I – A admissibilidade da retroatividade da lei mais benéfica no âmbito da Proteção à Probidade Administrativa: do princípio da concordância prática e proteção contra o retrocesso legislativo relacionado aos atos de corrupção.
A proibição de praticar atos de improbidade administrativa é uma autêntica personificação do princípio republicano e dos corolários da moralidade e da impessoalidade no exercício das funções e atividades públicas, revelando-se como fruto de sucessiva e pendular inovação, com reestruturação de fórmulas normativas que visavam, cada uma a seu modo e conforme os respectivos contextos históricos, tornar efetiva a responsabilidade dos agentes públicos.
Até mesmo sob o enfoque jurídico-zetético, parece ser consenso que o direito positivo é elástico e, por isso, submete-se a importantes reformulações – sobretudo quando tais reformulações são concordantes à realidade plasmada a partir do marco constitucional vigente (supremo e conformador).
À vista disso, é necessário pontuar – conquanto evidente – que são os vícios seculares na prática administrativa (tais como o clientelismo, o favoritismo e o nepotismo) os elementos a preconizar a recorrente necessidade de modificar e aperfeiçoar os instrumentos legais que promovem o enfrentamento das práticas de corrupção no aparelho e organização do Estado.
Depreende-se da atual ordem constitucional a existência de um sistema geral de responsabilização engendrado sobre quatro institutos que mantêm relações de imbricação lógico-jurídica, quais sejam: bem jurídico, ilícito, processo e sanção. É a partir desses elementos que se torna possível dissecar o fenômeno normativo que resulta na positivação de mecanismos de prevenção, dissuasão e punição de determinadas condutas antijurídicas. Efetivamente, a responsabilização dos agentes públicos pode se disseminar em múltiplas facetas, assumindo colorido ora administrativo, ora cível, ora penal ou mesmo puramente moral. Tais vertentes, que condizem com a natureza do ato e sua potencialidade lesiva, possibilitam a aplicação de sanções variáveis em grau e em essência.
A incidência de responsabilização em diversas categorias decorre da proteção da probidade, estrutura axiológica que conforma o agir dos agentes públicos. É a probidade o bem jurídico catalisador do intitulado “Direito Administrativo Sancionador”, sub-ramo didaticamente autônomo que tem por objetivo o estudo de regras e princípios que orientam a regular aferição dos ilícitos e a eventual aplicação das sanções correspondentes.
A legislação sancionadora administrativa extrai da matriz ética constitucionalizada os recursos e parâmetros necessários a projetar e desbastar as práticas que vulneram o sobredito bem jurídico, emergindo o Direito Administrativo Sancionador, para além de preservar a honestidade, o zelo e a lealdade institucional, como uma resposta alternativa à funcionalização extrema da tutela penal.
Nessa ordem de ideias, o Direito Administrativo Sancionador, tal como quaisquer demais manifestações legislativas infraconstitucionais, submete-se ao regime de direitos e garantias fundamentais, fundando em tais preceitos a legitimidade e a juridicidade de seu poder punitivo. Nenhuma outra ilação parece encontrar guarida no quadro juspolítico contemporâneo, considerando especialmente o paralelo entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal, ambos inerentes ao poder punitivo do Estado.
A respeito, com maestria Sarah Merçon-Vargas leciona que:
Os sistemas punitivos podem ser baseados em graus diferentes de garantismo. Dentro de um Estado de Direito, em que se tem como características fundamentais a estrita legalidade e submissão à jurisdição, muitas das garantias estão entrelaçadas, em especial as garantias processuais, de modo que, na prática, não há um grande número de sistemas garantistas. Na ordem constitucional brasileira, em que há um rol de garantias previstas previstos na Constituição Federal e também normas internacionais de direitos humanos, em especial a Convenção Americana de Direitos Humanos […] a variação da gradação possível tem espectro delimitado, pois não se pode prescindir do reconhecimento e aplicação do catálogo de garantias que compõem o sistema.[1]
Cirúrgico gizar, então, que a mensagem deôntica do constituinte, por meio do artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República de 1988, é a imperiosidade de resguardar direitos e garantias fundamentais não só na aplicação da lei penal, mas de quaisquer manifestações do poder punitivo estatal. Aliás, é a partir desse panorama e da proximidade ontológica entre ilícitos penais e administrativos que algumas vozes afirmam que as infrações administrativas devem ser condicionadas por alguns dos princípios fundamentais do Direito Penal, como o princípio da legalidade e os substratos da tipicidade e da retroatividade da lei mais favorável.
Com o respeito e consideração aos que nutrem posição diversa, entendo pertinente reconduzir a repressiva administrativa à lógica garantística da Constituição da República, em observância ao princípio da concordância prática, permeando o Direito Administrativo Sancionador por garantias cuja natureza são as mesmas das imanentes ao Direito Penal.
Inexistem dúvidas de que o princípio da legalidade era (e ainda é) o pórtico fundamental do Direito Penal. Esse princípio, em síntese, é um manifesto de envergadura constitucional que exprime a segurança jurídica ao estatuir que apenas condutas tipificadas antes da concretização dos fatos é que podem ser consideradas ilícitas e, em virtude disso, passíveis de sanção (artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição da República).
O princípio da anterioridade, enfatizado no parágrafo anterior, é expressão e desdobramento da legalidade, cujo fundamento de validade é o próprio Estado de Direito e a Dignidade da Pessoa Humana, paradigmas do ordenamento constitucional vigente. A correlação entre legalidade e anterioridade opera sob uma perspectiva lógica e confere suporte para a interpretação das normas subjacentes: a lei penal incriminadora deve ser anterior ao fato; ninguém pode ser apenado se no momento da ação a conduta não estava tipificada. Por consequência, o autor também não pode ser prejudicado com o agravamento, quer quantitativo quer qualitativo, quando houver posterior gravame do fato por lei.
Logo, a extratividade da lei penal constitui medida excepcional, admitida em situações especialíssimas, sendo uma delas a retroatividade benéfica: quando uma lei torna lícita ou menos gravosa a conduta considerada criminosa.
Considerando o semelhante caráter repreensivo, mesmo com a mitigação da legalidade nessa esfera, impõe-se na perspectiva do Direito Administrativo Sancionador a descrição prévia do núcleo da conduta vedada, de modo a atrair, reflexivamente, os efeitos operados pela anterioridade, inclusive quanto à retroatividade da lei mais benéfica.
Aliás, também importante evidenciar mais um tema afeto ao Direito Penal e que, por ricochete, torna-se relevante: o princípio da continuidade normativo-típica. No Direito Penal, o instituto relaciona-se com a sucessão da lei penal no tempo e significa a manutenção do caráter proibitivo da conduta, mas com o deslocamento do conteúdo ilícito para outro tipo. A intenção do legislador é que a conduta permaneça criminosa, mas em outra estrutura ou eixo legal; desse modo, enquanto na “abolitio criminis” tem-se a supressão formal e material da figura criminosa, o princípio da continuidade normativo-típica corresponde a exclusão formal do tipo, pois o fato (conduta) permanece punível.
A intersecção entre Direito Penal e Administrativo Sancionador novamente revela a aplicabilidade de um instituto próprio daquele sistema neste último. Sabe-se que a LIA não prevê crimes, mas infrações de natureza cível que podem seguir a mesma lógica: a supressão topográfica da infração administrativa/cível não implica, por si só, em sua revogação, desde que a conduta descrita passe a ser disciplinada por outro dispositivo de forma a permanecer considerando-a antijurídica.
É o caso, por exemplo, do cometimento de conduta dolosa voltada a fraudar um determinado procedimento licitatório que, embora logre sucesso na concretização da contratação escusa de certa pessoa pela administração pública, não produz perdimento patrimonial ao erário. Se antes da edição da Lei nº 14.230/2021, tal conduta configurava a prática de ato de improbidade administrativa com incidência no artigo 10, inciso VIII[2], da Lei nº 8.429/1992, após as alterações promovidas configuraria a figura prevista no art. 11, inc. V, daquela mesma norma. Tem-se a continuidade normativo-típica, uma vez que frustrar a licitude do (ou fraudar o) processo licitatório, sem a geração da perda patrimonial, assim como no texto original revogado, persiste, quando cometido dolosamente, configurando ato de improbidade administrativa, só que na figura prevista no art. 11, inc. V, da LIA.
É, pois, sob o influxo dos ares democráticos da Carta de 1988, que se deve aplicar a todas medidas que traduzem o jus puniendi estatal, inclusive as ações sancionadoras do Direito Administrativo, a disposição contida no artigo 5º, inciso XL, da Constituição da República, a fim de que as alterações normativas que resultem em melhor situação para o sancionado sejam observadas.
Relevante consignar que conquanto o dispositivo constitucional sobredito mencione “lei penal”, isso, por si só, não desacredita a conclusão aqui defendida. O legislador constituinte gizou o anseio mais expressivo no momento da elaboração do texto maior, felizmente apontando que “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados” (artigo 5º, § 2º, CR/88). Se a seu tempo o Direito Administrativo Sancionador gozasse do corpo e contorno próprio que detém hoje, é possível que a redação fosse outra. Ademais, cumpre ressaltar que embora o intérprete não detenha qualquer poder inventivo, é seu papel ponderar os fatos contemporâneos à elaboração da norma, o momento histórico, o ambiente social, as condições culturais e políticas sob as quais surgiu e o conjunto de motivos ocasionais que serviram de justificação para regular a hipótese, tudo isso com o escopo de corporificar e perfazer a “espinha dorsal” da Constituição da República Federativa do Brasil: os fundamentos e os objetivos da República, bem como as garantias e direitos fundamentais daqueles dos quais, em conjunto, formam o titular do poder (qual seja, o povo).
Não foi raciocínio análogo empregado pela Suprema Corte ao enfrentar a legitimidade da prisão do depositário infiel (uma das então situações passíveis de prisão civil no Brasil)? A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, prevê que ninguém será preso por dívidas – por isso, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o texto da Constituição, afastou a possibilidade de prisão nesse caso (prevista pelo art. 5º, inciso LXVII, CR/88) e editou a Súmula Vinculante nº 25 (“é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”).
Ora, se uma disposição afirmativa da Constituição foi suspensa em prol da consecução de direitos fundamentais (no caso, o direito de liberdade), com muito mais razão deve ser elastecida a previsão constitucional que avaliza a aplicação da lei mais benéfica, ainda que num primeiro momento restringia-se a esfera penal. A propósito, a i. Ministra Regina Helena Costa, em sede de julgamento do Recurso em Mandado de Segurança nº. 37.031/SP brilhantemente consignou que:
“a retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal. Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator. Constato, portanto, ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa”. (Destacamos).
Em sentido semelhante, “a norma administrativa mais benéfica, no que deixa de sancionar determinado comportamento, é dotada de eficácia retroativa” (REsp 1.402.893/MG, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 11/04/2019, DJe 22/04/2019).
Isso posto, com fundamento nessas digressões doutrinárias e no posicionamento jurisprudencial, é salutar reconhecer a retroatividade da lei benéfica (e outros institutos afetos ao Direito Penal) na seara do Direito Administrativo Sancionador, considerando a similaridade punitiva de ambos os regimes. É necessário, porém, que a aplicabilidade respeite os pressupostos mínimos do atual sistema constitucional (em que a Constituição da República ocupa o centro do ordenamento jurídico) e, entre outros, à luz princípio da concordância prática (de modo a vedar que interpretação constitucional implique em prejuízo total de uma norma em detrimento de outra), conforme passo a dissecar doravante.
II – O novo sistema de responsabilização proposto pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021 à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade: considerações práticas e evidências de vício de inconstitucionalidade.
O impacto da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, que alterou substancialmente a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), trouxe à tona, novamente, o discurso sobre a retroatividade da lei mais benéfica – especialmente em vista da inserção do parágrafo quarto ao artigo primeiro desse diploma, que doravante pontifica: “aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”.
Neste ponto, importante realçar que a LIA (Lei 8.429, de 2 de junho de 1992) possui feição primariamente preventiva e punitiva (não obstante também concentre natureza reparatória), de responsabilização dos agentes públicos e terceiros. Essa norma integra o microssistema de tutela à probidade e encontra fundamento constitucional e em tratados na ordem internacional – mormente a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (ou “Convenção de Mérida”), promulgada pelo decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006.
Nesse contexto, não obstante a retroatividade da lei mais benéfica seja adequada no âmbito do Direito Administrativo Sancionador (especialmente considerando os direitos e garantias fundamentais), é necessário compatibilizá-la com a proteção contra o retrocesso legislativo relacionado aos atos de corrupção (consoante dispõe o artigo 65, item 2, da referida Convenção) e com os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, tanto como instrumentos limitadores dos excessos e abusos dos Estados, mas também vertentes contra a proteção insuficiente dos direitos fundamentais (dentre os quais se incluem a proteção ao patrimônio público e o direito à gestão pública proba).
Dentre as diversas reformulações propostas pela Lei nº 14.230/2021, e que já tem provocado acaloradas discussões na comunidade jurídico, destacam-se:
a) supressão dos atos culposos de improbidade administrativa, doravante apenas as condutas dolosas são punidas (artigo 10);
b) o prazo de suspensão dos direitos políticos é majorado para até 14 anos, mas o valor máximo das multas aplicáveis foi reduzido em todos os casos (artigo 12); e,
c) as regras de prescrição foram alteradas, passando a prevalecer o prazo único de 8 (oito) anos contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessar a permanência (artigo 23).
No entanto, é na configuração dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios norteadores da administração pública, antes elencadas em rol exemplificativo, mas que, segundo o novo texto apresentado pela Lei 14.230/2021, resumir-se-ão tão somente aquelas hipóteses listadas no texto da lei (artigo 11).
Ora, na própria dicção da novel lei, percebe-se que o Direito Administrativo Sancionador é Constitucionalizado, daí valendo a mesma crítica oriunda do garantismo hiperbólico monocular de Douglas Fischer[3]: os anseios de segurança e justiça da sociedade devem ser atendidos de forma justa e adequada também pelo Direito Administrativo Sancionador.
Se por um lado, na tessitura dessas noções e em epítome, parece-nos plenamente justificável admitir a integração e aplicabilidade de princípios “próprios” do Direito Penal ao catálogo de metanormas do Direito Administrativo Sancionador, de outro, impõe-se ao intérprete o dever de coordená-los com o progressivo ajustamento da interpretação jurídica dos institutos deste ramo especializado, sem perder de vista valores de envergadura constitucional que inspiram todo o sistema jurídico pátrio.
O sistema de responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa, que constitui o mais relevante segmento do Direito Administrativo Sancionador e mecanismo anticorrupção no Direito Brasileiro (ao lado de outras normas, como a Lei de Improbidade Empresarial – Lei nº 12.846/2013), compatibiliza-se com o garantismo oriundo da Democracia Constitucional, submetendo-se a princípios constitucionais da legalidade e anterioridade, inclusive para possibilitar a retroatividade da lei sancionatória administrativa mais benéfica, desde que compatível com a proteção contra o retrocesso legislativo relacionado aos atos de corrupção e com os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, que a um só tempo atuam como instrumentos limitadores dos excessos e da proteção insuficiente pelo Estado.
A par deste raciocínio, é inconteste que o texto trazido pela Lei nº 14.230/2021, quando pretende restringir a configuração dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios norteadores da administração pública tão somente àqueles taxativamente previstos nos incisos do art. 11 da Lei nº 8429/92, mostra-se incompatível com o texto constitucional. Explico.
Mais diretamente, dita restrição, trazida pela novel lei, viola os deveres de congruência e equivalência, apresentando-se desarrazoada, a ponto de pretender que uma série de condutas dolosas, previstas como crimes e também praticadas por agentes públicos no exercício de suas funções, simplesmente sejam ignoradas pelo direito administrativo sancionador.
Vejamos o exemplo de um policial penal que, no exercício de suas funções, nas dependências de um estabelecimento prisional, dolosamente, venha a submeter um detento, sob sua guarda, com o emprego de violência (choques elétricos), a intenso sofrimento físico, como forma de causar-lhe castigo pessoal, em decorrência deste haver lhe dirigido palavras de baixo calão. Trata-se de um claro exemplo da prática do crime de TORTURA, de que trata da Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997 – equiparado a hediondo por força do artigo 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990.
Em que pese o alto grau de repulsa de que é merecedora tal conduta, caso venha a vigorar a interpretação de que o rol previsto nos incisos do art. 11 da LIA seria taxativo e não exemplificativo, como pretende a “letra fria” da Lei 14.230/2021, ter-se-á a inusitada situação dela (a prática de tortura cometida por agente público, no exercício de suas funções) não configurar o cometimento de ato de improbidade administrativa, isenta de qualquer incidência da Lei nº 8.429/92, já que não se amolda a qualquer das figuras previstas no dito dispositivo.[4]
Outra conduta, também digna de destaque e envolvendo a mesma celeuma, é a de agente público que, agindo dolosamente, no exercício de suas funções, procede à obtenção de prova, em procedimento de investigação, por meio manifestamente ilícito, inclusive dela fazendo uso, em desfavor do investigado, com absoluta ciência de sua ilicitude. Preciso exemplo de crime de ABUSO DE AUTORIDADE, tipificado no art. 25 da Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019, mas que não se enquadra em nenhuma das figuras previstas nos incisos do art. 11 da LIA.
Data venia, apenas com a citação destes dois exemplos (embora outros muitos permite-se imaginar) é possível demonstrar a existência de descompasso entre a norma e a realidade regulada, já que no atual contexto jurídico mostra-se destituído de causa constitucional o não reconhecimento de que condutas dolosas como as retro exemplificadas, inclusive tipificadas como crimes, possam submeter-se à incidência dos comandos da Lei de Improbidade Administrativa, simplesmente porque não se enquadram em nenhuma das hipóteses previstas nos incisos de seu artigo 11 (“razoabilidade e igualdade se apresentam como dois lados de uma mesma moeda, no sentido de impedir a utilização de critérios discriminatórios arbitrários ou aleatórios”[5]).
Como muito bem aponta Roberta Pereira Negrão Costa[6], da razoabilidade derivam os deveres da congruência – “harmonização das normas com suas condições externas de aplicação” –, e da equivalência – “relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona”.
Se os agentes públicos que desenvolvem condutas como aquelas, no exercício de suas funções públicas, submetem-se ao ius puniendi estatal na esfera penal, não há razões que justifiquem a não sujeição também às sanções pertinentes ao artigo 11 da LIA, previstas no artigo art. 12 daquele mesmo dispositivo. Logo, não há razoabilidade, porque ofendido o dever de congruência.
A medida adotada não é equivalente ao critério que a dimensiona. Ora, se a causa nuclear reside no cometimento de condutas dolosas por agente público que atentam contra os princípios da administração pública, violando os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade[7] (critério), a sujeição de outras, que não aquelas elencadas nos incisos do art. 11, desde que se enquadrem ao disposto no caput, às sanções trazidas pela LIA (medida) se justifica, pois o mesmo interesse público que permite a primeira também se aplica in casu. Destarte, conclui-se que a admissão do rol do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa como taxativo não é razoável, porque vitupera o dever de equivalência.
Nessa linha de intelecção, tem-se que, à luz da Constituição da República de 1988, a alteração legislativa promovida no artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa é inconstitucional, por violar o postulado da razoabilidade e também o da proporcionalidade, especialmente sob o viés da proibição de proteção deficiente (derivado da doutrina constitucional alemã “untermassverbot”).
A atual redação do caput do dispositivo propõe uma alternativa que condiciona a insuficiência da tutela administrativa sancionadora. Já sustentamos em outra oportunidade – e reafirmo no presente esboço – que a proteção do patrimônio público e de uma gestão pública honesta integram o rol de direitos fundamentais, posto se tratarem do meio pelo qual se atinge o bem comum, a igualdade substancial e a justiça social (e, nessa perspectiva, como não a perceber radicada na concretização da dignidade da pessoa humana?). Logo, se a proteção deferida é inadequada e ineficaz, a nenhuma outra conclusão se pode chegar, do ponto de vista metodológico, que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito – e, por consequência, inconstitucional.
Com isso, perceba-se que, malgrado admitir a retroatividade da lei mais benéfica no âmbito do Direito Administrativo Sancionador (e, mais especificamente, no regime de tutela à Probidade Administrativa), especialmente por força do artigo 5º, inciso XL, do Texto Maior, é necessário partir do pressuposto que a lei benéfica guarde compatibilidade com a Constituição e que, ainda que compatível, observe o princípio da concordância prática, de modo que a aplicação de uma norma constitucional realize-se em conexão com a totalidade das normas constitucionais, interpretando-as em unidade.
Assim, sem prejuízo da análise sobre os inúmeros impactos da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021 (ou melhor, na reformulação do sistema de responsabilização pelo ato de improbidade administrativa), infere-se neste incipiente momento que a atual estrutura do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa não é compatível com a Constituição da República de 1988, o que impede a produção de efeitos – o que desabilita, neste aspecto, a retroatividade.
III – Considerações Finais.
Longe de pretender esgotar o tema – pelo contrário, tão somente iniciando o debate sobre um dos vários desdobramentos práticos e teóricos do novo sistema de responsabilização ventilado pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021 – a proximidade ontológica entre ilícitos penais e administrativos, assim como a estrutura punitiva do Direito Administrativo Sancionador, habilitam a aplicabilidade de institutos imanentes ao Direito Penal (como a retroatividade da lei mais benéfica, o princípio da continuidade normativo-típica, etc), com fundamento nos paradigmas do ordenamento constitucional vigente.
É importante, porém, ressaltar que cabe a mesma crítica oriunda do garantismo hiperbólico monocular, de modo que a tutela de direitos de (potenciais) sancionados não frustre os anseios de segurança e justiça. A bem da verdade, a própria Constituição dá instrumentos para que os direitos, garantias e deveres por si previstos se harmonizem: é o princípio da concordância prática, instrumento importantíssimo na hermenêutica constitucional.
Logo, o intérprete (quer no âmbito sancionador administrativo, quer penal e em qualquer outro), deve partir dessa realidade, inafastável no cenário jurídico contemporâneo, calcado no pressuposto basilar da constitucionalidade da lei. Ora, a lei inconstitucional não pode retroagir, mormente por que não é apta a produzir efeitos.
A Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, no que diz respeito à nova tipologia do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa, é inconstitucional quando torna taxativo o rol que outrora era exemplificativo dos atos de improbidade que atentam contra os princípios da Administração Pública. A inconstitucionalidade é aferida ante a violação dos postulados da razoabilidade (uma vez que ofende o dever de congruência e o dever de equivalência) e da proporcionalidade (já que é desproporcional em sentido estrito por proteger, de forma deficiente, o patrimônio público e o direito a gestão pública proba).
Referências bibliográficas:
COSTA, Roberta Pereira Negrão. Proporcionalidade: uma clarificação do conceito. Revista da Advocacia-Geral da União. v. 8, n. 22, 31 dez. 2009. Disponível em: https://seer.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/256. Acesso em 4.11.2021.
FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 28, mar. 2009. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html. Acesso em: 04.11. 2021
MERÇON-VARGAS, Sarah. Teoria do Processo Judicial Punitivo Não Penal. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.
[1] MERÇON-VARGAS, Sarah. Teoria do Processo Judicial Punitivo Não Penal. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 28.
[2] Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: (…).
VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente;
[3] De acordo com o Procurador Regional da República na 4ª Região e mestre em Instituições de Direito e do Estado pela PUC-RS, Douglas Fischer, “Não temos dúvidas: a Constituição Federal brasileira é garantista e assenta seus pilares nos princípios ordenadores de um Estado Social e Democrático de Direito (…). Para nós, significa que a compreensão e defesa dos ordenamentos penal e processual penal também reclamam uma interpretação sistemática dos princípios, regras e valores constitucionais para tentar justificar que, a partir da Constituição Federal de 1988, há realmente novos paradigmas influentes em matéria penal e processual penal. Por esse espectro, importa que, diante de uma Constituição que preveja, explícita ou implicitamente, a necessidade de proteção de determinados bens jurídicos e de proteção ativa dos interesses da sociedade e dos investigados e/ou processados, incumbe o dever de se visualizarem os contornos (integrais, e não monoculares, muito menos de forma hiperbólica) do sistema garantista. Precisamos ser sinceros e incisivos (sem qualquer demérito a quem pensa em contrário): têm-se encontrado muitas e reiteradas manifestações doutrinárias e jurisprudenciais com simples referência aos ditames do ‘garantismo penal’, sem que se compreenda, na essência, qual a extensão e os critérios de sua aplicação. Em muitas situações, ainda, há distorção dos reais pilares fundantes da doutrina de Luigi Ferrajoli (quiçá pela compreensão não integral dos seus postulados). Daí que falamos que se tem difundido um garantismo penal unicamente monocular e hiperbólico, evidenciando-se de forma isolada a necessidade de proteção apenas dos direitos dos cidadãos que se veem processados ou condenados. Relembremos: da leitura que fizemos, a grande razão histórica para o surgimento do pensamento garantista (que aplaudimos e concordamos, insista-se) decorreu de se estar diante de um Estado em que os direitos fundamentais não eram minimamente respeitados, especialmente diante do fato do sistema totalitário vigente na época. Como muito bem sintetizado por Paulo Rangel,(4) a teoria do garantismo penal defendida por Luigi Ferrajoli é originária de um movimento do uso alternativo do direito nascido na Itália nos anos setenta por intermédio de juízes do grupo Magistratura Democrática (dentre eles Ferrajoli), sendo uma consequência da evolução histórica dos direitos da humanidade que, hodiernamente, considera o acusado não como objeto de investigação estatal, mas sim como sujeito de direitos, tutelado pelo Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê-lo, em qualquer fase do processo (investigatório ou propriamente punitivo). Não por outro motivo que pensamos que o Tribunal Constitucional Alemão também (embora não só por isso) desenvolveu (e muito bem) a necessidade de obediência (integral) à proporcionalidade na criação e aplicação das regras, evitando-se excessos (übermaβverbot) e também deficiências (untermaβverbot) do Estado na proteção dos interesses individuais e coletivos. (…). Quando dizemos que tem havido uma disseminação de uma ideia apenas parcial dos ideais garantistas (daí nos referirmos a um garantismo hiperbólico monocular) é porque muitas vezes não se tem notado que não estão em voga (reclamando a devida e necessária proteção) exclusivamenteos direitos fundamentais, sobretudo os individuais. Sintetizando, em nossa compreensão, embora construídos por premissas e prismas um pouco diversos, o princípio da proporcionalidade (em seus dois parâmetros: o que não ultrapassar as balizas do excesso e da deficiência é proporcional) e a teoria do garantismo penal expressam a mesma preocupação: o equilíbrio na proteção de todos (individuais ou coletivos) direitos e deveres fundamentais expressos na Carta Maior. Quer-se dizer com isso que, em nossa compreensão (integral) dos postulados garantistas, o Estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais (individuais e sociais), há a necessidade de garantir também ao cidadão a eficiência e a segurança, evitando-se a impunidade. O dever de garantir a segurança não está em apenas evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, mas também (segundo pensamos) na devida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito e, em sendo o caso, na punição do responsável. Se a onda continuar como está, poderá varrer por completo a também necessária proteção dos interesses sociais e coletivos. Então poderá ser tarde demais quando constatarmos o equívoco em que se está incorrendo no presente ao se maximizar exclusiva e parcialmente as concepções fundamentais do Garantismo Penal.” FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 28, mar. 2009. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html. Acesso em: 04 nov. 2021. (Grifamos).
[4] Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:
I – (revogado);
II – (revogado);
III – revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo, propiciando beneficiamento por informação privilegiada ou colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado;
IV – negar publicidade aos atos oficiais, exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei;
V – frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros;
VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades;
IX – (revogado);
X – (revogado);
XI – nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas;
XII – praticar, no âmbito da administração pública e com recursos do erário, ato de publicidade que contrarie o disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, de forma a promover inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, de programas, de obras, de serviços ou de campanhas dos órgãos públicos.
[5] NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 298.
[6] Razoabilidade é um conceito plurissignificante. Na teoria geral do direito, a reflexão e utilização do conceito do razoável é recente. (…). Ávila aponta as acepções que o dever de razoabilidade pode assumir. Dentre tantas acepções possíveis, o autor destaca três: a razoabilidade como equidade, como congruência e como equivalência. Diferentemente da proporcionalidade que necessariamente se refere a uma relação meio-fim, a razoabilidade se refere a uma relação entre medida adotada e o critério da norma. Como dever de equidade, a razoabilidade exige a harmonização da norma geral com o caso individual. Isso significa que deve haver uma relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, seja para mostrar sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, seja para indicar em quais hipóteses o caso individual, em razão de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Serve de instrumento metodológico para dizer que a norma é condição necessária, mas não suficiente para sua aplicação. Para ser aplicável, o caso concreto deve adequar-se à generalização da norma posta. É um instrumento para determinar que as circunstâncias de fato devem ser consideradas com a presunção de estarem dentro da normalidade. Nesses casos, a razoabilidade atua na interpretação das normas gerais como decorrência do princípio da justiça, ao estabelecer a observância a limites aceitáveis, dentro de standards de aceitabilidade. Exige congruência lógica entre as situações postas e as decisões ou ações. Como dever de congruência, a razoabilidade exige a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação. E, para que isso seja possível, mais uma vez é necessário se socorrer do suporte empírico existente. A interpretação das normas demanda o confronto com parâmetros externos a elas. É a congruência lógica entre as situações postas e as decisões/ações. Além disso, diante desse dever, é mister observar a correlação entre o critério distintivo ou de diferenciação utilizado pela norma e a medida adotada. Nesse caso, não há uma análise entre meio e fim, mas uma análise entre critério e medida. Como dever de equivalência, a razoabilidade exige uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona. Nesse caso, também se analisa a relação, mas sob o aspecto da equivalência, entre a medida e o critério. Verifica-se que em todas as hipóteses apontadas por Ávila, não há, como ocorre com a proporcionalidade, uma relação meio-fim, mas sim uma relação entre a medida e o critério que a condiciona. (…). No exame de razoabilidade não se analisa a intensidade da medida para a realização de um fim, mas sua intensidade em relação a um bem jurídico de determinado titular. Objetiva-se, como o exame de razoabilidade, verificar se o resultado da aplicação da norma geral ao caso individual é razoável, não arbitrária, ou seja, verificar se há uma sincronia perfeita entre o que foi posto na norma e o que dela é feito, diante de um caso concreto, tendo em vista o substrato jurídico, político e social. COSTA, Roberta Pereira Negrão. Proporcionalidade: uma clarificação do conceito. Revista da Advocacia-Geral da União. v. 8, n. 22, 31 dez. 2009. p. 10-11. Disponível em: https://seer.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/256. Acesso em 4.11.2021.
[7] Vide caput do Art. 11 da LIA. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade (…).
José Carlos Fernandes Junior – Promotor de Justiça do MPMG, Ex-Coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público do MPMG – dez/2016 a agosto/2020, Pós-graduado em Divisão de Poderes, Ministério Público e Judicialização pelo Centro de Estudo e Aperfeiçoamento Funcional do MPMG