Artigo originalmente publicado pela Revista Justiça e Cidadania, edição 214, 20 de junho de 2018
Por Henrique da Rosa Ziesemer, Promotor de Justiça em Santa Catarina e Rodrigo Silva Brandalise, Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul
Que o direito processual penal brasileiro precisa de atualização, é indiscutível. O Código de Processo Penal de 1941 há tempos já não dá mais o respaldo jurídico às situações criminosas que ocorrem no dia a dia da sociedade. Várias reformas, alterações e inovações legislativas ocorreram desde a vigência do atual CPP. Contudo, ainda há muitas falhas e brechas jurídicas que tornam o sistema ineficiente ante a mais rápida evolução da criminalidade.
O atual contexto sócio político brasileiro é a prova de que o processo penal é o sismógrafo do Estado Democrático de Direito. Pode-se afirmar que nunca antes o direito processual penal teve tanta evidência no cotidiano brasileiro, o que efetivamente demonstra quanto ele interfere no andamento do país.
As ações e reações sociais e jurídicas que ocorrem por conta da atuação das instituições jurídicas, tendo como instrumento o direito processual penal, ganha cada vez mais atenção e relevo, seja da sociedade, seja do Estado.
Neste contexto, encontra-se o processo de reforma do Código de Processo Penal, que atualmente se encontra na Câmara dos Deputados (já com substitutivo do Relator), antes aprovado no Senado Federal. Referido projeto/substitutivo tem virtudes. Entretanto, de forma muito preocupante, também traz em seu bojo perigosos retrocessos, tanto do ponto de vista jurídico quanto da atuação das instituições, em especial o Ministério Público.
Sem adentrar nos artigos específicos, os quais podem ser verificados integralmente no projeto de Lei da Câmara dos Deputados no 8.045/2010 e seu substitutivo, nota-se que a preocupação é a de aumentar o número de nulidades dentro do processo, de maneira que a última discussão que o processo tenha seja sobre o crime e sua autoria.
Uma grande preocupação encontra-se já na fase do inquérito policial: é dada ao Delegado de Polícia isenção e independência, de maneira que busca inviabilizar o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público (art. 19 do substitutivo). Junto a isto, prevê que o Ministério Público somente poderá exercer investigação de forma subsidiária, na hipótese de haver fundado risco de ineficácia da elucidação dos fatos pela polícia, em razão de abuso do poder econômico ou político (art. 18, § 3o).
Além de isto afetar em cheio inúmeras operações que a sociedade brasileira tem acompanhado no dia-a-dia, traz consigo uma armadilha escondida: o Ministério Público terá de provar ao judiciário que tem legitimidade investigativa, o que permitirá ao juiz afastar a investigação ministerial. Além de inúmeras nulidades que poderão ser declaradas por conta disto, fere a ideia de sistema acusatório que o projeto quer (art. 4o do substitutivo), pois permitirá a influência do julgador na investigação.
O projeto e seu substitutivo afrontam ao que decidiu o STF quanto à legitimidade investigativa do Ministério Público. Ressuscita, de forma nem tão velada assim, a famigerada PEC 37 que a sociedade brasileira demonstrou não querer durante os movimentos sociais de 2013. Vai frontalmente contra o que deseja a sociedade e o que se espera de um eficiente combate à criminalidade. Sepulta possibilidades de investigação como em operações de maior repercussão, sem contar o risco de afetar investigações com pessoas com prerrogativa de foro.
Outra consequência disto está no 32, § 1o, do substitutivo. É clara a ideia de dificultar ao máximo a apreciação do mérito da ação penal, em visível despreocupação com a proteção insuficiente da sociedade. Exemplo disto é que, aprovado o substitutivo, a regra será de que as investigações serão presididas por Delegado de Polícia, com o Ministério Público investigando excepcionalmente. Não obstante, o Ministério Público não disporá da possibilidade de investigar pela inércia do Delegado de Polícia. Qual a consequência prevista no substitutivo para a inércia policial? Se o Delegado não concluir a investigação em 2 anos, ela deve ser arquivada! Ou seja, premia a inércia e o descaso, para dizer o menos.
Não bastassem as incoerências do projeto e de seu substitutivo até aqui apontadas, há outras: conforme se lê dos arts. 2o e 3o do substitutivo, corre-se o risco de exigir-se contraditório no inquérito policial, pois as garantias processuais deverão ser observadas em toda a forma de intervenção penal (conceito, aliás, não definido no substitutivo). Criar-se-á uma espécie de processo preliminar, presidido por um agente público que não é juiz, passível de nulidades! É clara a ideia de dificultar ao máximo a apreciação do mérito da ação penal.
Mas o mais curioso vem agora: ainda que o inquérito tenha garantias processuais, o substitutivo determina que o juiz formará seu convencimento livremente com base nas provas submetidas ao contraditório judicial, indicando na fundamentação todos os elementos utilizados e critérios adotados (art. 178). Pelo substitutivo, o juiz não poderá ser valer de interceptações telefônicas, perícias, buscas e apreensões havidas na fase de investigação, pois não permite que o juiz se utilize das provas cautelares e irrepetíveis que forem feitas durante a investigação!
Qual o sentido de se alçar o inquérito policial a um ‘quase processo’ se ele não poderá ser aproveitado além do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público?
Isto evidencia porque há uma triste constatação principiológica no projeto e seu substitutivo: de acordo com o art. 5o, o juiz não poderá adotar medidas que impeçam a proteção insuficiente da sociedade e da vítima, como se estas não tivessem direitos fundamentais a serem protegidos! Este é o fundamento ideológico que norteia a reforma pretendida!
Por isto, também, que o projeto e o substitutivo preocupam-se em criar o juiz defensor (art 4o), pois se o juiz produzir provas de ofício que beneficiem a acusação, estas não serão válidas. Somente serão válidas as provas que o juiz produzir de ofício em prol do acusado. Em um momento histórico jurídico no qual o discurso da imparcialidade é amplamente bradado, o ideal era que o magistrado ficasse equidistante de ambas as partes, mas o texto do novo CPP o transforma em um verdadeiro ativista em favor do acusado.
O propósito das presentes linhas é apresentar algumas das possíveis armadilhas que o texto poderá trazer ao direito processual penal brasileiro. Longe de pretensões corporativistas, o processo penal deve contemplar aquilo que a sociedade deseja, não aquilo que mais beneficie o acusado.
Da leitura do projeto e de seu substitutivo, fica claro que há um excessivo enfraquecimento do Ministério Público e de sua atuação processual penal. Haverá um inchaço de atuação de outras instituições e a criação de um juiz que somente pode proteger o acusado, sem poder proteger a sociedade que o legitima.
A subversão da atuação da figura policial, judicial, aliadas às amarras colocadas no Ministério Público, trarão resultados deletérios à sociedade. Esta afirmação fica mais evidente quando se verifica a ausência legal da vedação à proteção deficiente na matriz principiológica do projeto e de seu substitutivo. O processo penal como garantia constitucional deve assegurar um processo justo, sem excessos, mas também sem insuficiências.
Esses são apenas alguns dos problemas a serem enfrentados contra o projeto e seu substitutivo, pois há outros igualmente graves, como o que se destina ao tribunal do júri, às provas e às medidas cautelares. Pode-se afirmar que, do jeito em que se encontra, o projeto de Código de Processo Penal ofenderá ainda mais os anseios sociais violados pelo crime e servirá, apenas, para proteger políticas ideológicas que se manifestam normalmente em favor de quem infringe regras.