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O acordo de não-persecução penal criado pela nova Resolução do CNMP

No último dia 8 de setembro, entrou em vigor a Resolução 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, que estabelece uma nova disciplina para a “instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público”.No último dia 8 de setembro, entrou em vigor a Resolução 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, que estabelece uma nova disciplina para a “instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público”.

A resolução traz várias novidades. A mais relevante, porém, é a que passa permitir ao Ministério Público celebrar acordo de não-persecução penal, para crimes de menor gravidade.

Referido acordo pretende dar maior racionalidade ao nosso sistema penal. Ele permite que o Ministério Público e Poder Judiciário possam dispensar maior atenção e celeridade aos crimes mais graves. Por outro lado, possibilita uma resposta muito mais rápida aos crimes de pouca gravidade, o que pode ocorrer, inclusive, poucos dias após o crime. Tal proposta segue o exemplo de países como os Estados Unidos e Alemanha, em que a maioria esmagadora dos casos penais são resolvidas por meio de acordo.

Aliás, a resolução é fortemente influenciada pela experiência alemã, cuja possibilidade de acordo surgiu, mesmo sem previsão em lei, em decorrência de práticas informais dos promotores, que constataram a incapacidade do sistema processar todos os casos. Essa prática de celebrar acordos, posteriormente, acabou sendo chancelada pela Suprema Corte alemã, que reconheceu a sua constitucionalidade, ainda que sem previsão em lei.

No caso brasileiro, a principal objeção que se pode fazer à resolução é precisamente essa: a falta de previsão legal específica.

No entanto, afora o exemplo da experiência alemã, é possível trazer, a favor da constitucionalidade da Resolução 181/17 do CNMP, os seguintes argumentos:

a) O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que as resoluções do CNJ (e portanto, também, as do CNMP) ostentam “caráter normativo primário” (STF-ADC 12 MC). Assim, o CNJ e o CNMP, “[n]o exercício de suas atribuições administrativas” ostentam o poder de “‘expedir atos regulamentares’. Esses, por sua vez, são atos de comando abstrato que dirigem aos seus destinatários comandos e obrigações, desde que inseridos na esfera de competência do órgão.” (STF - MS 27621).

b) A Resolução 181/17 busca tão somente aplicar os princípios constitucionais da eficiência (CF, artigo 37, caput); da proporcionalidade (CF, artigo 5º, LIV); da celeridade (CF, artigo 5º, LXXVIII) e do acusatório (CF, artigo 129, I, VI e VI). Nesse sentido, Barja de Quiroga afirma que o “princípio da oportunidade encontra-se fundado em razões de igualdade, pois corrige as desigualdades do processo de seleção; em razões de eficácia, dado que permite excluir causas carentes de importância, que impedem que o sistema penal se ocupe de assuntos mais graves; em razões derivadas da atual concepção de pena, já que o princípio da legalidade entendido em sentido estrito (excludente da oportunidade), somente conjuga uma teoria retributivista de pena” Barja de Quiroga. Tratado de Derecho Penal, Tomo I, p. 470). Sobre este último aspecto, Roxin e Schünemann consignam que: “com a substituição das teorias absolutas [retributivas] da pena, pelas teorias da prevenção geral e especial, que vinculam a aplicação da pena às necessidades sociais e à sua utilidade, o princípio da legalidade acabou perdendo parte de sua fundamentação teórica originária.” E continuam os autores: “As exceções ao princípio da legalidade decorrem do princípio constitucional da proporcionalidade. É dizer, seguem a ideia de que é possível renunciar à punição, quando não se encontre presente, no caso concreto, uma fundamentação preventiva (com mais detalhes, vide: Rieß, 1981, p. 5).” (Roxin; Schünemann. Strafverfahrensrecht, 27a ed., p. 77). Em sentido semelhante, confira-se Volk. Grundkurs StPO, 7a ed., p. 114 e ss. Além disso, Binder chega a sustentar que o princípio da oportunidade decorre, também, dos princípios da ultima ratio, da mínima intervenção, da não naturalização, da economia da violência, da utilidade e do princípio de respaldo (Binder. Fundamentos para a Reforma da Justiça Penal, pp. 159-181).

c) A autorização para a celebração do acordo não consubstancia norma de direito processual, uma vez que não trata “do contraditório, do devido processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também das normas que regulam os atos destinados a realizar a causa finalis da jurisdição” (STF - ADI 2.970), já que disciplina questões prévias ao processo penal e externas ao exercício da jurisdição. Com o mesmo raciocínio, assevera Grinover, que na transação penal (que guarda semelhanças com o acordo) “estamos perante uma fase administrativa em que não há sequer acusado, o processo jurisdicional não se iniciou” (Grinover et alli. Juizados Especiais Criminais, 5ª ed., p. 157), de modo que a regulamentação do acordo pela resolução, não constitui invasão da competência legislativa da União para tratar de matéria processual (CF, artigo 22, I), vez que o acordo está inserido em um no âmbito meramente administrativo, do Procedimento Investigatório Criminal (PIC) do Ministério Público.

d) A nova normativa, como visto, propõe regulamentar e aplicar diretamente dispositivos constitucionais intrinsecamente relacionados à atuação do Ministério Público, inserindo-se, pois, no âmbito da competência do CNMP (CF, artigo 130-A, § 2º e seus incisos I e II).

e) O Supremo já reconheceu a constitucionalidade formal de atos normativos em condições muito semelhantes (por exemplo, STF - ADI 5104 MC), permitindo, inclusive, a regulamentação, por resolução do CNJ, de prazos e condições para a apresentação de presos à audiência de custódia (STF - ADPF 347 MC).

Ademais, cumpre consignar que a resolução adotou o denominado princípio da oportunidade regrada, em que o Ministério Público somente pode celebrar o acordo, quando cumpridas determinadas condições. Assim, não existe liberdade discricionária (modelo americano) do Ministério Público, já que tem o dever de objetividade e moralidade. Além disso, deve observar os requisitos mínimos para o acordo, que são os seguintes: (i) o acordo somente é permitido para crimes menos graves (sem violência ou grave ameaça, com lesão inferior a vinte salários mínimos); (ii) para acusados primários e com bons antecedentes; (iii) desde que eles confessem formal e detalhadamente a pratica do delito e indiquem eventuais provas de seu cometimento; (iii) reparem o dano ou restituam a coisa à vítima; (iv) cumpram prestação de serviços à comunidade ou multa, correspondente a parte do que cumpririam caso fossem condenados; e (v) quando os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias do crime, indiquem que o acordo é uma resposta necessária e suficiente ao delito.

Cumpre consignar, ainda, que o acordo não escapa ao controle judicial. É bem verdade que existem modelos de acordo em que “nem sempre a intervenção do Tribunal será necessária” (Barja de Quiroga. Tratado de Derecho Penal, Tomo I, p. 471) e que impulsos persecutórios por parte do Juiz (como ocorre no art. 28 do CPP), constituem, inclusive, um forte resquício do sistema inquisitório, vez que o titular da ação penal é o Ministério Público e o ideal é que o exercício da ação não seja provocado pelo Judiciário, que tem o dever de quedar-se inerte em relação ao exercício da pretensão penal. Apesar disso, a Resolução 181/17, evidentemente, não mexe no controle judicial posterior, que ocorre por ocasião do arquivamento do feito (mesmo porque não poderia estabelecer deveres ao Poder Judiciário). Neste caso, o Poder Judiciário avaliará se o acordo foi adequadamente realizado e se o arquivamento foi correto. Veja-se que o fundamento que o Ministério Público utilizará para o arquivamento, no caso de cumprimento do acordo, será a falta de interesse na deflagração da persecução penal, já que suficientemente cumprida a pretensão punitiva que obteria com o processo penal.

Por fim, vale lembrar que a celebração do acordo não autoriza o ajuizamento de ação penal subsidiária da pública, uma vez que “o pressuposto dessa ação penal é a inércia do MP” (STF - RE 274115) e o acordo constitui um claro impulso (ação) do Ministério Público e ele encontra-se previsto expressamente em resolução do CNMP que disciplina a atuação da Instituição. Assim, nesses casos, o requisito da omissão não está preenchido, para que se autorize a adoção dessa medida de exceção à titularidade da ação penal pública pelo Ministério Público, que é, inclusive, assegurada constitucionalmente.

Assim, assentadas as balizas fundamentais do acordo de não-persecução penal criado pelo CNMP, resulta inafastável concluir que a nova resolução trará um horizonte promissor para tornar o nosso sistema criminal mais eficiente. Não podemos mais, por exemplo, conviver com um sistema em que o Supremo Tribunal Federal – que deveria se dedicar às grandes questões do país – tem que julgar, com uma terrível frequência, causas ínfimas, como furtos de sabonetes, desodorantes e shampoos. Nenhum país do mundo tem condições de arcar com um custoso processo penal para todos os seus casos penais. No Brasil, partia-se da falsa premissa de que isso era possível, mas infelizmente não é. A melhor doutrina penal já chegou a essa conclusão e a única solução para esse problema é o acordo penal. Como afirma Binder: “o Estado nunca se encarregou de tudo, porque não pôde e seguramente lhe seria difícil cumprir sempre tal promessa. É interessante pontuar que, apesar dos enormes saltos tecnológicos, esta incapacidade do Estado de intervir em todos os casos se acentuou, embora continue proclamando com maior ênfase sua vocação de fazê-lo.” (Binder. Fundamentos para a Reforma da Justiça Penal, p. 156).

Ademais, consigna o mesmo autor, “Quando se pretende observar o Direito Penal através da lente do princípio da legalidade processual obtemos uma visão profundamente falsa, às vezes condescendente com quem forma parte do mundo da justiça penal, mas que impede o desenvolvimento de novos modelos de administração da justiça e, sobretudo, impede o desenvolvimento de novas formas de colaboração, de cooperação, de intervenção do Estado e da sociedade na resolução de conflitos.” (Ibid., p. 157).

De tal maneira, é imprescindível que se dê um voto de confiança à nova resolução, para que o nosso sistema penal possa dar a devida resposta aos graves problemas criminais que tem, sob pena de termos que, no futuro, decretar a sua falência.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico



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