Foi publicada em 26.10.2021 a Lei Federal 14.230/21, alterando a Lei de Improbidade Administrativa em diversos pontos. Pelo fato de as alterações trazerem muitas dificuldades ao combate à improbidade administrativa, a sociedade civil, parcela significativa da classe política (como diversos vereadores de Montes Claros) e entidades do Ministério Público haviam solicitado ao Congresso Nacional e ao Presidente da República a rejeição da lei. Apesar disso, não foram atendidas.
Mas o que seria improbidade administrativa? Em linguajar simples, comportamento intencional de agente público, no exercício ou a pretexto de suas funções, que acarrete enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário ou violação dos princípios constitucionais na administração pública (moralidade, legalidade, eficiência, publicidade, impessoalidade etc.).
São exemplos de improbidade o desvio de recursos públicos por agentes políticos ou a cobrança de propina para enriquecimento pessoal; a contratação de empresa, por agente público, por preço acima do de mercado, sem fazer licitação obrigatória; a conduta do servidor público que deixa de prestar contas sobre recursos que recebeu; a prática de nepotismo na administração pública. E qual a punição aplicável? Dependendo da gravidade da conduta, além do ressarcimento do dano quando houver, varia desde multa até suspensão dos direitos políticos e perda da função pública.
É certo que algumas modificações na antiga lei de 1992 eram necessárias para evitar que irregularidades fossem tratadas como improbidade, de forma a evitar que o agente público mal orientado seja confundido com o mal intencionado, e, assim, garantir mais segurança jurídica aos gestores. Nada contra aprimorar a lei. No entanto, a pretexto de corrigir erros, foram inseridas no texto legal muitas modificações que favorecem quem está conscientemente agindo contra a probidade na gestão de recursos públicos e na condução da atividade administrativa. Aos exemplos.
Antes, todo ato doloso (intencional) que violasse princípios da administração pública e fosse praticado com má-fé poderia ser considerado ato de improbidade, com base no artigo 11 da legislação. Com a nova lei, houve a restrição significativa dessa hipótese. Caso os atos violadores a princípios da administração não estejam descritos no dispositivo – e o rol de atos ali previstos foi significativamente enxugado -, não poderão ser enquadrados como improbidade administrativa. O que chama atenção é que isso ocorrerá mesmo se tais atos forem também considerados atos criminosos, como torturar, assediar sexualmente, usar dinheiro da COVID para reformar estádio de futebol, descumprir ordem judicial, entre outros exemplos. Ora, como algo praticado por agente público, que era e continua sendo crime, sujeitando seu autor até mesmo à prisão, pode deixar de ser ato de improbidade? Incoerente e inadmissível
Antes, o Ministério Público podia investigar casos complexos de improbidade administrativa (aqueles que demandam quebra de sigilos bancários, fiscais, inúmeras oitivas, perícias e, por vezes, até colaboração internacional contra lavagem de dinheiro) pelo tempo necessário ao esclarecimento de tais questões. E, se houvesse algum abuso na duração das investigações, quem se sentisse prejudicado poderia recorrer ao Judiciário para interrompê-las. Com a nova lei, o prazo máximo para investigar é de dois anos. Pouco para investigações complexas. E, pior, menor que o prazo prescricional para entrar com a ação de improbidade, que é de 8 anos. Total falta de lógica e proporcionalidade: pode-se entrar com a ação em até oito anos, mas apenas se pode investigar por dois. Imagine se isso fosse utilizado para investigações de crimes. Um despautério.
Antes, uma vez iniciado o processo, não havia prazo máximo para o juiz sentenciar. Agora será de 4 anos. Na prática, isso levará à extinção de muitos processos, sobretudo aqueles versando sobre condutas mais graves e complexas, pois não há condições estruturais de os juízes no Brasil conseguirem julgar ações dessa natureza nesse prazo. Fora que manobras defensivas de caráter protelatório – empregadas via de regra por quem não é inocente, e agora incentivadas pela nova legislação – atrasarão a marcha de futuros processos para que eles tenham o mesmo fim: a sepultura.
O que fazer agora? Ora, desde há muito o Supremo Tribunal Federal reconhece que inovações legislativas absurdas, como as citadas, ferem os princípios constitucionais da proibição da proteção deficiente e da vedação do retrocesso. Em síntese, se a Constituição determinou (art. 37, caput e § 4º) que a probidade e a moralidade administrativa fossem protegidas pelo legislador, não pode o Congresso Nacional aprovar lei que, na prática, impeça a proteção daqueles bens jurídicos, ou que configure patente retrocesso na proteção a eles antes conferida.
Espera-se, portanto, que o Ministério Público, suas entidades associativas e até mesmo os partidos políticos que votaram contra essas modificações na legislação estejam unidos para comparecerem ao Supremo Tribunal Federal, com urgência, postulando a declaração da inconstitucionalidade de parte das novas disposições legais. Essa não é a vontade pessoal destes articulistas, mas sim a vontade do povo, que elegeu aqueles que escreveram a Constituição. E, certamente, também é a vontade de muitos políticos comprometidos com a defesa do bem comum.
Um exemplo histórico traz esperança. Em 2002, na véspera do Natal e da transição de um ex-presidente para outro, surgiu uma legislação que alterava o artigo 84 do Código de Processo Penal para dizer que ações de improbidade contra certos agentes políticos, inclusive para aqueles não mais ocupantes de seus cargos, deveriam ser julgadas perante o tribunal com competência para julgar criminalmente aquelas autoridades.
Na prática, aquilo abarrotaria os tribunais de ações que eles não teriam condições de julgar e impediria membros do MP na primeira instância de investigar as referidas autoridades. Mais impunidade, certamente.
Ocorre que o Ministério Público não aceitou passivamente aquela legislação inconstitucional. Acima de todos, mesmo de legislações de véspera de Natal, está a Constituição e com base nela suscitou-se perante o Judiciário, seja nas instâncias inferiores, seja no próprio STF, a inconstitucionalidade da modificação. Em menos de três anos, o STF julgou procedente a ADI 2797, reconhecendo que, de acordo com a Constituição, investigações e processos deveriam permanecer na primeira instância. Venceu a sociedade e venceu a Constituição
Também se pode vencer agora: difícil imaginar que o STF aceitará que condutas criminosas, como agente público descumprir dolosamente ordem judicial, deixem de ser atos de improbidade. Ou que processos judiciais sobre condutas gravíssimas sejam extintos apenas porque suas investigações duraram mais que dois anos e suas sentenças levaram mais que quatro
Que não falte coragem para que, diante deste novo desafio, os juízos, os tribunais e o STF sejam acionados, pelas instituições legitimadas, para lembrar que, em matéria de defesa da moralidade e da probidade administrativa, acima da vontade dos articulistas e dos legisladores, existe uma vontade maior. A vontade da Constituição.
Felipe Caires, Promotor de Justiça, e Marcelo Malheiros Cerqueira, Procurador da República, são membros do Ministério Público em Montes Claros/MG