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A proteção da mulher

Artigo originalmente publicado na revista Justiça e Cidadania. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/a-protecao-da-mulher/

Por Fábia de Melo-Fournier

Sob a ótica da Corte Interamericana de Direitos Humanos

O Sistema Interamericano foi o primeiro sistema internacional de Direitos Humanos a integrar a perspectiva de gênero em sua estrutura, bem como em seus instrumentos normativos e em sua jurisprudência. Em 1928, foi criada a Comissão Interamericana de Mulheres, que protagonizou o processo de adoção, em 1994, da “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher” (CIPPEVM/ Convenção de Belém do Pará). Por ela, os Estados signatários reconhecem que a violência contra a mulher “é manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens” e se comprometem a adotar políticas específicas visando prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) assume papel relevante nesse contexto, pois reconheceu que a CIPPEVM traz parâmetros para a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), no que tange à violação de Direitos Humanos das mulheres enquanto violência de gênero, incluindo-a em sua competência. Esta prática da CIDH de considerar a perspectiva de gênero como um elemento analítico para sua decisão repercutiu tanto na esfera dos direitos materiais, quanto dos direitos instrumentais enunciados na CADH.

Na interpretação do direito à integridade pessoal (CADH, art. 5°), a CIDH considerou, pela primeira vez, ainda que de forma implícita, no Caso Prisão Castro Castro c. Pérou, que mulheres e homens foram afetados de maneiras distintas pela violência a que foram submetidos, bem como pelas condições precárias de encarceramento, provocando um grau de sofrimento ainda maior às mulheres, posto que atacadas em sua identidade feminina.

Por exemplo, a CIDH considerou como violência sexual contra a mulher a nudez forçada diante de policiais homens. No Caso López Soto et al c. Venezuela, a CIDH adotou uma interpretação evolutiva da noção de tortura, ao declarar que, para sua caracterização, é necessário demonstrar a intenção de causar grave sofrimento físico ou mental, não mais necessitando que os atos sejam praticados por agentes do Estado, mas o fazendo com a concordância ou tolerância deste.

A CIDH trouxe ainda uma dimensão de gênero para a definição de tortura e de escravidão sexual. O estupro pode se caracterizar como tortura se ficar demonstrado que foi praticado com intuito de intimidar e dominar a vítima, por ser mulher. A CIDH reconhece também que os efeitos da escravidão sexual assumem caráter ainda mais devastador em vítimas mulheres. Por a violação de determinados direitos fundamentais ter efeitos diversos sendo a vítima do gênero feminino ou masculino, isso deve ser levado em conta a quando da decisão de reparação do dano.

Na interpretação dos direitos instrumentais dos artigos 8º (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial), combinados com o art. 1.1 da CADH, sabe-se que a jurisprudência interamericana há muito estabeleceu obrigações positivas ao Estado de investigar, processar e sancionar os responsáveis por graves violações dos Direitos Humanos. Essa obrigação poderá ser reforçada por outros instrumentos normativos relacionados à natureza dos fatos como, por exemplo, relativos à prevenção e sanção da tortura e de violências contra mulheres.

Assim, a CIDH decidiu que, em relação ao art. 7° da CIPPEVM, o Estado tem não somente a obrigação razoável de prevenir a violência contra as mulheres, como também tem o dever de investigar, de forma eficaz, as violações cometidas ao seu encontro.

A Corte considera que o dispositivo citado traz uma obrigação adicional ao Estado quando o homicídio ou a violação da integridade pessoal ocorre em um contexto de violência de gênero. Nestes casos, a investigação deve ser conduzida levando-se em conta essa perspectiva. Disto decorre, para o Estado, a obrigação de capacitar seus atores. A Corte foi ainda mais longe no Caso Atenco c. México, determinando ao Estado, além da realização de programas de formação de policiais, a criação de observatório independente para monitorar o uso da força policial.

A responsabilidade internacional do Estado pode ser gerada tanto por violações praticadas pelos próprios agentes do Estado, quanto por particulares. Em relação a esta última hipótese, a responsabilidade é estabelecida pela violação do dever estatal de prevenir a violência de gênero. Para a CIDH, o Estado tem o dever de agir rápida e diligentemente, desde o primeiro momento em que lhe for comunicada a ocorrência de violência contra a mulher, seu desaparecimento ou sequestro.

Na medida em que os juízes interamericanos convidaram, em diversas decisões, expressamente, os atores nacionais a realizar o controle de convencionalidade na aplicação do Direito em seus respectivos países, a jurisprudência interamericana é instrumento relevante nesta tarefa.

Notas____________________________________

1 Em vigor desde 03/05/1995.

2 Sentença de 25/11/2006, Série C, n°160, §§259-342.

3 Ibid nota 3, §§306 e 308.

4 Cf. também, CIDH, Caso Atenco c. México, sentença de 28/11/18, Série C, n°371.

5 CIDH, Caso Velásquez Rodríguez c. Honduras, sentença de 29/07/88, Série C, n°4, §166.

6 CIDH, Caso Massacres do Rio Negro c. Guatemala, sentença de 04/09/12, Série C, n°250, §222.

7 CIDH, Caso González e al. (“Campo de Algodão”) c. México, sentença de 16/11/09, Série C, n. 205, §§236 e 293. A CIDH fez referência, pela primeira vez, ao termo “feminicídio”.

8 Ibid. nota 11, §225.

9 Ibid. nota 8, §356.

10 CIDH, Caso López Soto et al. c. Venezuela, dec. 26/09/18, Série C, n°362, §§217-226, que tratou do acesso à Justiça de maneira equitativa das mulheres vítimas de violência.


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