Escrito por Rodrigo da Silva Brandalise, Promotor de Justiça (RS) e Professor de Processo Penal (FMP/RS)
Os primeiros dias de fevereiro de 2019 foram agitados, no cenário jurídico, com a divulgação do chamado “Projeto de Lei Anticrime”, organizado pelo Ministério da Justiça, que objetiva estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa (art. 1º).
Vários são os pontos que causarão debates até sua perfectibilização como texto de lei, mas pensamos que o principal deles, por sua novidade, diz com o chamado acordo penal. Caso o texto seja aprovado como proposto, passará ele a estar previsto em um inédito art. 395-A do Código de Processo Penal (CPP).
De acordo com a proposta, após o recebimento da denúncia ou da queixa e até o início da instrução, o Ministério Público ou o querelante e o acusado, assistido por seu defensor, poderão requerer mediante acordo penal, a aplicação imediata das penas (caput). Mas a principal inovação prevista vem no § 8º do art. 395-A: para todos os efeitos, o acordo homologado é considerado sentença condenatória.
Eis a novidade, portanto: se aprovado, passaremos a ter o consenso no processo penal como forma de definição da culpa do acusado e as decorrências que lhe forem consequentes, algumas delas com possibilidade de negociação conjuntamente (1).
Antes da apresentação do Projeto, o Ministro da Justiça Sérgio Moro dissera que desejava incluir o acordo penal, comparando-o com o plea bargaining do processo penal americano, de maneira a acelerar o andamento processual brasileiro (2). A pergunta que resta é: teremos, de fato, o plea bargaining no Brasil?
Vamos à resposta.
Em obra própria, de onde extraímos parte dos fundamentos para o presente texto (3), discorremos que o sistema de consenso processual penal americano trabalha com duas grandes percepções: o guilty plea, quando a confissão leva ao reconhecimento de culpa pelo acusado e a consequente pena que lhe decorre; e o nolo contendere, que é a declaração de que não será contestada a acusação, sem que haja, com isto, o reconhecimento de culpa do acusado, em que pese a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade também (4).
Isto tudo é admitido em um contexto de disponibilidade da ação penal, não apenas quanto a ser ela proposta ou não, mas também de qual seu conteúdo e resultado final, marca do processo penal americano, o que não vige no direito processual penal brasileiro.
Mesmo lá, tanto o guilty plea como o nolo contendere são tidos como atos voluntários (cuidado que também o Projeto estabeleceu ao acordo penal (5)). Sempre há a alternativa do chamado full trial, (julgamento completo, em tradução livre). Sucintamente: são procedimentos especiais de resolução do conflito penal.
Por certo, o plea bargaining está vinculado ao guilty plea. No chamado plea bargaining model, há uma divisão na compreensão entre as perdas e ganhos possíveis para as partes (6), de maneira que se ganha a certeza da condenação frente a uma pena mais leniente ao acusado (o que se aproxima do § 2º previsto para o art. 395-A).
Mas há uma nota diferenciadora entre o plea bargaining e o acordo penal: o modelo americano admite um vasto número de possibilidades de composição, inclusive em momento anterior ao oferecimento da acusação (o chamado charge bargaining, p. ex.). O que quer dizer que a acusação e a defesa podem, antes mesmo, pactuarem qual será a acusação proposta (não que não possa haver sua negociação após o oferecimento dela).
Isto não se repetirá aqui. Na proposta do Ministério da Justiça, para que haja o acordo penal, a acusação já terá sido oferecida (7). Pode parecer singela a inscrição, mas faz uma diferença essencial entre os institutos: para que seja possível o acordo, o responsável pela acusação deverá demonstrar o cumprimento das exigências do vigente art. 395 do CPP, especialmente a justa causa para o exercício da ação penal (inc. III). Esta justa causa terá de vir demonstrada das peças de informação, procedimento de investigação criminal ou inquérito policial que instruírem a denúncia ou a queixa.
Pensamos, assim, que este seja o principal fundamento para evitar-se a crítica do overcharging (excesso acusatório), comum ao direito americano, à proposta de acordo penal. Há freios legais e expressos neste sentido em nosso processo penal.
O primeiro decorre da exigência do vigente art. 395 (8) combinado com o também vigente art. 396 : o juiz deverá verificar, antes do recebimento da denúncia, se estão presentes os fundamentos que justificam o conteúdo acusatório.
O segundo controle da acusação também está descrito no vigente art. 396 do CPP: a defesa terá a possibilidade de se manifestar em sua resposta à acusação, em efetivo exercício do contraditório, sobre tudo o que foi apurado até então. Não por acaso, diz a Súmula Vinculante nº 14 do STF que “é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Na sequência, há um terceiro controle da acusação vigente (art. 397), e que decorre do que foi exposto até aqui: o juiz, após a resposta, poderá absolver sumariamente o réu. Do que se conclui que, se pode absolver sumariamente, poderá excluir da peça acusatória eventual excesso que reconheça após a resposta à acusação, especialmente pelo disposto no art. 399 vigente (9).
Ou seja, somente poderá haver acordo penal sobre o conteúdo da acusação se ela sobreviver a os filtros supra, o que, convenhamos, é um forte controle sobre eventual overcharging (ou excesso) da peça acusatória para obtenção forçada de um acordo.
Não fossem tais suficientes, o Projeto cria um quarto filtro: o acordo penal não será homologado se as provas existentes no processo forem manifestamente insuficientes para uma condenação criminal (§ 7º do art. 395-A proposto). Ou seja, o juiz não está vinculado aos termos do acordo quanto à culpa e sua resposta penal, pois compete a ele (julgador) defini-las. Afinal, ainda remanesce a regra de que quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade, nos termos do art. 29 do Código Penal brasileiro (10).
Como se lê, o Projeto exige que o acordo ocorra após o recebimento da denúncia ou da queixa (primeiro dos filtros). Por ser um ato voluntário da defesa igualmente, o acordo penal pode se dar (ou não) antes dos demais filtros existentes. Mas, por ser voluntário e devidamente orientado, somente ocorrerá o acordo penal se for conveniente para a sua defesa, pessoal e técnica.
Fica evidente, portanto, que o acordo penal está voltado para as consequências penais, não para a culpa em si, apesar de ser requisito dele a confissão circunstanciada da prática da infração penal (proposta de § 1º, inc. I, do art. 395-A). Afinal, não pode haver acordo sem confissão, o que é lógico; entretanto, nem mesmo a confissão é suficiente para sustentar, de per si, o acordo, pois ainda permanecerá vigente o art. 197 do CPP (11).
Aliás, assim já o é na colaboração processual, que se nota ser a base a proposta (vide os termos do art. 4º e parágrafos da Lei nº 12.850/13).
Quer-nos parecer, após o que foi dito, que o acordo penal brasileiro vai ter notas do plea bargaining, mas não se assemelha com a forma como o modelo americano se pauta. Lá, também há uma inércia judicial consolidada pela prática, pelo que o Ministério Público tem grande importância no momento da definição do acordo (12), somada ao fato de Sentencing Guidelines trazerem fortes parâmetros que reduzem a margem de pena pelo juiz. Entretanto, nenhuma inércia judicial será imposta no contexto brasileiro, que continuará como controlador da culpa e da pena a ser imposta, nos termos hoje vigentes, com chance de redução por força do acordo havido.
Superada a similitude integral ao plea bargaining, cabe dizer que há outros dois grande modelos de consenso sobre sentença que podem ser apontados: alemão (Absprachen) e italiano (patteggiamento).
Veja-se que, na Alemanha, o acordo se dá sobre as consequências legais (notadamente, com a indicação dos limites máximos e mínimos de pena (13)), sobre medidas procedimentais ou sobre o comportamento das partes durante o julgamento. Da mesma forma como o acordo penal, a culpa não pode ser objeto de negociação, nem mesmo as medidas a serem aplicadas em razão dela (sua modulação pode ser). É o que se depreende do StPO, § 257c, 2 e 3.
O que nos diferencia, fortemente e sem prejuízo de outras notas, do sistema alemão é o fato de que é um juiz quem negocia com o acusado (StPO, § 257c, 3 e 4). O Ministério Público tem uma função muito mais próxima de fiscal, por força de lei. Esta previsão não existe no Projeto: o juiz somente atuará após o acordo entre as partes, por ele.
Sobre o sistema italiano, neste também as partes pedem a aplicação de uma sanção substitutiva ou de uma pena pecuniária, com as diminuições cabíveis. Também é possível a aplicação de uma pena detentiva, também reduzida, quando não superar os 5 anos (art. 444 e seguintes do CPP italiano, de maneira sucinta). Por força de uma decisão exarada pela Corte Constitucional italiana (Sentença 313 de 1990), o juiz deve aferir a adequação da pena imposta (14) e da qualificação jurídica dos fatos – acusação já proposta, portanto -, além da voluntariedade e consciência do acusado (situações que também estão previstas no Projeto (15)). Aliás, de ser dito que, no direito italiano, o Ministério Público é obrigado a propor a ação penal, nos termos do art. 112 da Constituição de lá.
A situação italiana e a alemã diferem-se da americana por uma situação muito peculiar: o controle do conteúdo da acusação é muito mais rígido no continente europeu do que no americano, caracterizado pela discricionariedade na ação penal, como já dito.
Assim, voltamos à pergunta: o acordo penal é um plea bargaining? Respondemos que há pontos de contato com ele, sem dúvida, pois ninguém olvida do direito americano em matéria de consensos (fonte de inspiração para todos os demais). Entretanto, ousamos dizer, a partir do que foi dito, que o acordo penal brasileiro está muito mais próximo do direito italiano, tenha sido esta a intenção quando de sua criação ou não, apesar de não impor uma limitação de pena para ele, como os italianos possuem.
Fica claro que o que se dispõe, de maneira essencial, é do direito a uma instrução criminal. Como diz o art. 395-A, § 1º, inc. III, é requisito para o acordo penal a expressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção de provas por elas indicadas (afinal, no direito americano, o Ministério Público pode desistir, inclusive, de acusar, algo que não se admite no acordo penal brasileiro).
Estar próximo do direito italiano e não do americano tira a legitimidade do acordo penal? De modo algum! Pelo contrário, mais o legitima, ousamos dizer: afinal, o direito brasileiro, em especial o processual penal, tem suas origens e vínculos maiores no direito continental europeu, não no direito americano. Entendemos que o acordo penal respeita a tradição processual brasileira, por isto tem as pecularidades ali descritas.
Para finalizar: entendemos que não se pode criar empecilhos à proposta de lei por uma talvez indevida indicação de sua fonte de inspiração, como forma de difamar a atuação ministerial (overcharging) e querer, consequentemente, a extirpação desta importante forma de consenso. Qualquer modalidade de acordo exige a lealdade da acusação, o efetivo controle judicial (§ 6º e § 7º) e uma qualificação própria da atividade defensiva, pois os acusados dependerão muito dela para conhecer os benefícios e prejuízos da modalidade proposta (que é, como dito, uma forma especial de solução do conflito penal, não uma imposição legal a todo e qualquer crime).
1 - § 2º As penas poderão ser diminuídas em até a metade ou poderá ser alterado o regime de cumprimento das penas ou promovida a substituição da pena privativa por restritiva de direitos, segundo a gravidade do crime, as circunstâncias do caso e o grau de colaboração do acusado para a rápida solução do processo.
§ 3º Se houver cominação de pena de multa, esta deverá constar do acordo.
§ 4º Se houver produto ou proveito da infração identificado, ou bem de valor equivalente, a sua destinação deverá constar do acordo.
§ 5º Se houver vítima decorrente da infração, o acordo deverá prever valor mínimo para a reparação dos danos por ela sofridos, sem prejuízo do direito da vítima de demandar indenização complementar no juízo cível.
2 - MILITÃO, Eduardo. Moro quer adaptar no Brasil acordo usado nos EUA para diminuir processos. UOL: Brasília, 5 jan. 2019. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/01/05/moro-acordo-penal-plea-bargain-medida-eua.htm>. Acesso em 7 fev. 2019.
3 - BRANDALISE, Rodrigo da Silva. Justiça penal negociada. Negociação de sentença criminal e princípios processuais penais relevantes. Curitiba: Juruá, 2016, especialmente seu capítulo 3º.
4 - No direito brasileiro, pode-se dizer que a transação penal e suspensão condicional do processo aproximam-se do nolo contendere, conforme sustentamos na obra descrita na nota anterior, tópico 4.4.2.
5 - Vide o § 6º: “Para homologação do acordo, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua legalidade e voluntariedade, devendo, para este fim, ouvir o acusado na presença do seu defensor”.
6 - Vide o § 11: “A celebração do acordo exige a concordância de todas as partes, não sendo a falta de assentimento suprível por decisão judicial, e o Ministério Público ou o querelante poderão deixar de celebrar o acordo com base na gravidade e nas circunstâncias da infração penal”.
7 - Como consta na proposta de caput ao art. 395-A: ‘após o recebimento da denúncia ou da queixa e até o início da instrução...’.
8 - “Oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação. Na resposta, o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, nos termos do art. 396-A vigente”.
9 - Afinal, todos sabemos que o juiz pode conceder habeas corpus de ofício quando verificar flagrante ilegalidade à liberdade individual.
10 - A propósito da não vinculação do juiz ao acordo, vide os termos da proposta de § 2º, com grifos do signatário: “As penas poderão ser diminuídas em até a metade ou poderá ser alterado o regime de cumprimento das penas ou promovida a substituição da pena privativa por restritiva de direitos, segundo a gravidade do crime, as circunstâncias do caso e o grau de colaboração do acusado para a rápida solução do processo”. Caberá ao juiz fazer esta análise final, já que não homologará o acordo se a proposta de penas formulada pelas partes for manifestamente ilegal ou manifestamente desproporcional à infração (§ 7º).
11 - “O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.”
12 - Afinal, existem previsões no direito americano que estimulam a atuação judicial na apuração da verdade processual, como se lê do Federal Rules of Evidence, Rule 102 e Rule 604, e do Federal Rules of Criminal Procedure, Rule 2.
13 - O Projeto indica que as partes podem fazer indicação de pena concreta ao juiz (art. 395-A, § 1º, inc. II, parte final).
14 - Similiarmente, o art. 395-A, § 5º, proposto: “Se o juiz considerar inadequadas ou insuficientes as condições celebradas, devolverá os autos ao Ministério Público para reformular a proposta de acordo de não persecução, com concordância do investigado e seu defensor”. De se notar que as modificações impulsionadas pelo juiz também dependerão de concordância voluntária das partes. Não se trata de ativismo judicial, mas de controle de pena que lhe cabe: pense-se na hipótese de um latrocínio cuja pena acordada seja a de furto simples. Pode ser teratológico o exemplo, mas as teratologias acontecem no dia-a-dia forense.
15 - Vide os termos propostos ao § 4º do art. 395-A: “Para homologação do acordo, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua legalidade e voluntariedade, devendo, para este fim, ouvir o investigado na presença do seu defensor”.