Artigo originalmente publicado pelo Estadão em 10 de maio de 2021. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/novo-relatorio-do-codigo-de-processo-penal-torna-justica-criminal-mais-engessada-e-burocratica/
Escrito por: Manoel Victor Sereni Murrieta e Tavares, Ubiratan Cazetta, José Antonio Vieira de Freitas Filho, Trajano Sousa de Melo e Edmar Jorge de Almeida
O Brasil precisa atualizar e modernizar a legislação que trata dos procedimentos aplicáveis aos processos penais. Tramita no Congresso Nacional, no entanto, uma proposta de reforma que, se aprovada, tornará o Código de Processo Penal (CPP) menos democrático, mais burocrático e, consequentemente, pior para o sistema de Justiça e para a sociedade.
O tema da reforma do CPP anda a passos lentos no Congresso desde 2010. Agora, quando as atenções se voltam para a maior emergência sanitária da história, alguns grupos tentam resgatar o assunto e, sem grande discussão, impor retrocessos a valores e leis conquistados a duras penas no Brasil para preservar o sistema de direitos e garantias.
Inspirado no modelo italiano, nosso atual CPP entrou em vigor em 13 de outubro de 1941, durante a ditadura de Getúlio Vargas. O processo penal, naquela época, tinha um perfil inquisitivo. Uma só pessoa, o juiz, acusava, defendia e julgava.
Esse modelo, claro, foi alterado com o passar dos anos e com a evolução da sociedade e das instituições brasileiras. A Constituição Federal de 1988, a primeira em nosso país a considerar os direitos e garantias como cláusulas pétreas, relacionou o processo penal à garantia da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência.
Em seu artigo 129, a Carta Cidadã definiu como competência privativa do Ministério Público a promoção da ação penal pública. Além disso, ficaram consolidados princípios como a imparcialidade do juiz e a separação entre acusador e julgador. Essas são características de um sistema processual acusatório que não só estipula no papel, como também busca preservar e efetivar os direitos e garantias individuais dos cidadãos.
Um dos pontos mais críticos da proposta em trâmite é o que restringe a capacidade do Ministério Público de realizar investigações criminais. Esse tema já foi alvo de debate no próprio Congresso Nacional, em 2013, na forma da Proposta de Emenda à Constituição 37 (PEC 37) e foi derrotado, no sentido de preservar a Constituição e a capacidade do Ministério público de zelar pelo interesse público. Depois, em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF), após longo debate, também analisou a questão e concluiu pela legalidade da atuação investigativa do MP. Na ocasião, os ministros ainda definiram, claramente, as condições em que essa atuação pode ocorrer para ser considerada constitucional, tornando o regramento ainda mais claro e explícito.
As ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia apontaram a complementaridade entre os trabalhos do MP e da polícia, que não tem a exclusividade de fazer investigações e de coletar provas. O então decano, ministro Celso de Mello, foi quem propôs a tese aprovada pelo plenário do Supremo, com a seguinte redação:
“O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade — sempre presente no Estado democrático de Direito — do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição.”
No dia 13 de abril deste ano, um novo parecer foi apresentado na Câmara dos Deputados para a proposta de reforma do CPP. Os retrocessos que impediram a versão entregue na legislatura anterior de prosperar, no entanto, permanecem no texto. Além da limitação investigativa do MP, o que também é proposto para o caso de proposição de Acordo de Não Persecução Penal, ainda tenta-se implementar uma espécie de juízo absoluto, o “juízo de garantias”, que não só torna o processo mais moroso e burocrático — na contramão dos anseios repetidamente manifestados pela sociedade e pelos integrantes do sistema de Justiça —, como também menos democrático, concentrando muito poder nas mãos de poucos.
Outro ponto de preocupação é com relação aos riscos que o relatório proposto apresenta para o sistema processual penal, com a sugestão de alterações que confundem preceitos constitucionais e criam barreiras às fases de investigação, processo e julgamento. O que se observa claramente na previsão de prazo menor, de dois anos, para conclusão de investigação policial, independentemente do tipo de crime. Também criou um novo instituto, o da investigação defensiva, mas sem especificar as limitações legais para isso.
A iniciativa de estudar a legislação e propor sua adequação à contemporaneidade é louvável e necessária. Porém, o propósito de ajuste não pode se sobrepor, de modo algum, aos direitos fundamentais, à defesa da vítima nem à garantia do devido processo legal. O objeto principal da elaboração de uma norma como o CPP é a proteção à vida e à integridade da pessoa vítima de um crime. Por isso, criar barreiras que burocratizam o processo de coleta de provas — seja ao dificultar a obtenção de interceptações, seja ao impor regras muitas vezes irrealizáveis para o reconhecimento de suspeito — se traduzem, de fato, em retrocesso e desrespeito a essa vítima. Um sinal claro de se notar nas alterações propostas para o Tribunal do Júri.
Uma reforma, nos moldes como a proposta, ameaça a soberania desse colegiado popular ao proibir o acesso aprovas obtidas na fase de investigação policial e ao criar fases de votação. O texto também restringe a decisão a um entendimento uníssono entre os membros, lançando por terra a garantia do sigilo de voto e colocando em risco a segurança dos julgadores.
A reforma do CPP, que estava adormecida há uma década, desperta, naturalmente ainda atordoada, e dispõe para a sociedade uma lei que, em muitos pontos, confunde conceitos, atribuições e procedimentos. Assim como propõe uma espécie de hierarquia entre os integrantes do Tribunal do Júri, o parecer apresentado incorre na inversão de posicionamentos entre órgão controlador — no caso da ação penal, o Parquet — e controlado, promovendo uma usurpação de legitimidade. E também trata de temas já devidamente ordenados no âmbito do órgão ministerial, por parte do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Além de esse ser um momento inoportuno para a retomada dos debates sobre o CPP, é preciso que a discussão seja feita às claras e caminhe no sentido de aprimorar e modernizar a legislação, não de eliminar os avanços democráticos conquistados a partir da Constituição de 1988 e regredir a uma realidade típica de regimesautoritários nem de sucumbir aos interesses corporativos de alguns grupos que, à revelia do bem comum, tentamangariar mais poder para si.
Para contribuir com o debate e explicar para a sociedade os problemas do atual projeto de reforma do CPP, as entidades representativas do Ministério Público elaboraram uma cartilha que elenca 16 fatos sobre a proposta em tramitação e deixam claro que, se ela for aprovada, a impunidade aumentará no Brasil. Esses16 itens são os seguintes:
- Limitação do poder investigatório do Ministério Público (art. 19, § 3º).
- Estabelece, como regra, prazo de duração de inquérito policial (art. 34), desvinculado da complexidade do caso investigado.
- Usurpação de função do Ministério Público no Acordo de Não Persecução Penal (art. 39, caput e § 7º).
- Invasão da autonomia do Ministério Público no tocante à apresentação de ANPP – Acordo de Não Persecução Penal, quando lhe retira a possibilidade de indicar o local da prestação dos serviços e o destinatário das prestações pecuniárias (art.39, § 4º, incisos I e II)
- Permissão para advogados investigarem sem controle do Estado (arts. 44/49, c.c. art. 13) e sem qualquer consideração pela vítima.
- Proibição da condenação baseada em indícios/fragilização do combate ao crime organizado (arts. 197, §§ 2º e3º).
- Burocratização da prova de reconhecimento de pessoas (art. 231, inciso II).
- Dificulta a interceptação telefônica e de dados como método investigativo (arts. 283, II).
- Retirada de fase da pronúncia do Tribunal do Júri, que julga os crimes intencionais contra a vida, como homicídios (Seção I do Capítulo VI).10. Proibição de menção de prova policial no Tribunal do Júri (que julga os crimes intencionais contra a vida, como homicídios; art. 452, inciso I).
- Alterações no procedimento do tribunal de júri que dificultam o processo e eliminam, na prática, o sigilo do voto (votação no Tribunal do Júri; arts. 456/476).
- Uso incorreto da prática restaurativa penal nos crimes contra a vida (art. 452, II e IV, c.c. arts. 114/123).
- Proibição ao Ministério Público de ter instrumento imediato para a reversão de soltura do réu nas prisões cautelares, como a preventiva (art. 554, parágrafo único).
- Legitima o delegado de polícia, sem qualquer justificativa baseada em interesse público e nas capacidades institucionais, a exercer concorrentemente à vítima, pedido de revisão do arquivamento do inquérito policial ou das Peças de Informação feito pelo MP (art.40, § 1º)
- Vedação de valoração dos elementos informativos constantes do ato de apresentação na audiência de custódia (art.618, § 5º)
- Retirada do Ministério Público, do dispositivo atinente à propositura da proposta de suspensão condicional do processo, dando margem a interpretações de que referido instituto de política criminal não é exclusivo do titular da ação (art.323)