O papel investigativo do Ministério Público está consolidado em nossa democracia e é fundamental para garantir isenção e eventuais equívocos na condução dos trabalhos na busca da verdade nas apurações de condutas criminosas. Os procuradores e promotores de Justiça -entre tantas atribuições constitucionais – também são escolhidos pela Constituição da República Federativa do Brasil como os defensores do Estado democrático de direito. No atual cenário, chama a atenção de instituições e do meio jurídico a celeuma sobre o inquérito das “fake news”, instaurado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que tem sido conduzido em sigilo, com a participação do procurador-geral da República.
É importante esclarecer que o inquérito foi iniciado sem provocação ou requerimento, ou seja, “de offício”. E desta forma, sendo presidido por um ministro do STF a investigação não está alinhada com a sistemática processual penal estabelecida pelo novo sistema constitucional de 1988, pois cabe às Polícias Judiciárias (Policia Federal, Policia Civil, entre outras) e ao Ministério Público o papel de investigar.
A questão se torna inquietante ao observamos que o tema do inquérito: ofensas e ameaças que “atingem a honorabilidade e principalmente a segurança” da Corte, os ministros e seus familiares, possivelmente revelará conduta gravíssima. Vemos conflito de interesses estabelecidos na medida que ocorrem bloqueios de contas em redes sociais por serem suspeitas do suposto crime. Então, justamente no clima quente do debate surge o questionamento: deve-se permitir que um magistrado (juiz de Direito, desembargador, ministro) conduza a investigação? A referida permissão não enfraqueceria o princípio do sistema acusatório, que estabelece que cabe a investigação a aquele que deve produzir a prova durante o processo judicial, devendo o magistrado se afastar da investigação para garantir a imparcialidade? A teoria da separação de poderes não deixa clara a referida diferença de responsabilidades? No entendimento de promotores e procuradores de Justiça, sim.
Adicione-se, que toda a cautela é necessária quando se trata de uma investigação que envolve a manifestação de pensamento e opinião, princípio elementar para qualquer democracia. O Estado deve estar atento para não incorrer em censura política, por certo. No outro caminho não há que se permitir que condutas que extrapolam a liberdade de expressão sejam toleradas, sob o manto equivocado de não censura. Crime é uma coisa, liberdade de expressão é outra.
Nesse contexto atual, agravado ainda pela covid-19, torna-se fundamental destacar o papel do Ministério Público como garantidor de que o inquérito não viole a liberdade de imprensa, o direito a manifestações críticas, sátiras, enfim, toda forma de manifestação livre do pensamento que não esteja contaminada pelo excesso que leve a ser considerado crime e se diga, vários tipos desse, como: ameaça, injúria, calúnia, difamação, crime contra a segurança nacional, enfim um rosário de práticas que nada têm de democráticas e sim, uma verdadeira violência contra as liberdades civis de qualquer brasileiro.
Na condição de presidente da Associação que representa mais de 16 mil membros do Ministério Público brasileiro – Conamp – , que no presente ano completa 50 anos de fundação, relembro que desde o ano passado temos nos posicionado contra a condução do referido inquérito por ministros, esclarecendo à sociedade sobre o desrespeito ao sistema acusatório e o consequente enfraquecimento da autonomia das funções dos membros do Ministério Público e da separação de poderes. Em outras palavras, tudo o que tem sido o motivo para os conflitos que assistimos hoje na vida brasileira. Entretanto, é importante deixar bem claro: entendemos que juízes não devem investigar, mas queremos investigar com afinco.
Neste capítulo da história, porém, é inquestionável e deve ser dito na voz mais alta que a democracia, as instituições, a livre atuação dos Poderes e a autonomia do Ministério Público estão acima de qualquer divergência, entendimentos, desentendimentos, insatisfação técnica ou insatisfações pessoais. A democracia está em outro patamar, não pode, em momento algum ser ameaçada por qualquer período de polarização política e enfrentamentos entre poderes. As críticas e opiniões favoráveis de como o inquérito deve ser conduzido agravam desnecessariamente a tensão na sociedade brasileira e entre instituições, mas nada permite a quebra da democracia e desrespeito à constituição.
A democracia deve estar sempre em primeiro lugar, acima de interesses pessoais ou políticos. Esse é o apelo e a missão do Ministério Público.
*Manoel Murrieta é promotor de Justiça do Estado do Pará, professor de Direito Processual Penal e presidente da CONAMP.
Artigo originalmente publicado no Estadão, no dia 7 de junho de 2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-brasil-sob-regencia-da-democraciadeve-estar-acima-de-tudo/