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Reflexões sobre o crime de infração de medida sanitária preventiva – “coronavírus” – do art. 268 do CP

*Sauvei Lai é Promotor de Justiça do MPRJ, pós-graduado, professor de processo penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (AMPERJ) e membro do grupo de trabalho da sub-relatoria revisora do projeto do novo Código de Processo Penal (CPP).

 

I. CENÁRIO ATUAL. II. INTERESSE PÚBLICO VERSUS INDIVIDUAL. III. INTERVENÇÃO PROPORCIONAL. IV. COMPETÊNCIA E LIMITES DO PODER DE POLÍCIA. V. DECRETO ESTADUAL/RJ N. 47.006/2020 E NORMA PENAL EM BRANCO DO ART. 268 DO CP. VI. NORMA PENAL EM BRANCO, CEGA OU ABERTA. VII. OUTROS EXEMPLOS DE NORMA PENAL EM BRANCO HETEROGÊNEA. VIII. NORMA PENAL EM BRANCO HOMOGÊNEA POR DETERMINAÇÃO EXPRESSA. IX. ERRO DE PROIBIÇÃO. X. ULTRATIVIDADE DE LEI EXCEPCIONAL. XI. PRISÃO EM FLAGRANTE. XII. IMPETRAÇÃO DE HC (ART. 5º, LXVIII DA CRFB/88). XIII. CONCLUSÃO.

 

I. CENÁRIO ATUAL

A pandemia da doença Covid-19, causada pelo vírus Sars-Cov-2, é a maior crise sanitária e humanitária desde a 2ª Guerra Mundial (1939-1945) com 196.000 mortes até o presente momento[1], impondo medidas atípicas e restritivas, que suscitam questionamentos jurídicos e debates apaixonados.

Esses rascunhos são frutos de uma reflexão objetiva acerca dessa situação inédita sem respostas singelas e definitivas.

 

II. INTERESSE PÚBLICO VERSUS INDIVIDUAL

Diante das realidades distintas do nosso país continental, os Poderes Públicos federal, estaduais, distrital e municipais poderão adotar, dentro do âmbito de suas competências, orientações da Organização Mundial da Saúde, conforme estabeleceu a Lei n. 13.979/2020 (medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus) e a portaria interministerial n. 5/2020 do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Ministério da Saúde.

Semelhantes providências (por ex., de distanciamento social) implicam inevitavelmente na colisão de direitos e interesses constitucionais. Na hipótese vertente, ganha especial relevo o conflito entre o direito individual de ir e vir (art. 5º, LX da CRFB/88) e o direito coletivo à saúde (art. 196 da CRFB/88) em decorrência de restrições graduais, pontuais e temporárias de circulação em logradouros, valendo destacar o art. 4º, XV do Decreto Estadual/RJ n. 47.006/2020 que determina a suspensão, por ora, da “frequência pela população de praia, lagoa, rio e piscina pública”. Aqui não se pretende (nem se pode) discutir a validade das recomendações dos especialistas (médicos sanitaristas), que (ainda) não restringiram o trânsito de pessoas nos calçadões (ao contrário das areias das praias), talvez porque suas atividades físicas (em movimento) não tenham tanto impacto na propagação da doença, diferentemente do comportamento de lazer dos banhistas nas areias, que se sentam e compartilham bebidas, comidas, cigarros etc., além do contato com a própria areia, quiçá contaminada com coliformes fecais, depósitos do vírus Sars-Cov-2. Outros países europeus decretaram medidas bem mais severas.

Não há dúvidas de que estados e municípios no país afora adotaram normas similares, no exercício do poder de polícia, definido no art. 78 do Código Tributário Nacional, in verbis:

Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do poder público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (grifo nosso)

 

III. INTERVENÇÃO PROPORCIONAL

O primeiro questionamento surge quanto à proporcionalidade dessas medidas restritivas, se são exageradas ou não. A solução perpassa pela análise do princípio da proporcionalidade (da razoabilidade – détournement de pouvoir do Conselho de Estado francês do séc. XIX), que em breve síntese se desdobra nos subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito (ou ponderação) na esteira das lições do professor Bernhard Shlink da Universidade de Humboltd [2].

Entende-se por adequação a utilização de meio interventivo apto à consecução de um fim (ou objetivo) legítimo, no caso, a restrição de circulação, a fim de evitar a rápida propagação da doença, colapsando o sistema hospitalar (em crise antes mesmo da pandemia); por necessidade a inexistência de instrumento menos lesivo e gravoso, porém igualmente eficaz, não havendo até hoje vacina ou medicação curativa cientificamente testada; e por proporcionalidade estrita a ponderação (o balanço final) das consequências da satisfação de um direito com o sacrifício de outro. A situação fática é essa: restringe-se a circulação (temporariamente e limitada a alguns locais) em prol da saúde pública, direito de todos e dever do Estado na dicção do art. 196 da CRFB/88.

Arremata-se com o ensinamento do professor Robert Alexy da Universidade de Kiel, ipsis litteris:

La máxima de proporcionalidad suele ser llamada principio de proporcionalidad. Sin embargo, no se trata de um principio em el sentido aqui exposto. La adequación, necesidad y proprcionalidad en sentido estricto no son ponderadas frente a algo diferente. No es que unas veces tengan precedência y otras no. Lo que se pregunta más bien es si las máximas parciales son satisfechas o no, y su no satisfaccion tiene como consecuencia la ilegalidad. Por lo tanto, las três máximas parciales tienen que ser catalogadas como reglas [3]. (grifo nosso)

Por fim, é de uma obviedade solar deduzir que a garantia da saúde pública (fim legítimo das aludidas normas restritivas) está umbilicalmente unida ao direito à vida (art. 5º, caput da CRFB/88), irradiador dos demais direitos individuais, inclusive do de ir e vir e do de propriedade.

De outra sorte, não se vislumbra nenhum ferimento mortal à propriedade das praias marítimas pela União (art. 20, IV da CRFB/88), cuja gestão, a propósito, é das Prefeituras, de acordo com a Lei n. 13.240/15. Contudo, frise-se que não houve desapropriação, mas mera restrição temporária de seu acesso pela população – que deve ser sempre embasada em critérios técnicos e/ou científicos para sua legitimidade –, preponderando o interesse coletivo à saúde pública sobre o direito (ordinariamente) patrimonial de domínio e bastando conceder uma interpretação razoável ao que se estipula no art. 52.1 da Carta Dos Direitos Fundamentais Da União Europeia, nestas palavras:

Na observância do princípio da proporcionalidade, as restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efectivamente a objectivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de protecção dos direitos e liberdades de terceiros. (grifo nosso)

 

IV. COMPETÊNCIA E LIMITES DO PODER DE POLÍCIA

Superadas as premissas acima, o segundo questionamento é a respeito da competência. Quem poderia editar as normas intervencionistas em defesa da saúde pública? Na medida cautelar da ADPF n. 672, o ministro do STF, Alexandre de Moraes, reputou, fulcrado na competência concorrente do art. 23, II da CRFB/88 e na comum do art. 24, XII da CRFB, que: “Dessa maneira, não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos” (grifo nosso).

Em igual tendência, o plenário do STF julgou a ADI 6341: “a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios” (grifo nosso).

 

V. DECRETO ESTADUAL/RJ N. 47.006/2020 E NORMA PENAL EM BRANCO DO ART. 268 DO CP

A Lei n. 13.979/2020 e a portaria interministerial n. 5/2020, supra invocadas, reconhecem, outrossim, a legitimidade e a competência dos entes subnacionais para editar atos normativos, aptos a integrar a norma penal em branco do crime do art. 268 do CP (infração de medida sanitária preventiva), como se depreende da motivação e do art. 2º e art. 3º do referido ato executivo, in textus:

(...)
Considerando que o descumprimento das medidas impostas pelos órgãos públicos com o escopo de evitar a disseminação do coronavírus (COVID-19) podem inserir o agente na prática dos crimes previstos nos artigos 268 e 330 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, de forma permanente, enquanto durar a negativa, resolvem:
(...)
Art. 2º Na hipótese de serem adotadas pelas autoridades competentes as medidas emergenciais previstas nos incisos I, II, III, V, VI e VII do caput do art. 3º da c, as pessoas deverão sujeitar-se ao seu cumprimento voluntário.

Art. 3º O descumprimento das medidas previstas no art. 3ª da Lei nº 13.979, de 2020, acarretará a responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes infratores. (grifo nosso)

Deste modo, o estado fluminense, no âmbito de sua competência constitucional e legal (ratificada pela jurisprudência do STF), editou o Decreto Estadual/RJ n. 47.006/2020 que determinou, em seu art. 4º, XV, a suspensão da “frequência pela população de praia, lagoa, rio e piscina pública”.

 

VI. NORMA PENAL EM BRANCO, CEGA OU ABERTA

A norma penal em branco é um tipo incompleto, que contém uma regra genérica proibidora e sua respectiva sanção, porém demanda regulamentação legal (lato sensu, incluindo ato administrativo da autoridade competente), para sua perfeita exequibilidade e criminalização. Elas existem em face da complexidade e da diversidade das situações fáticas e das relações jurídicas, que surgem pontualmente ou com sentido de urgência sem poder aguardar a resolução demorada do processo legislativo do Congresso Nacional (arts. 59 e seg. da CRFB/88), remetendo sua especificação às instâncias mais ágeis, que rápida e facilmente preenchem o conteúdo proibitivo, solucionando a questão.

O imbróglio reside na admissibilidade ou não da norma penal em branco heterogênea (órgão regulamentador distinto do Congresso Nacional), na medida em que a homogênea (mesma fonte legislativa) não desperta discussões jurídicas. Malgrado doutrinária vencida [4], o decreto fluminense em tela serve para colmatar a norma penal em branco do art. 268 do CP “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, crime formal (prescinde de resultado lesivo), de perigo abstrato (ou presumido) [5], comissivo ou omissivo (verbi gratia, frequentar lugar proibido ou deixar de usar item higiênico obrigatório). De fato, Nelson Hungria (entre outros [5,6,7,8]), ministro do STF e revisor do Código Penal, explicou que cuida-se de crime de perigo “presumido de modo absoluto” – apesar de tese minoritária [9] –, porquanto “Não é necessário que sobrevenha efetivamente a introdução ou propagação da doença”, porque a intenção do legislador é justamente prevenir e bloquear a introdução ou a disseminação epidêmica e “O elemento é, tão-somente, o dolo genérico, ou seja, a vontade livre e consciente de transgredir a determinação oficial” [10], ao contrário do crime de perigo de contágio de moléstia grave do art. 131 do CP, que não dispensa dolo específico “com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado (...)”.

O mesmo Nelson Hungria registrou que o Poder Público a que se refere o art. 268 do CP “quer dizer, aqui, autoridade competente (federal, estadual ou municipal)” [11]. Um penalista mais moderno, ROGÉRIO S. CUNHA, se manifestou no sentido de que “a lei penal em branco (própria ou imprópria) pode ser complementada por normas oriundas de instâncias federativas diversas (Poder Executivo ou Legislativo Federal, Estadual ou Municipal)” [12] – grifos nossos.

Seguindo essa linha de raciocínio, Assis Toledo, ministro do STJ e autor da reforma da Parte Geral do CP em 1984, anotou que a norma penal em branco pode ser complementada por “outras normais legais regulamentares ou (até) administrativas (grifo nosso)” [13]. E em idêntica trilha, DAMÁSIO E. DE JESUS [14], JULIO F. MIRABETE [15], LUIZ R. PRADO [16] e GILMAR MENDES [17]. Destarte, o STF, no HC 86.262/MG, deliberou em 2005, a seguir:

LOTEAMENTO - DESDOBRAMENTO DO SOLO - TIPO PENAL - INCISO III DO ARTIGO 50 DA LEI Nº 6.766/79 - LEGISLAÇÃO - CONSIDERAÇÃO. A definição da ocorrência do crime tipificado no inciso III do artigo 50 da Lei nº 6.766/79 pressupõe o exame da legislação acerca das posturas municipais, das normas disciplinadoras do loteamento ou desdobramento do solo para fins urbanos. (grifo nosso)

 

VII. OUTROS EXEMPLOS DE NORMA PENAL EM BRANCO HETEROGÊNEA

 

A esta altura, é interessante comparar com outros tipos, que são normas penais em branco heterogêneas e que nitidamente necessitam de simples regulamentação local (estadual ou municipal), e não federal.

 

Art. 2º, VI da Lei n. 1.521/51: “transgredir tabelas oficiais de gêneros e mercadorias, ou de serviços essenciais, bem como expor à venda ou oferecer ao público ou vender tais gêneros, mercadorias ou serviços, por preço superior ao tabelado, assim como não manter afixadas, em lugar visível e de fácil leitura, as tabelas de preços aprovadas pelos órgãos competentes” (grifo nosso).

 

Anote-se que o tabelamento de preço pode ser de acordo com a realidade específica da localidade.

 

Art. 1° da Lei n. 8.137/90: “Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

v - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa” (grifo nosso).

 

Explique-se que autoridade fazendária engloba tanto a estadual, quanto a municipal, dependendo da natureza do tributo, por ex. ICMS e ISS.

 

Art. 29, § 4º, I da Lei n. 9.605/98: “Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:

Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa.

§ 4º A pena é aumentada de metade, se o crime é praticado:

I - contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente no local da infração” (grifo nosso).

 

VIII. NORMA PENAL EM BRANCO HOMOGÊNEA POR DETERMINAÇÃO EXPRESSA

Em contrapartida, o art. 1º, in fine da Lei n. 11.343/06 (Lei Antidrogas) reclama sua colmatação por lei ou ato proveniente do governo federal, vedando expressamente (como toda exceção) através de ato normativo subnacional, distintamente dos demais casos citados previamente, in verbis:

Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em LEI ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo poder executivo da união. (grifo nosso)

 

IX. ERRO DE PROIBIÇÃO

Sob outra perspectiva, parece-nos crível que o autor do fato invoque a exculpante da ausência de potencial consciência de ilicitude do fato do art. 21 do CP (“O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”), recordando que a excludente de culpabilidade é tese defensiva, que deve ser ventilada no processo judicial (se houver, ante a possibilidade de transação penal do art. 76 da Lei n. 9.099/95) com o respectivo ônus probatório (art. 156 do CPP), consoante preleciona um dos maiores processualistas lusitanos, ipsis litteris:

É às partes – e só a elas – que compete a adução do material de facto que há de servir de base à decisão. O autor e o réu proporcionarão ao juiz, mediante as suas afirmações de facto e as provas que carrearem, a base factual da sua decisão (...) a isto que se chama o princípio da auto-responsabilidade probatória das partes.[18] (grifo nosso)

Por este motivo, nessa época de incertezas com a profusão de atos normativos que mudam local e temporalmente, a recomendação mais adequada às polícias, às guardas municipais e aos demais agentes é a de informar e orientar, prendendo em flagrante (art. 302, I do CPP) somente os recalcitrantes, que persistirem na desobediência, dificultando, inclusive, a alegação posterior de desconhecimento da lei.

 

X. ULTRATIVIDADE DE LEI EXCEPCIONAL

Um tópico interessante é esquadrinhar a consequência da revogação superveniente desse e de outros decretos. Há abolitio criminis do art. 5º, XL da CRFB/88? Apoiando-se no princípio da ultratividade da lei excepcional e temporária, a resposta será negativa, nos ditames do art. 3º do CP, in textus:

A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência. (grifo nosso)

Lei temporária é aquela que “tem prazo de vigência prefixado no seu próprio texto” [19], como nos crimes (conhecidos como os da FIFA) da Lei 12.662/12, a seguir:

Art. 30. Reproduzir, imitar, falsificar ou modificar indevidamente quaisquer Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano ou multa.
Art. 36. Os tipos penais previstos neste Capítulo terão vigência até o dia 31 de dezembro de 2014. (grifo nosso)

O cenário sob exame se emoldura como lei excepcional, cujo período de existência está “subordinada à duração do excepcional estado das coisas que as ocasiona” [20], de modo que a norma penal em branco com regulamentação episódica deve ser regida pelo art. 3º do CP, ensinando Guilherme Nucci, in verbis:

É preciso, no entanto, que se diga que o complemento da norma em branco é, como regra, de natureza intermitente, feito para durar apenas por um determinado período. Uma tabela de preços, por exemplo, tem caráter temporário. Assim, valendo-se desse caso, quando o complemento tiver caráter secundário à própria norma penal, utiliza-se o disposto no art. 3.º: ele é sempre ultrativo. [21] (grifo nosso)

De mais a mais, a jurisprudência da Suprema Corte brasileira (HC 73.168/SP) navega nessa direção, ipsis litteris:

EMENTA: "Habeas corpus". - Em princípio, o artigo 3º do Código Penal se aplica a norma penal em branco, na hipótese de o ato normativo que a integra ser revogado ou substituído por outro mais benéfico ao infrator, não se dando, portanto, a retroatividade. - Essa aplicação só não se faz quando a norma, que complementa o preceito penal em branco, importa real modificação da figura abstrata nele prevista ou se assenta em motivo permanente, insusceptível de modificar-se por circunstancias temporárias ou excepcionais, como sucede quando do elenco de doenças contagiosas se retira uma por se haver demonstrado que não tem ela tal característica. "Habeas corpus" indeferido. (grifo nosso)

 

XI. PRISÃO EM FLAGRANTE

Quanto ao procedimento pré-processual, sabe-se que o crime em debate é infração de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei n. 9.099/95) e, por conseguinte, “não se imporá prisão em flagrante” na dicção do art. 69, in fine da Lei n. 9.099/95. Contudo, a melhor interpretação é a vedação apenas do segundo dos dois momentos da prisão em flagrante, isto é, da lavratura do auto de prisão em flagrante (art. 304 do CPP), título pré-prisional, substituindo-o pelo termo circunstanciado (art. 69, caput), procedimento policial específico para infração de menor potencial ofensivo, desde que o autor assuma o compromisso de comparecer ao Juizado Especial Criminal, liberando-o em seguida. Todavia, a proibição nunca impediu o primeiro momento, a prisão-captura (art. 5º, LXI da CRFB/88), em outras palavras, a detenção física e o encaminhamento do autor à Delegacia de Polícia, respeitando-se o teor da súmula vinculante n. 11 do STF (no tocante ao uso das algemas). Em suma, a atuação policial é obrigatória e impositiva (art. 301 do CPP) na repressão de qualquer infração penal que está sendo perpetrada (art. 302 do CPP). Logo, não se trata de cerceamento do direito ambulatorial no estado de sítio (art. 139, I da CRFB/88), que independe da prática de crime.

Ademais, na repressão de crimes, inclusive de menor potencial ofensivo, não há como invocar crime de abuso de autoridade do art. 13, II da Lei n. 13.869/19, sobretudo pela inexistência do especial fim de agir (ou dolo especifico) de “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal” (art. 1º, § 1º).

 

XII. IMPETRAÇÃO DE HC (ART. 5º, LXVIII DA CRFB/88)

Para aqueles que vislumbram inconstitucionalidade e ilegalidade nos atos normativos analisados e no procedimento policial a ser adotado, só resta, no Estado Democrático de Direito, a tomada de medidas jurídicas cabíveis, na hipótese, impetração de Habeas Corpus, que, a propósito, já foi intentado, mas denegado liminarmente pelo STJ, HC 573.208/SP, in textus:

Vale ainda referir que, formalizada medida administrativa para que os cidadãos do Estado de São Paulo deixem de circular livremente e saiam de casa apenas em situações estritamente necessárias, como forma de tornar o isolamento social mais efetivo, seu descumprimento, ao menos em tese, sujeita o infrator a eventual imputação do crime previsto no art. 268 do Código Penal. (grifo nosso)

 

XIII. CONCLUSÃO

Depreende-se que a doutrina majoritária e a jurisprudência do STF e do STJ classificam o crime do art. 268 do CP – formal e de perigo abstrato ou presumido – como norma penal em branco heterogênea (em sentido estrito ou própria), autorizando sua regulamentação por ato local (estadual, distrital e municipal) e compelindo, assim, a atuação policial (art. 301 do CPP) no caso de flagrante delito (art. 302, I do CPP). Aos que discordam, cabe cumprir a lei e as decisões judiciais sem prejuízo da adoção dos remédios judiciais pertinentes.

Rio de Janeiro, 24 de abril de 2020.


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