Artigo publicado originalmente na edição nº 27 da revista Conceito Jurídico
Ainda no espocar dos foguetes e rufar dos tambores anunciando 2019, o Governo Federal apresentou a Proposta de Emenda Constitucional nº 6, alterando todo o sistema previdenciário dos setores público e privado. De longe, a pior proposta dentre as inúmeras que já circularam no âmbito do Congresso Nacional nos últimos anos.
Ao propagar a proposta, seus autores bradaram aos quatro cantos a necessidade de aprovação na íntegra, em regime de urgência, como a única solução e necessária para salvar o país, levando-o de um estado de falência a outro de abundância. Não bastasse a fórmula que traria tranquilidade ao país, inocentemente mágica, tal qual o Imperador que, ao mandar banir as tempestades de seu reino, voltou a dormir tranquilamente, apresenta-se argumentos fáceis, mas de pouca dura. Faltou explicar, por exemplo, as razões pelas quais a União retirou do Regime Geral de Previdência Social/RGPS elevadíssimas receitas decorrentes da Desvinculação de Receitas da União-DRU que perfazem cifras trilionárias, além das renúncias fiscais. Aliás, valores tão expressivos que jamais poderiam ser ocultados em qualquer explicação minimamente séria, pois útil à formação da opinião pública. Curioso ainda que a animação indiscreta do Governo não se revelou em relação ao déficit do Regime dos Militares, cujas regras são absolutamente mais vantajosas. A razão é uma (suposto déficit), mas o tratamento é diferente.
Mas saltemos por cima de tudo isso. Fiquemos nos supostos vilões: os servidores públicos.
Setores do Governo contam em voz alta que a aposentação do setor público é um privilégio e seriam eles os responsáveis, os algozes de todos os males do Brasil. Todavia, antes da formação de qualquer juízo, é bom compreender o que se passa na vida como ela é. Desconfiar, como está lá, em Grande Sertões: Veredas, “Quem desconfia, fica sábio!”
Há três regimes de aposentadoria no serviço público.
Aposentadoria integral e paritária para os que ingressaram até a Emenda Constitucional 41 (1º de janeiro de 2014), desde que cumpridos os requisitos de 60 anos idade para homem e 55 para mulher, com 35 anos de contribuição para os homens e 30 para as mulheres, 20 anos de serviço público, 10 anos de carreira e cinco anos no cargo (art.6 da EC 41).
Regime de média para os que ingressaram no serviço público entre a vigência da Emenda Constitucional 41 e a efetiva oferta do regime complementar previdenciário (no âmbito da União, em 4 de fevereiro de 2013), em que se calcula a média simples atualizada das 80% maiores remunerações.
E, por fim, os que ingressaram após a adoção do regime complementar, os quais se sujeitam ao teto do Regime Geral de Previdência, podendo aderir a um plano complementar co-contributivo, em sistema típico de capitalização.
Portanto, ao contrário do que propagado por inadvertidos, os servidores federais e os estaduais nos entes que já implementaram o regime complementar, ao ingressarem no serviço público, já estão sujeitos ao teto do Regime Geral de Previdência.
Os demais, sujeitos ao teto de R$ 39.239,32, contribuem com um valor 6,72 vezes maior que o teto da aposentadoria do setor privado, hoje fixado em R$ 5.839,45. Assim, o servidor que se aposenta no teto do regime público, o que é uma raridade, contribui mensalmente com R$ 4.316,33 (adotada a alíquota de 11% sobre o salário, caso da União e maioria dos estados), valor 6,72 vezes maior que a contribuição máxima do setor privado, fixada em R$ 642,34. Da mesma forma, o teto da aposentadoria do setor público é 9,09 vezes maior que sua contribuição, valor idêntico ao setor privado. O mesmo parâmetro é utilizado para a fixação das contribuições daqueles que se aposentarão pelo regime de média.
Dos dados acima, o caso é simples. Há uma absoluta proporção em termos de contribuição e aposentadoria no setor público e privado. A diferença é que um contribui sobre o teto do Regime Geral de Previdência – RPPS e o outro sobre o do Regime Geral de Previdência Social – RGPS. Leia-se, um servidor federal que receba R$ 39.239,32 paga a título de previdência R$ 4.316,33, já o trabalhador da iniciativa privada que receba o mesmo valor paga a título de previdência R$ 642,34.
Estaríamos, pois, em uma situação de igualdade? Seguramente que não. O servidor público e seu pensionista, acaso recebam acima do teto do RGPS, continuam contribuindo com a previdência social mesmo após se aposentar. E as diferenças não param por aí. O limite mínimo de idade para a aposentadoria (60 anos homens e 55 mulheres) deve ser aliado ao mínimo de 35 anos de contribuição para os homens e 30 para as mulheres, além da exigência de 10 anos de serviço público e cinco anos no cargo. Já no setor privado, a aposentadoria pode ser obtida com 35 anos de contribuição para homens e 30 para as mulheres. A disparidade fica clara se analisarmos um servidor público que comece a trabalhar aos 18, pois se aposentará apenas aos 60 anos, ao passo que o da iniciativa privada se aposentará aos 53 anos.
Veja-se o surrealismo relatado: ao invés de analisar o valor efetivamente contribuído, o Governo tenta desconsiderar os valores pagos por décadas, não só aumentando a idade mínima para a integralidade e paridade para 65 anos se homem e 62 se mulher, sem qualquer regra de transição, mas também tentando criminalizar os servidores públicos.
Lembro uma passagem contada por Machado de Assis, em Quincas Borba:
Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma tribo extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”
É nesse estado que nos vemos espantados diante das falácias propagadas, criando uma guerra contra os servidores públicos, a qual seria necessária para a conservação das finanças públicas. Busca-se transpor a montanha à custa do aniquilamento de contribuições fartas e rigorosamente pagas em dia, por décadas, lesando cláusulas pétreas, numa pseudo luta do bem contra o mal, fazendo com que a realidade se atropele debaixo de lendas. Por tudo isso, nas ofuscas lentes da PEC 06/2019, poderia dizer o atemporal bruxo do Cosme Velho: ao servidor público, ódio ou compaixão, ao Governo, as batatas...
ENÉIAS XAVIER GOMES é Presidente da Associação Mineira do Ministério Público, Promotor de Justiça no Estado de Minas Gerais, Mestre em Teoria Geral do Delito e Doutor em Direito Penal Contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público)