Artigo originalmente publicado na revista Justiça e Cidadania edição 281. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/possibilidade-de-candidaturas-avulsas-no-sistema-eleitoral-brasileiro/
Atualmente, no direito eleitoral brasileiro tem se intensificado o debate acerca da possibilidade de candidaturas avulsas, isto é, candidaturas para cargos eletivos sem a prévia filiação partidária. O tema é de interesse nacional, repercute diretamente no regime democrático e ordem jurídica, estando a questão submetida ao E. STF, nos autos do ARE no 1054490/RJ. O presente artigo analisa a possibilidade jurídica deste tipo de candidatura no Brasil.
As candidaturas avulsas encontram previsão no Pacto de São José, que foi promulgado pelo Dec. nº 678/92 e prevê:
Artigo 23
1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:
a) de participar da direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos;
b) de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e
c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.
2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades e a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal.
Como se vê do art. 23, inc. I, b, e inc. II, do Pacto de São José a filiação partidária não consta dos motivos pelos quais se pode restringir a participação de candidatos em eleições. Interpretando o referido dispositivo, a Corte Inter Americana de Direitos Humanos (Corte IDH), no caso Yatama vs. Nicarágua, de 2005, decidiu que restrições a capacidade eleitoral passiva devem atender a critérios de legalidade, finalidade e necessidade em uma sociedade democrática. Nesse sentido, cumpre transcrever o seguinte trecho do julgado:
A restrição deve ser estabelecida por lei, ser não discriminatória, fundada em critério razoável, possuir finalidade útil, sendo essencial para atender interesse público e ser proporcional ao fim a que se destina. (parágrafo 206 – tradução livre)
Especificamente em relação à necessidade de filiação a partido político, como condição para o exercício da capacidade eleitoral passiva, a Corte IDH, ao analisar o caso mencionado acima, entendeu que tal restrição não é compatível com o Pacto de São José, nos seguintes termos:
Não há qualquer dispositivo na Convenção Inter-Americana que permita o estabelecimento de exigência de que cidadãos somente possam concorrer a cargo eletivo através de partido político. A importância dos partidos políticos como entidades associativas essenciais para o desenvolvimento e fortalecimento da democracia não é menosprezada, mas é reconhecido que existem outras formas através das quais candidatos podem se candidatar a cargos públicos, de maneira a atingir o mesmo objetivo (…) (parágrafo 215 – tradução livre)
O Pacto de São José é tratado internacional de direitos humanos, internalizado antes do advento da EC nº 45/2004, pelo Decreto nº 678/92. Embora não se desconheça a tese de que referido tratado tenha sido recepcionado com status de norma constitucional, dada a matéria especificadamente tratada nestes pontos, forçoso concluir tratar-se de norma infraconstitucional, como lei ordinária.
Em razão disso, vislumbra-se como possível as candidaturas avulsas visto que a norma constitucional do art. 14, § 3o, V, é de eficácia contida que reclama complementação por meio de lei. Ora, neste caso, tanto quanto o Código Eleitoral (art. 87), o Pacto de São José é norma infraconstitucional capaz de compor e regulamentar o dispositivo constitucional citado. O quadro jurídico é, então, de coexistência de dois sistemas de elegibilidade: um regulamentado pelo Código Eleitoral, que exige a filiação partidária e outro, decorrente do Pacto de São José, que admite candidaturas avulsas/sem partido.
Anote-se que a norma contida no Pacto favorece a participação política porque, além de ampliar o número de cidadãos aptos a disputar eleições para cargos públicos no Brasil, amplia a qualidade representativa do sistema eleitoral vigente e harmoniza-se com outras normas constitucionais fundamentais.
Ainda que a ordem constitucional vigente já indique que, para realização de projetos de vida e desenvolvimento de suas capacidades individuais, sobretudo quando canalizadas em prol do bem comum, ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado (art. 5o, XX, da CF). Trata-se de garantia constitucional salutar à liberdade de expressão, ao sistema democrático e ao próprio princípio da igualdade visto que o condicionamento de direitos ao dever de associar-se, notadamente às entidades de direito privado, implica em restrições injustificadas a direitos fundamentais.
Nessa linha, a filiação ao partido político será ato voluntário de adesão a uma proposta de trabalho virtuoso, fruto de uma opção consciente, e não decorrente de uma imposição legal. A candidatura avulsa assim, ao contrário do que se supõe, a médio prazo, fortalecerá os partidos políticos que, devido à concorrência com outro sistema, deverão amealhar filiados pelos valores virtuosos que inspiram.
Para além dessa hermenêutica sistemática, a admissão de candidaturas avulsas é mecanismo de compatibilização entre o postulado democrático, cidadania e as tecnologias vestíveis da contemporaneidade. A velocidade e facilidade com que a internet conecta a população atualmente já produziu efeitos sobre o exercício da cidadania e participação popular nos regimes democráticos, originando o que vem sendo denominado como crowdsourced constitution1. Trata-se de uma democracia que se vale de ferramentas e tecnologias que asseguram a manifestação direta dos cidadãos nas decisões políticas do Estado2. Esses novos mecanismos de participação são capazes de dar voz e refletir diversidades que encontram nas convenções partidárias obstáculos às suas proliferações.
Noutra perspectiva, a possibilidade de candidaturas sem partidos tem potencial de dar uma resposta adequada à crescente onda mundial de crise de representatividade, caracterizada pela descrença da população em geral no atual sistema eleitoral político-partidário.
Esse quadro, aliado as informações prestadas pela liberdade de imprensa, o fortalecimento de instituições como o Ministério Público e Poder Judiciário, além do amadurecimento da própria democracia, provocaram uma verdadeira revolução na percepção do povo brasileiro acerca do sistema político-partidário.
É o que revela recente pesquisa publicada neste no dia 13 de agosto de 2017 pelo jornal O Estado de S. Paulo que mostra que 94% dos eleitores não se sentem representados pelos políticos que estão no poder. O levantamento, do instituto Ipsos, confirma a rejeição generalizada dos brasileiros à classe política, independentemente de partidos, e ao atual sistema político-eleitoral.
Além disso, 86% disseram que não se sentem representados por aqueles políticos nos quais já votaram. A crise de representatividade também atinge fortemente as legendas partidárias: 81% avaliam que “o problema do país não é o partido A ou B, mas o sistema político”3.
Esse sentimento popular deve ser capaz de compor uma alternativa a este estado de coisas visto que reformas legislativas nestas questões são, na maioria das vezes, supérfluas e não tocam no âmago do problema.
Aliás, foi neste contexto que o fenômeno das candidaturas avulsas ganhou fôlego em muitos países sendo que os mesmos motivos que levaram à sua adoção em outras nações podem ser invocados aqui4. Em estudo publicado na agência de notícias do Senado realizado pela ACE Project, estima-se que apenas 9,68% dos 217 países democráticos do mundo barram candidaturas independentes5.
Para citarmos alguns casos, noticia-se que países como Islândia, Eslováquia e Moçambique adotam as candidaturas independentes. O rol de eleitos com este sistema tem importantes centros internacionais como o atual presidente da França, Émmanuel Macron, atual presidente da Áustria, Alexandre Van der Bellen, atual presidente da Finlândia, Sauli Niinistö, atual prefeita de Tóquio, Yuriko Koike e de Bogotá, capital da Colômbia, Enrique Peñalosa6.
Por onde se analise a questão, não se vislumbra prejuízos a nação brasileira na possibilidade de candidaturas avulsas7. Se é verdade que o sistema partidário atual tem assento constitucional8, as alterações normativas provocadas pelo Pacto de São José, devidamente referendado e internalizado pelo Brasil9, indicam que este é um novo horizonte para a compatibilização da atual sociedade, conectada, complexa e pluralista, e um regime democrático apto a promover com uma vida moderna virtuosa.
Inegável, portanto, que a possibilidade de candidaturas avulsas implica em importante aperfeiçoamento da democracia brasileira, constituindo-se em relevante avanço para a cidadania. Trata-se de instituto que inegavelmente alarga a liberdade política do cidadão, amplia a participação popular no governo, reafirma direitos humanos fundamentais e promove a esperada evolução das instituições democráticas do Brasil.
Notas_________________________
1 Crowdsourcing é “a atividade ou a prática de envolver muitas pessoas para desenvolver idéias, produzir conteúdo ou realizar tarefas enormes ou tediosas, como solicitando ajuda através da internet. A palavra se originou como um composto conveniente para denotar ‘terceirização para a multidão’”. Tradução livre (Bryan A. Garner, Black´s law dictionary, 10. ed., p. 459).
2 “A internet, por um lado, contribui para a pluralização da esfera pública, ao multiplicar as fontes de informação e de difusão de ideias e baratear o custo de acesso ao espaço público daqueles que desejam se exprimir” (Daniel Sarmento. Comentários à Constituição Federal. J. J. Gomes Canotilho et al. – São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. Art. 220).
3 Pesquisa disponível em http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/para-94-dos-eleitores-atuais-politicos-nao-os-representam-aponta-pesquisa/. Acessado em 17 fev. 2018.
4 Esse tipo de influência recíproca de determinados institutos jurídicos de ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais, apto a ensejar uma “fertilização cruzada”, é útil em tempos de mundialização de problemas internacionais. Interpretações jurídicas desenvolvidas em outros tribunais, estrangeiros ou internacionais, possibilitam que uma ideia de ordem no direito internacional contemporâneo, marcado pela complexidade com a profusão de redes de atores e de normas, de organizações e de tribunais, ingresse internamente após uma interpretação judicial comum ou dialogada, respeitando-se as diferenças culturais ou de linguagem, dentro da margem nacional de apreciação de cada Estado (VARELLA, Marcelo Dias. Internacionalização do direito: direito internacional, globalização e complexidade. 2012. 606 f. Tese de Doutorado. Dissertação. Faculdade de Direito, USP, São Paulo, 2012. f. 437-439. p. 216-217).
5 In https://www.conjur.com.br/2017-jun-28/stf-analisara-acao-liberacao-candidatos-partido. Acessado em 25 jan. 2018.
6 In https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2017/10/em-julgamento-pelo-stf-possibilidade-de-candidatura-sem-partido-gera-controversia-cj8da78im002601objvl7ad4h.html. Acessado em 25 jan. 2018
7 Cabe neste ponto expor que a recepção do Pacto de São José no ordenamento jurídico não expõe a riscos o sistema de inelegibilidade previstos na Lei Ficha Lima. A uma porque o Pacto foi internalizado em 1992, sendo que a Lei Ficha Limpa é de 2010, o que permite concluir que esta lei é posterior e especial, de forma que excepciona a regra exposta pela legislação anterior. A duas porque a matéria tratada na Lei Ficha limpa reclama Lei Complementar, ao passo que o Pacto tem status de lei ordinária, cujo rol de matérias objeto da lei não se confunde com o rol de Leis Complementares. A três porque a Lei Ficha Limpa goza de proteção decorrente da eficácia vinculante decorrente do julgamento da ADC nº 29/ADC nº 30/ADI nº 4578.
8 O sistema partidário atual, como aponta Luís Roberto Barroso, possui muitas críticas porque se caracteriza “pela multiplicação de partidos de baixa consistência ideológica e nenhuma identificação popular. Surgem, assim, as chamadas legendas de aluguel, que recebem dinheiro do Fundo Partidário – isto é, recursos predominantemente públicos – e têm acesso a tempo gratuito de televisão. O dinheiro do Fundo é frequentemente apropriado privadamente e o tempo de televisão é negociado com outros partidos maiores, em coligações oportunistas e não em função de ideias. A política, nesse modelo, afasta-se do interesse público e vira um negócio privado. […].” (STF – ADI nº 5.081/DF – Pleno – trecho do voto do Rel. Min. Luís Roberto Barroso – j. 27-5-2015).
9 A aprovação e a internalização do Pacto indicam, como bem apontou a Procuradoria Geral da República no parecer exarado no ARE nº 1.054.490-RJ, uma concordância política com a tese das candidaturas avulsas: “Daí que os partidos representados no Congresso Nacional abriram mão, validamente, da função de organizações intermédias exclusivas entre governantes e governados, ao terem aprovado o Pacto de São José”.