para resolver todo tipo de problema que se disse afetar nossa persecução penal.

No começo dos anos 2000, tivemos o garantismo penal, que a doutrina nacional disse significar tudo aquilo que ela quis que significasse, até o momento em que Luigi Ferrajoli veio ao Brasil para dizer que, muito do que se atribuía a ele, jamais havia saído de sua boca ou colocado em seus escritos. Em razão disso, surgiu o constitucionalismo.

Ele aqui aportou com o lema da necessidade de fazermos uma interpretação do direito processual penal brasileiro conforme a Constituição. O problema é que, não raras vezes, o constitucionalismo pregava o que a Constituição Federal jamais havia mencionado. Na maioria das publicações realizadas, inclusive, via-se a repetição dos mesmos pressupostos e das mesmas conclusões apresentadas pelo superado garantismo penal, o que nos ajudou a entender que o constitucionalismo nada mais era que as posições que Luigi Ferrajoli disse nunca haver defendido, mas agora com outro nome.

Chegou um momento em que foi preciso encontrar outro modismo para justificar o injustificável. Outro argumento para que o direito processual penal fosse revisto pela perspectiva de quem não busca a sua melhoria, aperfeiçoamento e adequação com a forma como institutos a ele ligados são interpretados internacionalmente, inclusive, por Cortes internacionais protetivas dos direitos humanos. Foi a vez, então, da democracia entrar na pauta de discussão do direito processual penal.

Que ela senta origem no direito ateniense, ninguém tem dúvidas. No entanto, pouco se diz que, no seu próprio nascedouro, a democracia foi invocada como argumento retórico para que seus supostos defensores atingissem objetivos completamente alheios a ela, para não dizer, vergonhosamente contrários aos seus fins. Ninguém menos que Aristófanes, que é considerado o maior representante da comédia grega, materializou, em duas de suas peças (Los Arcanienses e Pluto [A Riqueza]), essa triste realidade. Não diferente foi o que se viu em Roma, no período em que Marco Túlio Cícero desfilava sua eloquência nos tribunais populares de sua época (Catilinárias).

Mas o que tudo isso tem a ver com os dias de hoje?

Nosso país vive um momento ímpar no combate a uma das grandes chagas que assolam a sociedade brasileira. Nunca a corrupção no meio político foi tão combatida e abatida por aqueles que pautam o seu agir nos ditames da Constituição Federal e dos princípios moralizadores que a inspiraram.

Foi em razão do sucesso dessa empreitada hercúlea que o meio político se mobilizou para uma resposta a quem mostrou as entranhas de dois dos Poderes de Estado. Era preciso não só engessar a atuação de quem havia alcançando sucesso nessa empreitada moralizadora. Também era preciso criminalizar sua atuação.

Essa foi a origem ideológica do projeto de lei que colocou na pauta de discussão do meio jurídico e político: o Projeto de Lei do Senado nº 280, de 2016, que se propõe a definir “os crimes de abuso de autoridade e dá outras providências”.

Na semana passada, um substitutivo foi apresentado pelo Senador Roberto Requião, relator da matéria, e que nos permitiu ver que a invocação retórica da democracia não é uma prática de um passado longínquo. Ao contrário, ela está mais viva que nunca, quando o objetivo é invocar a democracia para destruir um de seus pilares, que é o respeito à Constituição de um país que se diz democrata.

O artigo 3º do substitutivo apresentado pelo citado Senador prevê que “Os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada, admitindo-se a legitimidade concorrente do ofendido para a promoção da ação penal privada”. Com isso, dois seriam os legitimados concorrentes – e não só o Ministério Público – a acusar quem viesse a praticar algum das condutas previstas como crimes de abuso de autoridade, alterando, assim, uma lógica que está presente em nosso direito desde a entrada em vigor da atual Carta Constitucional.

A justificativa para essa mudança radical foi dada pelo próprio Senador Roberto Requião, ao dizer que “O art. 3º dá ao cidadão ofendido e a seus sucessores o direito de propor ação penal privada, afastando a exclusividade do ministério público, o que simboliza um extraordinário avanço no processo democrático”. (http://www.robertorequiao.com.br/ponto-por-ponto-requiao-desmantela-argumentos-contra-projeto-que-pune-abuso-de-poder/)

O problema é que ninguém menos que a própria Constituição Federal não permite que ela seja invocada para se alcançar o que ela mesma não permite!

Desde 1988, a legitimidade para o ajuizamento da ação nos crimes de ação penal pública cabe privativamente a um único sujeito processual, a saber, ao Ministério Público. É o que diz o artigo 129 da Constituição Federal, em inciso I (artigo 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei). E ela vai além, ao prever a única exceção àquele caráter privativo para o exercício da acusação nos crime de ação penal pública, o que somente teria incidência a partir de eventual inércia do acusador público. Referimo-nos, portanto, à ação penal privada subsidiária da pública.

A leitura do texto constitucional não deixa qualquer dúvida quanto ao futuro daquele projeto de lei, ao menos em relação ao seu artigo 3º. Mas, para quem ainda precisa de suporte do Supremo Tribunal Federal para se convencer do grau da gravidade que há no ataque ao texto constitucional e à sociedade brasileira (já que o Ministério Público constitucionalmente foi erigido à condição de seu representante), também ele já se pronunciou, por diversas vezes, sobre o assunto.

Em decisão proferida em sede de plenário, nossa máxima Corte deixou claro que “A CF deferiu ao Ministério Público o monopólio da ação penal pública (art. 129, I). O exercício do jus actionis, em sede processual penal, constitui inderrogável função institucional do Ministério Público, a quem compete promover, com absoluta exclusividade, a ação penal pública. A cláusula de reserva, pertinente à titularidade da ação penal pública, sofre apenas uma exceção, constitucionalmente autorizada (art. 5º, LIX), na hipótese singular de inércia do Parquet”. (STF, RHC 68.314, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 20-09-1990, Plenário, DJ de 15-3-1991) (grifos nossos)

Portanto, é preciso ter muito cuidado com a invocação da democracia para se atingir fins que ela não respalda, pois, se não agirmos nesse sentido, não teremos somente uma democracia sujeita à metamorfose própria da oratória ou, melhor dizendo, uma democracia à la carte. O próximo passo será uma Constituição Federal a la carte.

Mauro Fonseca Andrade
Rodrigo da Silva brandalise
Promotores de Justiça/RS


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