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O modelo do promotor investigador como o mais adequado às modernas democracias constitucionais

Artigo originalmente publicado pela Revista Justiça e Cidadania, edição 215, 16 de julho de 2018

 

Por Alexander Araujo de Souza, Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro

1. Introdução

Após um longo percurso, quando finalmente se consolidou como garantia inata ao processo penal de tipo acusatório a condição de terceiro imparcial do órgão jurisdicional, colocou-se a questão sobre a necessidade de um ­sujeito investido do poder estatal persecutório coordenar a investigação preliminar realizada pelos organismos policiais. Muito antes disso, contudo, já se encontrava afirmada a ideia segundo a qual o exercício da ação penal, em qualquer de suas modalidades, ­necessita de uma averiguação prévia, que possa recolher indícios ou elementos probatórios a respeito do delito cometido. Cuida-se de uma condição para que a ação penal não seja exercida de maneira abusiva ou temerária. De fato, o exercício da ação penal pública de maneira infundada, desvestida de um sustentáculo probatório razoável sobre a existência e a autoria do delito, configura uma ofensa à liberdade individual dos cidadãos e uma verdadeira “pena” imposta pelo Estado por intermédio do processo, independentemente de seu resultado final.

A progressiva consolidação do sistema acusatório, que trouxe consigo a predominância do Ministério Público no que toca ao exercício da ação penal, gerou também a reflexão sobre a necessidade de se continuar a ter, ou não, um órgão estatal que controlasse e dirigisse a atividade concreta da polícia quanto à prática dos atos investigatórios, o que era realizado pelo Juiz no sistema inquisitório. As possíveis soluções a esta ponderação levaram os legisladores a estabelecer os distintos sistemas de investigação preliminar. Assim, com relação à existência, ou não, de controle sobre a atividade policial, e ao órgão encarregado deste controle, existem três modelos de investigação preliminar, cada um deles com um distinto órgão do Estado exercendo papel de predominância: a) o primeiro, que sob o ponto de vista orgânico pode ser chamado de modelo do Juiz instrutor, constitui uma reminiscência do sistema inquisitório, segundo o qual a investigação era realizada pelo Juiz, o qual tinha à sua disposição a polícia judiciária; b) um segundo modelo, que pode ser chamado policial, no qual a Polícia é o órgão responsável por conduzir e realizar a investigação, com certo grau de independência, sem um efetivo controle funcional por parte de outros órgãos estatais, seja do Juiz ou do ­Ministério Público; c) um último que pode ser chamado modelo do Promotor investigador, no qual o Ministério Público é quem coordena e dirige a atividade investigatória, sendo a polícia quem realiza concretamente os atos de investigação, estando, porém, esta subordinada funcionalmente àquele.

Estes, portanto, os modelos de investigação preliminar que em seguida serão analisados com a finalidade de se chegar à justificação a respeito da essencialidade, ou não, da função do Ministério Público de coordenar as investigações. Levar-se-ão em conta as necessidades de se conferir efetividade à própria investigação preliminar, bem como de garantir o respeito aos direitos fundamentais das pessoas submetidas à investigação criminal.

2. O modelo investigatório centrado na figura do Juiz instrutor

Este modelo de investigação preliminar conserva obviamente resquícios do monologante processo de tipo inquisitório, mas sua implantação efetiva remonta à tradição inquisitorial franco-espanhola, primeiramente com o Code d’instruction criminelle de 1808. Posteriormente, este modelo foi adotado na Espanha por intermédio da Ley de enjuiciamento criminal de 1882, como solução de compromisso inerente à artificial construção do processo de tipo misto. Toda a investigação preliminar remanesce em mãos do Juiz instrutor, que é o responsável por instaurar e instruir a investigação. Para cumprir os atos investigatórios dispõe ele da atividade da polícia, chamada, por este motivo de judiciária.

Com a abolição do processo de tipo inquisitório e a consequente afirmação da imparcialidade do Juiz, não se podia mais permitir a este coordenar a colheita dos elementos probatórios relativos ao delito objeto de investigação. Considerando que o fato investigado constituirá, na fase processual, objeto de análise e ­verificação por parte do Juiz, o ativismo judicial deste, na fase pré-processual, representaria o seu distanciamento da desejável e necessária imparcialidade. Em um processo de tipo acusatório público, depurado de resquícios inquisitoriais, seu papel deveria consistir, na fase preliminar, na atuação como Juiz de garantias, no sentido de avaliar as medidas judiciais que possam restringir a liberdade dos investigados e de controlar a legalidade, na fase de transformação do investigado em acusado.

Em grande parte da América latina, em razão do colonialismo espanhol, muitos países adotaram inicialmente o modelo investigatório do Juiz instrutor. A derrocada parcial deste modelo somente adveio no início do século XX, com uma explosão de reformas processuais penais, as quais buscaram sempre a eliminação dos resquícios inquisitoriais advindos da metrópole. Apesar disso, este modelo ainda sobrevive em alguns países latino-americanos, como na Argentina, a nível federal (mas não em todas as “províncias”), onde o Código Procesal Penal de la Nación de 1991 dispõe ser um dever do Juiz proceder à investigação dos delitos (art. 194), apesar de este mesmo Juiz poder autorizar que a direção da investigação fique a cargo do Ministério Público (arts. 196 e 196-bis).

Apesar de alguns ordenamentos ainda conservarem, em diferentes graus, o modelo investigatório do Juiz instrutor, uma desejada depuração do sistema acusatório deveria implicar a supressão dessa figura. A ­simultaneidade das funções de “Juiz” e de “instrutor” distancia-o da sua necessária qualidade de terceiro, aproximando-o da condição de interessado na formação da prova que embasará a acusação. De fato, não somente o papel ativo do Juiz na colheita de elementos probatórios acerca do fato criminoso na fase pr­é-processual, mas também sua iniciativa em matéria probatória, após formada a relação ­processual, bem como a possibilidade de decretação ex officio de ­medidas cautelares, deveriam ser ­suprimidas, por ­serem incompatíveis com a opção acusatória feita pela grande maioria das democracias constitucionais.

3. O modelo investigatório policial

No modelo investigatório chamado policial as investigações são conduzidas pelas autoridades policiais, as quais não estão submetidas a um efetivo controle, sob o plano funcional, por parte de outro órgão estatal. Este modelo se desenvolveu principalmente nos ordenamentos de common law, como, por exemplo, nos Estados Unidos da América, na Inglaterra e na Escócia, e aparece em alguns poucos ordenamentos da família romano-germânica.

O modelo investigatório policial não somente é incompatível com o modelo teórico do processo de tipo acusatório, mas sua adoção representa verdadeiro desprestígio aos postulados da acusatoriedade pública. A ausência de controle funcional por parte do órgão encarregado da acusação, bem como a não submissão da atividade instrumental (e não finalística) da polícia a este, representam inquestionável inadequação ao ­paradigma garantista, no qual os poderes devem ser submetidos a limites e a vínculos objetivos. Sendo óbvio que a prática concreta de atos investigatórios por parte da polícia possui potencialidade lesiva aos direitos fundamentais das pessoas submetidas à investigação, não se pode abdicar de um controle exercido por uma instituição de garantia imparcial e destinada à defesa destes direitos, como o Ministério Público. Além disso, a atividade concreta da polícia é instrumental, não constitui um fim em si mesmo, tem como objetivo unicamente servir ao titular da ação penal. Não há, portanto, sentido na ausência de controle funcional por parte do Ministério Público.

Não se pode simplificar a questão sobre a necessidade da existência de controle sobre a atividade ­investigatória da polícia, reduzindo-se tal questão a uma mera divisão de funções: a polícia investigaria de maneira autônoma, o Ministério Público exerceria a ação penal de maneira independente, e o Juiz julga os fatos igualmente com independência. Não. Referidas funções são materialmente distintas e possuem diferentes fontes de legitimação, as quais garantem, ou excluem (como no caso da polícia), sua autonomia. E todas devem ser submetidas a recíprocos controles.

Como já afirmado, os atos de investigação levados a efeito pela polícia possuem caráter instrumental, cuja finalidade outra não é que servir ao titular da ação penal, a fim de que este possa exercê-la de maneira ­escorreita e sem abusos. Por este motivo, não se pode conceber a ausência de controle funcional por parte de quem é o destinatário do objeto final da investigação. Do contrário, estar-se-ia conferindo à polícia um poder sem controle, o que comporta grande probabilidade de se converter em abuso, na ausência de limites e de vínculos objetivos ao exercício do poder investigatório.

Outro risco de se concentrar a coordenação da atividade investigatória preliminar nas mãos da polícia consiste no fato de ser esta um órgão dependente do poder político. Não será improvável que o detentor do poder político se veja, pelos mais variados motivos, tentado a impor-se ou a imiscuir-se indevidamente no que toca à condução das investigações, com possíveis favorecimentos a outros detentores do poder político ou econômico. Isto permitiria, por vias transversas, uma indesejável sujeição do Ministério Público à política. Seria um verdadeiro paradoxo transforma-se uma instituição de garantia independente como o ­Ministério Público em um órgão funcionalmente ­subalterno à polícia ou indiretamente subordinado à política, sobretudo em investigações relativas à cri­mi­­­nalidade organizada ou à criminalidade política e econômica. Equivaleria à total inversão de valores ­colocar o titular do exercício da ação penal sob a dependência das atividades desenvolvidas pela polícia, sujeitando-o diretamente às orientações desta e, indiretamente, aos possíveis ­influxos do poder político.

4. O modelo do Promotor investigador

Assentadas as características e vistos os respectivos problemas inerentes aos anteriores modelos de investigação preliminar, cumpre passar à análise do chamado modelo do Promotor investigador. Sua concepção embrionária remonta à longínqua Idade Média, na França, com a Ordenança real de 1371, a qual estabelecia as funções do Parquet no bojo do processo de tipo inquisitório e lhe permitia, de maneira incipiente, embora com muitas limitações, a coordenação da atividade investigatória. A primeira sistematização moderna, contudo, também com algumas contenções, advém somente com o Code d’instruction criminelle francês de 1808. Este monumento legislativo, apesar de ter implantado o artificial sistema de tipo misto, no qual prevalecia a atividade do Juiz instrutor, consentiu ao Parquet controlar, de maneira limitada, a atividade da polícia, bem como desenvolver uma espécie de investigação direta a respeito dos indícios criminosos nos casos de prisão em flagrante. Mas foi somente com a implantação do processo de tipo acusatório, já no século XX, que se afirmou de maneira decisiva a função do Ministério Público de coordenar as investigações preliminares. A propósito, como já se afirmou, somente há sentido em se conceber tal função como essencial ao Ministério Público no âmbito do sistema acusatório, no qual se deve afastar o Juiz da atividade investigatória pré-processual.

Com efeito, a afirmação do sistema acusatório trouxe consigo mudanças significativas nos ordenamentos jurídicos, os quais passaram a confiar expressamente ao Ministério Público o controle e a coordenação das investigações pré-processuais, submetendo a polícia, sob o aspecto funcional, àquele. Muitas vezes isto se deu por intermédio de normas constitucionais; em outras hipóteses coube ao legislador ordinário proceder a tal inovação. Em verdade, alguns ordenamentos inseriram tal função como essencial ao Ministério Público em suas cartas constitucionais com vistas a escapar à volubilidade do legislador ordinário.

Desta maneira, algumas recentes Constituições, adotando o sistema acusatório público, conferiram ­expressamente ao Ministério Público a função de dirigir e coordenar as investigações pré-processuais. Na América Latina, onde quase todos os ordenamentos eliminaram a figura do Juiz instrutor herdado da tradição franco-espanhola, muitos países declararam solenemente em suas cartas constitucionais que o Ministério possui como função institucional a coordenação das investigações criminais preliminares. Assim, tem-se como exemplos a Constituição do Chile de 1980, com a reforma de 2005 (art. 83), a Constituição do Peru de 1993 (art. 159, 4), a Constituição da Venezuela, com a reforma de 2007 (art. 285, 3) e a Constituição do Equador de 2008 (art. 195). Esta tendência constitucional chegou até mesmo ao continente africano e algumas Constituições deste continente igualmente estabeleceram que é o ­Ministério Público quem deve coordenar as investigações. Assim o fizeram, por exemplo, a Constituição da África do Sul de 1996 (art. 179, 2), bem como a Constituição de Angola de 2010 (art. 186, f).

Em muitos ordenamentos, porém, sobretudo na Europa, a introdução das mesmas disposições se deu por intermédio do legislador infraconstitucional. Com exceção da Constituição da Romênia de 2003 (art. 131, 3), incumbiu à legislação ordinária estabelecer como função essencial do Ministério Público a coordenação das investigações preliminares. Assim o fez primeiramente a Alemanha, com a reforma da Strafprozebordnung em 1974, estabelecendo ser função da Promotoria (Staatsanwaltschaft) dirigir a investigação sobre os fatos criminosos, com o objetivo de promover a ação penal. O mesmo fez Portugal, com o Código de Processo Penal de 1987, que determinou ser função do Ministério Público dirigir o inquérito (art. 263o). Na Itália, o Código de Processo Penal de 1988 dispôs expressamente que é o Ministério Público quem dirige as investigações (art. 327, 1). Verificou-se o mesmo na Polônia, com o Código de Processo Penal de 1997 (arts. 309 a 311), colocando-se as investigações sob o controle do Ministério Público. Também na República Checa, com a reforma de 2001 (Lei no 265 de 2001) ao Código de Processo Penal de 1961, o Ministério Público se transformou no condutor das investigações, controlando diretamente a atividade da polícia. Na Holanda, as investigações são conduzidas pelo Promotor de Justiça (Officier van justitie), o primeiro na lista dos órgãos que podem iniciar as investigações, segundo o que dispõe o art. 148 do Código de Processo Penal holandês. Na Áustria, embora o art. 90-A da Constituição já houvesse estabelecido que ao Ministério Público competia desenvolver suas funções também na fase investigatória, somente com a reforma de 2007 ao Código de Processo Penal de 1873 (§ 101), o ordenamento austríaco se aproximou do modelo alemão, tendo o Ministério Público assumido a direção das investigações. Finalmente, pode-se citar a Suíça que, com o Código de Processo Penal Federal de 2007, conferiu ao Ministério Público a direção das investigações preliminares, subordinando a polícia às suas instruções (arts. 15 e 16).

Esta panorâmica sobre como os ordenamentos consagraram o modelo do Promotor investigador, nos níveis legislativo e constitucional, evidencia o nexo causal entre a consolidação do sistema acusatório e o controle das investigações preliminares por parte do Ministério Público. Mas também denota a busca, por parte dos legisladores, por um melhor funcionamento das investigações, com vistas ao correto funcionamento do paradigma garantista do Estado constitucional de direito.

Obviamente, não é simples o fato de um grande número de ordenamentos jurídicos consagrar o modelo do Promotor investigador que fará com que a função de coordenar as investigações deva ser considerada como essencial ao Ministério Público. Na verdade, é o critério meta-ético relativo à função de tutela dos interesses sociais por parte do Ministério Público que justifica a adoção deste modelo. Este critério justificador implica a preocupação com os direitos fundamentais dos investigados, com vistas à minimização do risco de que tais direitos venham a ser violados, bem como a necessidade de se conferir efetividade à investigação, conferindo sua coordenação a uma instituição de garantia independente e imparcial.

Há, portanto, razões filosófico-políticas que justificam conferir ao Ministério Público, dentro do sistema acusatório, o controle sobre a atividade preliminar de investigação realizada concretamente pela polícia, a qual deve ser colocada, sob o plano funcional, sob a dependência daquele. Com efeito, ao Parquet, instituição de garantia independente e imparcial, incumbirá o exercício da ação penal. Deve, portanto, controlar e dirigir, desde o nascedouro, os elementos probatórios que lhe servirão para levar à apreciação do Poder Judiciário a imputação que formulará em face do investigado. Ter-se-á, desta maneira, investigação revestida de efetividade, com necessário acatamento aos princípios da legalidade e da isonomia, além de imparcialidade na colheita dos elementos informativos que subsidiarão o exercício da ação penal ou, na hipótese contrária, o ­requerimento de arquivamento da investigação.

Como se pode constatar, o modelo do Promotor investigador não é apenas uma moderna tendência processual. Cuida-se de um modelo de investigação cujo escopo consiste precisamente em preservar e minimizar as possíveis transgressões aos direitos fundamentais dos investigados, bem como conferir efetividade à própria investigação, dois valores essenciais em um Estado Democrático de Direito.

 



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