Se existe um tema que precisa ser levado a sério em nosso País, especialmente no âmbito do nosso ordenamento jurídico, este, certamente, é aquele que trata dos direitos das vítimas de crimes.
Não é preciso ser um grande especialista para conseguir verificar aquilo que está latente aos nossos olhos no Brasil de hoje, ou seja, a tutela ineficiente dos direitos das vítimas de crimes, o que pode ser averiguado por algumas constatações, dentre as quais destacamos três a seguir.
Primeira, a do tratamento conferido pela Constituição às vítimas de crimes, pois, ao longo de seus 250 artigos e já passadas 107 emendas ao seu texto, as vítimas só são mencionadas em seu art. 245, que fala sobre a assistência do Poder Público aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso.
Segunda, a do tratamento conferido pelo legislador que, diante da previsão do art. 245 da Constituição, permanece omisso na sua obrigação neste ponto exato, além de outros tantos, deixando de conferir tratamento digno a esta categoria de pessoas.
Terceira, a do tratamento conferido nas mídias atuais que têm, cada vez mais, conferido um foco equivocado ao conflito delitivo, chegando ao ponto de, praticamente, inverter a lógica deste fenômeno, transformando o criminoso em vítima e a vítima em criminoso.
Interessante é observar que esta mesma situação não parece ser vivenciada em outros ordenamentos jurídicos no mundo atualmente, dentre os quais, é possível apontar alguns, tanto na Europa quanto na América.
Na Europa, por exemplo, é interessante verificar a valorização da tutela dos direitos das vítimas de crimes, tendo o Parlamento Europeu editado a Diretiva 2012/29/EU, que tratou de estabelecer normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade.
Em decorrência deste movimento, países europeus começaram a publicar seus respectivos estatutos, podendo ser citados os da Espanha (Estatuto de la Victima del Delito) e de Portugal (Estatuto da Vítima), aquele por meio da Lei nº 4/2015 e este por meio da Lei nº 130/2015.
Nos Estados Unidos da América, especificamente, os direitos das vítimas de crimes começaram a ser moldados em esfera federal na década de 1970, com a Lei de Prevenção ao Abuso Infantil (Child Abuse Prevention and Treatment Act, 1974), consolidaram-se com a Victims of Crime Act (1984), e prosseguiram com produções legislativas nas décadas seguintes como a Violence Against Women Act (1994), que visa coibir a violência contra a mulher, e a Justice for All Act (2004), que trata de proteção a vítimas de crimes sexuais, especialmente, no ambiente militar.
Na América do Sul, por sua vez, no ano de 2017 foi promulgada a Lei argentina nº 27.372 (Ley de Derechos y Garantias de las Personas Victimas de Delitos), que trata, dentre outros assuntos, da criação do Centro de Assistência às Vítimas de Delitos.
E no Brasil? Como dissemos no início, vivemos, infelizmente, um momento muito difícil nesta dimensão, um silêncio absurdo. É muito triste constatar que uma política eficiente de tutela dos direitos das vítimas não é realizada, como se o País não fosse um território violento, produtor de milhares de vítimas diariamente.
No País que vivemos, o que não faltam são vítimas de todos os números e tipos. Vítimas de crimes patrimoniais são incontáveis; vítimas de crimes dolosos contra a vida são uma vergonhosa realidade; vítimas de crimes sexuais são inúmeras. Vítimas e mais vítimas.
A questão é tão grave que, lastimavelmente, os brasileiros e as brasileiras já estão tão acostumados em ser vítimas, que nem se importam mais em comparecerem perante as autoridades para noticiarem as infrações penais, a não ser que sejam obrigados.
Por tudo isto, é preciso, de verdade, dar um basta e mudarmos a direção deste horrível cenário. É preciso um estatuto, um pacto, um ato nacional de direitos das vítimas de crimes!
Não sem propósito, um grupo de juristas do País se reuniu para pensar em contribuir na formulação de algumas soluções deste problema, subsidiando a apresentação do PLS nº 65/2016, que trata da proposta de criação do Ato Nacional de Direitos das Vítimas de Crimes, que se encontra tramitando no Senado Federal, aguardando análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Analisando o PLS nº 65/2016 é possível verificar tanto tratamentos comuns em atos legislativos de outros países, quanto dispositivos normativos próprios, como, por exemplo, o Portal da Vítima, forma de garantir à vítima e aos seus familiares, quando fosse o caso, o acesso, a consulta e o alerta sobre seus direitos, bem como a informações específicas quanto ao processo e às medidas de proteção.
Por óbvio, o PLS nº 65/2016 não é um projeto legislativo que resolverá, por si só, o problema da efetividade da tutela dos direitos das vítimas de crimes, até mesmo diante do dinamismo social vivenciado atualmente. Mas, por outro lado, é evidente que um tratamento sério desta problemática questão precisa, pelo menos, passar pela discussão deste projeto, ainda que para criticá-lo e desenvolvê-lo, pois é isto que esta temática necessita.
Não por outra razão, em evento recente tratando do Direito das Vítimas, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), por meio de seu Presidente Manoel Victor Sereni Murrieta e Tavares, assumiu o compromisso não só de lutar pela aprovação deste projeto de lei, mas de conseguir evoluir na própria tutela dos direitos das vítimas no País por entender que esta é, neste momento nacional, uma luta mais do que justa para ser travada!
*Pedro Ivo é Promotor de Justiça do Espírito Santo/ Presidente da Associação Espírito-Santense do Ministério Público.
Artigo originalmente publicado na revista Justiça e Cidadania. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/direitos-das-vitimas-de-crimes-uma-luta-mais-do-que-justa/