Artigo originalmente publicado pela revista Justiça e Cidadania em maio de 2021. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/o-processo-investigatorio-democratico-e-a-constituicao-sob-ameaca-com-os-retrocessos-das-alteracoes-no-codigo-de-processo-penal/
O mês de abril de 2021 ficou marcado pelo lamentável avanço da pandemia de covid-19 no Brasil. Em meio ao cenário de caos imposto pela crise sanitária, com registro de mais de três mil óbitos diários e com o foco das autoridades e da opinião pública voltados para a saúde pública, um tema essencial, mas com tramitação estagnada desde 2018, volta à tona repentinamente envolto em uma turva cortina de fumaça – a proposta de reforma do Código de Processo Penal (CPP).
No dia 13 de abril, mesma data em que o País registrou 3.687 mortes pela covid-19 em um único dia e totalizou 358.718 óbitos desde o início da pandemia, foi apresentado novo relatório preliminar sobre a proposta de reforma do CPP. O texto substitui o parecer apresentado em 2018. Trata-se de Projeto de Lei iniciado em 2010 e que estava parado na Câmara dos Deputados por todo esse longo período.
Além do momento ser considerado inoportuno para a retomada dos debates sobre o CPP, se no documento anterior o relator alcançou a pontos sensíveis, com sugestões de alterações comprometedoras, o substitutivo não foi diferente. Com destaque para o ponto incluído na primeira versão, que sugere restringir a investigação criminal no âmbito do Ministério Público. A previsão foi mantida na nova versão do relatório. A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) acompanha com preocupação todo esse processo, desde o início.
Inspirado na lei italiana, o Código de Processo Penal brasileiro nasceu há quase 80 anos — precisamente, em outubro de 1941. Na época, o sistema processual penal tinha um perfil mais inquisitivo, cabendo apenas à figura do juiz as funções de acusar, defender e julgar. Com o tempo, as sociedades mudaram e, naturalmente, as doutrinas jurídicas de boa parte dos países ajustaram-se às novas relações.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 ancorou a garantia do direito à ampla defesa, ao contraditório e à presunção de inocência. Além disso, a Carta Magna prevê, no art. 129, a competência privativa do Ministério Público para promover a ação penal pública. Além da imparcialidade do juiz, a separação entre acusação e julgador, todas essas são qualidades atribuídas a um sistema processual acusatório, que busca preservar as garantias constitucionais e democráticas.
Embora, na prática, prevaleça a força do texto constitucional, nota-se que a norma que regula o procedimento penal no Brasil não acompanhou por inteiro essa evolução de entendimento. Por isso, a Conamp defende a atualização do nosso Código de Processo Penal, de modo a adequá-lo à realidade contemporânea. Em 2010, a ideia se fez proposta. Iniciado pelo Senado, o Projeto de Lei nº 8.045 chegou à Câmara dos Deputados naquele ano, com intuito de promover uma reforma global ao Código de Processo Penal.
Desde o início, a Conamp participa ativamente para contribuir com essa renovação da lei. Após a instalação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, em 2016, criamos uma comissão interna da entidade, reunindo promotores e procuradores de Justiça, com objetivo de desenvolver um estudo técnico sobre o tema. O documento foi entregue à Comissão Especial e dividido em cinco partes. Para auxiliar no aperfeiçoamento legislativo, a Diretoria da Conamp também compareceu a audiências públicas e sessões da Comissão Especial. Nossos membros também se reuniram com parlamentares, para discutir os principais pontos de ajuste na lei vigente e estiveram em contato com a imprensa, assumindo uma postura marcante no esclarecimento do tema junto à sociedade. Boa parte das ações foi realizada em atuação conjunta, por meio do Gabinete Integrado dos Profissionais de Segurança Pública e do Ministério Público Brasileiro. Uma união de esforços, todos em colaboração para que o resultado final seja o mais próximo dos cidadãos.
Com a publicação do primeiro parecer, surgiu a necessidade de transmutar essa união em mobilização. Isso porque, ao invés de modernizar a lei de 1941 e fortalecer o combate ao crime e à impunidade, o texto propôs retrocessos como a limitação do poder investigatório constitucionalmente reservado ao Ministério Público e confirmado pelo Supremo Tribunal Federal. Uma pauta que, inclusive, já foi discutida por meio de proposição legislativa apresentada e rejeitada pela própria Câmara, em 2013. Após a recente movimentação na Comissão Especial, que ocorre no momento em que o País concentra esforços no combate à pandemia da covid-19, a mobilização é retomada.
Diante do cenário atual da pandemia com número significativo de mortes diárias, a Conamp vê com inoportuna a divulgação de um novo relatório, quando o momento de dor vivido merece, no mínimo e por respeito, toda a atenção daqueles que ocupam as posições de liderança do País. O ato de trazer de volta ao debate a reforma do Código de Processo Penal neste momento traz em si uma sensação de que se busca resolver, sem atrair holofotes, um tema tão caro a toda a população e, assim, mexer em critérios fundamentais, dificultando a atuação de membros do Ministério Público, das forças policiais e do Poder Judiciário.
A consistência e a importância dessa atuação estão presentes em registros históricos disponíveis para consulta em livros, jornais e sites oficiais na Internet. Uma breve pesquisa demonstra o desempenho do Ministério Público ao longo dos anos, sempre dedicado ao cumprimento das atribuições conferidas pela Constituição Federal. Um papel social focado no combate a injustiças, como a garantia de acesso à saúde, o fim do trabalho escravo, e na diminuição de problemas comunitários, como a evasão escolar, entre outros.
No momento em que os brasileiros vivem a maior crise da história, o Ministério Público se reinventou para reagir ao isolamento e dar continuidade na sua atuação jurisdicional, extrajudicial. Foram emitidas recomendações para o devido cumprimento das medidas restritivas, fomos em busca de recursos, lançamos campanhas para obter fomento para a compra de equipamentos de proteção individual e respiradores. Mas, talvez, a maior referência do impacto das nossas atividades seja no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, que complementa a função institucional de defesa da ordem econômica e financeira, da ordem social e da probidade administrativa.
Com o CPP em tramitação, o Gabinete Integrado dos Profissionais de Segurança Pública e do Ministério Público Brasileiro, composto por 16 associações representativas das polícias e do MP, também retoma as atividades. O primeiro passo nesta nova fase é promover uma análise técnica para avaliar os prováveis impactos do novo parecer. Integrante do grupo, a Conamp reafirma o compromisso de lutar pela defesa da higidez do sistema de Justiça. O parlamentar manteve no parecer boa parte dos tópicos abordados diretamente com ele pela Conamp. Questões como a problemática do juízo de garantias e a implementação de mecanismos de investigação mais modernos e menos burocráticos. Em suma, há uma clara concentração de poder nas mãos de poucos.
Certamente, construir uma reforma do Código processual penal é mais do que um desafio, é uma missão, que exige coragem e diálogo. Entendemos haver acertos ao longo do caminho. Porém, os equívocos apresentados representam um risco que poderá, no futuro, superar algum possível ganho, uma vez que agilidade em tramitação por si só não é um sinônimo de eficácia no julgamento de crimes dolosos contra a vida.
Ainda há tempo de dissolver os pontos de discordância. Os parlamentares que compõem a Comissão Especial podem apresentar sugestões. Após esse período, o relatório final será apresentado no prazo de dez sessões legislativas. Portanto, os próximos dias serão de grande empenho, para que, ao fim, o Brasil conquiste uma legislação mais harmoniosa e que verdadeiramente combata a impunidade e a violência, atendendo aos desejos e necessidades da sociedade brasileira.