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A continuidade normativa típica do artigo 11 da Lei 8.429/92 após as alterações introduzidas pela Lei 14.230/2021

Depois de quase 30 (trinta) anos de vigência da Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa (LIA), numa onda reativa contra os mecanismos de combate à corrupção, foi publicada a Lei 14.230/2021, que introduziu profundas alterações na LIA e em todo o sistema estruturado de responsabilização por improbidade administrativa construído no ano de 1992, a partir da determinação constitucional contida no artigo 37 da Constituição Federal de 1988 (CF/88).

Dentre as alterações, estão aquelas introduzidas no artigo 11 da LIA, as quais, numa análise mais desavisada, pode levar à conclusão de que o legislador ordinário “optou” por tipos “fechados” de improbidade administrativa que violem os princípios da Administração Pública.

Ocorre que o “sistema de responsabilização” instituído pela própria Lei 8.429/92, com as alterações da Lei 14.230/2021, analisado à luz da CF/88 afasta uma conclusão nesse sentido e autoriza a afirmação de que o artigo 11 da LIA, com a nova redação da Lei 14.230/2021, permanece como rol exemplificativo de condutas violadoras dos princípios da Administração Pública, caracterizadoras da improbidade administrativa, com a continuidade normativa típica de condutas violadoras dos princípios da Administração Pública não taxativamente descritas, que constituam relevante violação ao bem jurídico tutelado, qual seja o direito fundamental a probidade na Administração Pública.

O Estado Democrático de Direito, instituído pela CF/88, é um Estado que tem, como fundamento e fim, a dignidade humana. É o que estabelece o artigo 1º da CF/88:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana; [...].

E indo além, estabelece o Constituinte, como objetivos do Estado Democrático de Direito instituído:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Isso significa dizer que o ser humano, como ser dotado de dignidade, é o centro de justificação do Estado e de toda a sua atividade, inclusive a administrativa.

E é nesse contexto, desse Estado Democrático de Direito que tem a dignidade humana como seu fundamento e seu fim, que deve ser interpretado o artigo 37 da CF/88 que, ao disciplinar a Administração Pública, estabelece:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

[...].

§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

A atividade administrativa, em um Estado que tem como fundamento e fim a dignidade do homem, somente se justifica como instrumento para a realização dessa dignidade, o que se concretiza por meio da efetivação dos direitos fundamentais do homem, num âmbito de liberdade e desenvolvimento solidários.

Se é o homem o destinatário da atividade administrativa que tem como fundamento e fim a sua realização como ser dotado de dignidade, há que extrair da disciplina contida nessas disposições constitucionais, para além de um dever de probidade, imposto aos agentes públicos, um correlato direito fundamental à probidade na Administração, titularizado por todos os cidadãos, o que é explicitamente autorizado pelo disposto no artigo 5º, § 2º, da CF/88:

Art. 5º. [...]

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

O que objetivou, portanto, o Constituinte, ao estabelecer uma rígida disciplina para a improbidade administrativa, inclusive com a imposição de sanções civis ao agente público violador do dever de probidade, foi garantir uma proteção constitucional ao direito fundamental à probidade na Administração.

A improbidade administrativa, como violação ao dever de probidade, não foi concretamente definida pelo Constituinte, mas este deu a ela contornos constitucionais a serem observados pelo legislador ordinário, no cumprimento da determinação constitucional de concretização, por meio da atividade legislativa, da proteção ao direito fundamental à probidade na Administração.

Dessa forma, há uma delimitação constitucional para a definição, pelo legislador ordinário, da improbidade administrativa, o que impede a restrição ou a extensão arbitrária de seu conteúdo. Isso significa dizer que não pode o legislador, de modo arbitrário, afastar da definição da improbidade administrativa condutas que estejam contidas no delineamento feito pelo constituinte e que tenham o mesmo potencial de violação ao direito fundamental à probidade na Administração, que outras condutas incluídas, por lei, na definição da improbidade.

Essa é a interpretação que se extrai do disposto no artigo 37, § 4º, da CF/88:

Art. 37. [...].

§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Não conferiu, o Constituinte, ao legislador ordinário, uma ampla liberdade de definir a improbidade administrativa. Apenas possibilitou que o legislador, por meio de lei, estabelecesse a forma e gradação das sanções constitucionalmente previstas para os atos de improbidade administrativa.

É dizer: a definição dos atos de improbidade administrativa há de ser extraída dos contornos constitucionais do artigo 37 da CF/88. As definições que reduzam o seu conteúdo ou que extrapolem o delineamento constitucional, são inconstitucionais, por violação ao princípio da proporcionalidade, em sua dupla faceta – proibição de exceção e proibição de proteção insuficiente.

Muito tem se discutido, em doutrina e jurisprudência, sobre os limites de conformação outorgado ao legislador. E, ao lado da proibição de excesso, já se fala de uma faceta outra do princípio da proporcionalidade, a vedação da proteção insuficiente, que impõe ao legislador uma atuação adequada e necessária aos fins visados, à efetividade do direito fundamental garantido. Dessa forma, a atividade legislativa ferirá o princípio da proporcionalidade se, além de excessiva, for insuficiente, seja por esvaziar os comandos constitucionais asseguradores do direito ou por protegê-lo de modo insuficiente. Conforme observa Silva,

[...] Conquanto a regra da proporcionalidade ainda seja predominantemente entendida como instrumento de controle contra excesso dos poderes estatais, cada vez mais vem ganhando importância a discussão sobre a sua utilização para finalidade oposta, isto é, como instrumento contra a omissão ou contra a ação insuficiente dos poderes estatais. Antes se falava apenas em Übermaßverbot, ou seja, proibição de excesso. Já há algum tempo fala-se também em Untermaßverbot, que poderia ser traduzido por proibição de insuficiência.

[...].

Na concretização do direito fundamental à probidade na Administração que se dá, no âmbito legislativo, pela definição dos atos de improbidade administrativa e sua responsabilização, conforme delineado pelo Constituinte no artigo 37, § 4º, não poderá o legislador atuar de modo excessivo, de modo que restrinja direitos fundamentais dos agentes públicos, sem que se concretize, na mesma medida da restrição, o direito fundamental à probidade na Administração, como não pode agir de modo insuficiente, deixando sem efetividade o direito assegurado constitucionalmente. São as facetas constitucionais do princípio da proporcionalidade, que devem orientar a atividade legislativa na concreção dos direitos fundamentais.

Como bem observado pelo Ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal, Relator para o Acórdão no HC 102087, os direitos fundamentais não podem ser compreendidos apenas como proibição de intervenção, mas como mandado de proteção, que se faz, inclusive por meio dos mandados constitucionais de criminalização e de sancionamento:

HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. (A)TIPICIDADE DA CONDUTA. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO E MODELO EXIGENTE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS EM MATÉRIA PENAL. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA DESMUNICIADA. ORDEM DENEGADA. 1. CONTROLE DE   CONSTITUCIONALIDADE   DAS   LEIS   PENAIS.   1.1.   Mandados constitucionais de criminalização: A Constituição de 1988 contém significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas é possível identificar um mandado de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandados constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. 1.2. Modelo exigente de controle de constitucionalidade das leis em matéria penal, baseado em níveis de intensidade: Podem ser distinguidos 3 (três) níveis ou graus de intensidade do controle de constitucionalidade de leis penais, consoante as diretrizes elaboradas pela doutrina e jurisprudência constitucional alemã: a) controle de evidência (Evidenzkontrolle); b) controle de sustentabilidade ou justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle); c) controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle). O Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição confere ao legislador amplas margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e avaliar as medidas adequadas e necessárias para a efetiva proteção desses bens. Porém, uma vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, deverá o Tribunal exercer um rígido controle sobre a atividade legislativa, declarando a inconstitucionalidade de leis penais transgressoras de princípios constitucionais. 2. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. PORTE DE ARMA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALDIADE. A Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) tipifica o porte de arma como crime de perigo abstrato. De acordo com a lei, constituem crimes as meras condutas de possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo. Nessa espécie de delito, o legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o perigo de lesão concreta a determinado bem jurídico. Baseado em dados empíricos, o legislador seleciona grupos ou classes de ações que geralmente levam consigo o indesejado perigo ao bem jurídico. A criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada de inconstitucional. 3. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA. Há, no contexto empírico legitimador da veiculação da norma, aparente lesividade da conduta, porquanto se tutela a segurança pública (art. 6º e 144, CF) e indiretamente a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica do indivíduo etc. Há inequívoco interesse público e social na proscrição da conduta. É que a arma de fogo, diferentemente de outros objetos e artefatos (faca, vidro etc.) tem, inerente à sua natureza, a característica da lesividade. A danosidade é intrínseca ao objeto. A questão, portanto, de possíveis injustiças pontuais, de absoluta ausência de significado lesivo deve ser aferida concretamente e não em linha diretiva de ilegitimidade normativa. 4. ORDEM DENEGADA. (HC 102087, Relator(a): CELSO DE MELLO, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 28/02/2012, DJe-159 DIVULG 13- 08-2012 PUBLIC 14-08-2012 REPUBLICAÇÃO: DJe-163 DIVULG 20-08-2013 PUBLIC 21-08-2013 EMENT VOL-02699-01 PP-00001)

A CF/88, em seu artigo 37, § 4º, impõe, ao legislador, um dever de proteção ao direito fundamental à probidade na Administração, por meio de uma obrigação de sancionamento, cuja suficiência será determinada a partir do conteúdo constitucional do referido direito, delineado no artigo 37, caput, da CF/88.

É preciso relembrar que o direito fundamental à probidade na Administração e os correlatos deveres de probidade, impostos ao agente público, porquanto objetivam, no Estado Democrático de Direito inaugurado pela CF/88, a realização dos direitos fundamentais da pessoa, não se relacionam somente a proteção do patrimônio público em seu aspecto material, mas também no seu aspecto moral, como atividade voltada a realização da dignidade do homem. Os deveres de probidade, assim, impõem uma ética pública voltada a boa gestão dos recursos públicos indispensáveis à concretização dos direitos fundamentais, mas voltada também e, especialmente, ao respeito do homem, enquanto dignidade. Não se concebe a atividade administrativa como mecanismo de violação direta aos direitos humanos, ainda que dano algum cause ao erário.

A adoção de uma seletividade na definição de condutas caracterizadoras da improbidade administrativa, pelo legislador ordinário, que reduza o âmbito de proteção do direito fundamental à probidade na administração, inclusive já anteriormente concretizado, além de afrontar o conteúdo essencial do direito fundamental à probidade na Administração, cuja violação caracteriza improbidade administrativa, viola o princípio da igualdade, estampado no artigo 5º, inciso I, da CF, constitui evidente violação a vedação de proteção insuficiente e, mais, afronta a vedação de retrocesso social, decorrente do sistema de direitos fundamentais e do disposto no artigo 65, item 2, da Convenção de Mérida, subscrita pelo Brasil e incorporada ao sistema jurídico brasileiro por meio do Decreto 5.687/2006. Canotilho2, sobre o princípio da proibição de retrocesso social afirma:

[...]

Há porém, um outro lado da proteção que, em vez de salientar o excesso, releva a proibição por defeito (Untermassverbot). Existe um defeito de proteção quando as entidades sobre quem recai um dever de proteção (Schutzpflicht) adoptam medidas insuficientes para garantir uma proteção constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais. Podemos formular esta ideia usando uma formulação positiva, o estado deve adoptar medidas suficientes, de natureza normativa, ou ne natureza material, conducente a uma adequada e eficaz dos direitos fundamentais. A verificação de uma insuficiência de juridicidade estatal deverá atender à natureza das posições jurídicas ameaçadas e à intensidade do perigo de lesão de direitos fundamentais.

[...]

A Convenção de Mérida veicula mecanismo de proteção ao direito fundamental à probidade na Administração, diante das “ameaças decorrentes da corrupção, para a estabilidade e a segurança das sociedades, ao enfraquecer as instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça e ao comprometer o desenvolvimento sustentável e o Estado de Direito”.

Estando a proteção ao direito fundamental à probidade da Administração imbricado com a própria democracia, pode a Convenção de Mérida ser compreendida como um tratado internacional de direitos humanos, o qual, embora não tenha status constitucional, porquanto não internalizado no direito brasileiro na forma do artigo 5º, § 3º, da CF/88, tem status de norma supralegal, que condiciona a validade da legislação interna.

A incompatibilidade da legislação interna com o princípio da vedação de retrocesso extraível do sistema de direitos fundamentais e do disposto no artigo 65, item 2, da Convenção de Mérida retira a eficácia da norma, autorizando, assim, não somente o controle difuso e abstrato de constitucionalidade, como também o controle difuso de convencionalidade.

Sobre o assunto, ensina Mazzuoli:

[...].

Como já se falou anteriormente, não basta que a norma de direito doméstico seja compatível apenas com a Constituição Federal, devendo também estar apta para integrar a ordem jurídica internacional sem violação de qualquer dos seus preceitos. A contrario sensu, não basta a norma infraconstitucional ser compatível com a Constituição e incompatível com um tratado ratificado pelo Brasil (seja de direitos humanos, que tem a mesma hierarquia do texto constitucional, seja um tratado comum, cujo status é de norma supralegal), pois, nesse caso, operar-se-á de imediato a terminação da validade da norma (que, no entanto, continuará vigente, por não ter sido expressamente revogada por outro diploma congênere de direito interno).

Sob esse ponto de vista – de que, em geral, os tratados internacionais têm superioridade hierárquica em relação às demais normas de estatura infraconstitucional, quer seja tal superioridade constitucional, como no caso dos tratados de direitos humanos, quer supralegal, como no caso dos demais tratados, chamados de comuns –, é lícito concluir que a produção normativa estatal deve contar não somente com limites formais (ou procedimentais), senão também com dois limites verticais materiais, quais sejam: a) a Constituição e os tratados de direitos humanos alçados ao nível constitucional; e b) os tratados internacionais comuns de estatura supralegal. Assim, uma determinada lei interna poderá ser até considerada vigente por estar de acordo com o texto constitucional, mas não será válida se estiver em desacordo ou com os tratados de direitos humanos (que têm estatura constitucional) ou com os demais tratados dos quais a República Federativa do Brasil é parte (que têm status supralegal).

[...].

A falta de compatibilização do direito infraconstitucional com os direitos previstos nos tratados de que o Brasil é parte invalida a produção normativa doméstica, fazendo-a cessar de operar no mundo jurídico.

Nesse sentido consolidou-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS     INTERNACIONAIS     DE     DIREITOS     HUMANOS     NO

ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA

PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão "depositário infiel" insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO (RE 349703, Relator(a): CARLOS BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-04 PP-00675).

PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito (RE 466343, Relator(a): CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-104 DIVULG 04- 06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06 PP-01106 RTJ VOL-00210-02 PP-00745 RDECTRAB v. 17, n. 186, 2010, p. 29-165).

DEPOSITÁRIO INFIEL - PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel (HC 87585, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe- 118 DIVULG 25-06-2009 PUBLIC 26-06-2009 EMENT VOL-02366-02 PP-00237)

Resulta evidente que a suposta revogação parcial do artigo 11, caput, da Lei 8.429/92 e o estabelecimento de um rol supostamente taxativo de condutas violadoras dos princípios da Administração Pública, por reduzir, de forma arbitrária, a proteção ao direito fundamental à probidade da Administração, já concretizada pela legislação anterior pelo legislador ordinário, além de violar o conteúdo essencial do direito fundamental à probidade na Administração, afronta o princípio constitucional da proporcionalidade, pela violação à proibição de proteção insuficiente, e constitui flagrante violação a vedação de retrocesso, decorrente do sistema de direitos fundamentais instituído pela CF/88 e da Convenção de Mérida (artigo 65, item 2).

Isso se revela perceptível diante da constatação de que, uma vez compreendido o artigo 11, caput, da Lei 8.429/92 como rol taxativo de condutas violadoras de princípios da Administração Pública, excluídas estariam do âmbito de proteção determinado pelo artigo 37, caput e seu § 4º, da CF/88 graves condutas como a concussão, a corrupção passiva, os quais caracterizam crime no sistema jurídico brasileiro, e constituem modalidades de suborno, previsto no artigo 15 da Convenção de Mérida, além de todas as modalidades tentadas de dano ao erário e enriquecimento ilícito. Ainda, condutas outras violadoras dos direitos humanos, quando praticadas no âmbito da Administração Pública, tornar-se-iam um indiferente à luz da proteção constitucional do direito à probidade, apesar de não haver dúvida de sua total incompatibilidade com os princípios estampados no artigo 37 da CF/88 e com toda a principiologia do Estado Democrático de Direito, diante, inclusive, dos mandados constituintes de criminalização de tais condutas.

Essa antinomia pode ser superada diante da compreensão da Lei 8.429/92 como integrante de um sistema de responsabilização extraído da CF/88 e incorporado, de forma expressa, pela Lei 8.429/92, por força do disposto em seu artigo 1º, com a redação que lhe foi conferida pela Lei 14.230/92, e de todas as disposições que integram a Lei 8.429/92, suficientes a conferir uma interpretação ao artigo 11 da Lei 8.429/92 compatível com a CF/88, bem como com a Convenção de Mérida.

A Lei 14.230/2021, ao alterar a Lei 8.429/92, instituiu, em seu artigo 1º, um “sistema de responsabilização” pela prática de atos de improbidade administrativa. Eis o teor do artigo 1º:

Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei.

A menção explícita à instituição de um “sistema de responsabilização” reafirma a intenção constituinte delineada no artigo 37 da CF/88, já apropriada, embora não explicitamente, pela redação original da Lei 8.429/92, e impõe uma interpretação da Lei 8.429/92, com as alterações introduzidas pela Lei 14.230/2021, a partir de uma compreensão sistêmica.

Uma compreensão da Lei 8.429/92, a partir da ideia de “sistema” exige entendê-la em sintonia com as disposições constitucionais que garantem um direito fundamental à probidade na Administração e seu correlato dever de probidade, imposto aos agentes públicos, em consonância com a ideia de proteção suficiente e, para além disso, requesta uma compreensão da própria Lei 8.429/92 como um todo harmônico que, concretizando as disposições constitucionais, permita uma disciplina autointegrativa.

Nesse sentido, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais4 em conjunto com uma interpretação sistemática das normas infraconstitucionais, em conformidade com o texto constitucional permite, além de uma compreensão das normas infraconstitucionais como um todo harmônico, inserto num sistema constitucional, uma eficácia ótima das normas constitucionais.

A Lei 8.429/92, com as alterações introduzidas pela Lei 14.230/92, traz diversos dispositivos que garantem uma autointegração, para o fim de maximizar a proteção conferida pela CF/88 ao direito fundamental à probidade na Administração, dentro da concepção sistêmica apropriada pela própria Lei, em seu artigo 1º.

E é essa compreensão sistêmica que permite afirmar que, apesar das alterações introduzidas no artigo 11, caput, da Lei  8.429/92, pela Lei 14.230/2021, as condutas ali definidas não constituem rol taxativo de comportamentos violadores dos princípios da Administração Pública.

Estabelece o artigo 11, caput, da Lei 8.429/92, com as alterações introduzidas pela Lei 14.230/2021:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

I - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 230, de 2021)

     - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

II - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 230, de 2021)

III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;

III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo, propiciando beneficiamento por informação privilegiada ou colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado; (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

IV - negar publicidade aos atos oficiais;

IV - negar publicidade aos atos oficiais, exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei; (Redação dada pela Lei nº 230, de 2021)

V - frustrar a licitude de concurso público;

V - frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de   benefício   próprio,    direto    ou    indireto,    ou    de terceiros; (Redação dada pela Lei nº 230, de 2021)

VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;

VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a   ocultar irregularidades; (Redação dada pela Lei nº 230, de 2021)

VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.

VIII - descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas.    (Vide Medida Provisória nº 2.088-35, de 2000)         (Redação dada pela Lei nº 13.019, de 2014)         (Vigência)

IX - deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação. (Incluído pela Lei nº 146, de 2015) (Vigência)

IX - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 230, de 2021

X - transferir recurso a entidade privada, em razão da prestação de serviços na área de saúde sem a prévia celebração de contrato, convênio ou instrumento congênere, nos termos do parágrafo único do 24 da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. (Incluído pela Lei nº 13.650, de 2018)

X - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 230, de 2021)

XI - nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido   o   ajuste    mediante    designações recíprocas; (Incluído pela Lei nº 230, de 2021)

XII - praticar, no âmbito da administração pública e com recursos do erário, ato de publicidade que contrarie o disposto no 1º do art. 37 da Constituição Federal, de forma a promover inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, de programas, de obras, de serviços ou de campanhas dos órgãos públicos. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

Embora o dispositivo estabeleça que os atos de improbidade administrativa que violam princípios da Administração Pública caracterizam-se por uma das condutas relacionadas nos incisos do caput do artigo, os quais, ressalta-se, elenca um diminuto número de condutas que podem ser praticadas no âmbito da Administração Pública, violadoras do núcleo essencial do direito fundamental à probidade na Administração, nos parágrafos do citado artigo 11, estabeleceram-se regras outras as quais, a partir de uma interpretação calcada no dever de proteção suficiente, imposto ao legislador, como faceta da proporcionalidade, pela CF/88, permitem a conclusão de que as condutas descritas no caput, à semelhança dos tipos de improbidade que causam dano ao erário (artigo 10 da Lei 8.429/92) e dos tipos de improbidade que causam enriquecimento ilícito (artigo 9º da Lei 8.429/92), não constituem um rol taxativo.

Em princípio, cumpre assinalar que a CF/88, ao delinear o conteúdo do direito fundamental a probidade na Administração e o sistema de proteção, em seu artigo 37, em conjunto com toda a principiologia que fundamenta o Estado Democrático de Direito, não desejou que o sistema de responsabilização da improbidade administrativa fosse um sistema fechado, mas um sistema estruturado, autointegrativo, capaz de alcançar toda a múltipla e complexa realidade social e administrativa, incomportável em descrições taxativas. E para tanto diferenciou esse sistema de proteção daquela que se efetiva no campo penal, de modo explícito, no § 4º, do artigo 37.

Por outro lado, a própria estrutura normativa do caput do artigo 11 não afasta essa interpretação, uma vez que o fato de os atos de improbidade “caracterizarem-se” por uma das condutas descritas nos incisos do artigo 11, não afasta outras tipologias, definidas em leis especiais, como expressamente ressalvadas pelo artigo 1º, § 1º e artigo 11, § 2º, ambos da Lei 8.429/92:

Art. 1º. [...]

§ 1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

Art. 11. [...]

§ 2º Aplica-se o disposto no § 1º deste artigo a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de   improbidade    administrativa   instituídos   por lei. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

Nesse contexto, especial significado ganha o disposto no § 3º, do artigo 11:

Art. 11. [...]

§ 3º O enquadramento de conduta funcional na categoria de que trata este artigo pressupõe a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas.

Nota-se que o referido dispositivo não diz que o enquadramento das condutas funcionais descritas no caput do artigo 11 exige a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício de função pública, mas que o enquadramento “de” conduta funcional, na “categoria” de que trata o referido artigo, pressupõe a referida demonstração. A categoria a que se refere o artigo são os atos de improbidade que violam princípios da Administração Pública, os quais, por determinação da própria lei, não se exaurem na descrição taxativa do caput do artigo 11.

Valendo da interpretação gramatical, pode-se extrair da disposição que a utilização da preposição “de”, sem a determinação decorrente de sua contração com o artigo “a” ou “as”, atribui uma indeterminação às condutas ali referenciadas, a qual, em conjunto com a menção, também ampla e genérica, à “categoria” dos atos de improbidade que violam princípios da Administração Pública, permite a conclusão de que a disposição amplia a tipicidade contida no artigo 11, caput, da Lei 8.429/92. Essa interpretação compatibiliza-se com a estrutura típico-normativa aberta, estatuída no artigo 9º e no artigo 10, da Lei 8.429/92, como corolário do sistema instituído pelo artigo 37 da CF/88, aos quais o disposto no artigo 11 adere, para a autointegração do sistema de responsabilização previsto no artigo 1º, caput, da Lei 8.429/92.

Observa-se, ainda, que a disposição exige, para o “enquadramento de conduta funcional na categoria de que trata este artigo”, “a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas”.

Essa estrutura normativa somente tem sentido diante de uma estrutura típica aberta, em que a tipicidade é complementada por normas outras constitucionais, legais ou infralegais. Numa estrutura típica fechada a ilegalidade é ínsita à própria descrição típica e dela decorre, não havendo que falar em indicação de normas constitucionais, legais ou infralegais violadas.

Partindo do pressuposto de que na lei não existem palavras inúteis, a única interpretação que compatibiliza essa disposição com o sistema é a de que, em conjunto com o caput do artigo 11, o § 3º estabelece uma tipicidade aberta residual para os atos de improbidade que violam princípios da Administração Pública.

Em complemento, estabelece o § 4º, do artigo 11, da Lei 8.429/92:

Art. 11. [...]

§ 4º Os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

Da mesma forma, essa disposição, com aplicação restrita aos tipos descritos no artigo 11, também há de ser interpretada de forma sistêmica. Todos os tipos de improbidade administrativa devem representar lesão relevante ao bem jurídico tutelado e, em princípio, os tipos fechados já trazem em si uma presunção juris tantum de lesividade. A referência explícita à necessidade de lesão relevante aos tipos de improbidade administrativa que violam princípios da Administração Pública evidencia a intenção da lei de delimitar o âmbito de incidência dos tipos abertos instituídos pelo §§ 3º, em razão da maior porosidade dos tipos abertos de improbidade administrativa que violam princípios da Administração Pública.

Todos esses dispositivos, interpretados de forma sistêmica, para a integração das normas do sistema de responsabilização por improbidade administrativa, instituído pelo artigo 37 da CF/88 e pela Lei 8.429/92, permitem concluir pela continuidade normativa típica do artigo 11, caput, da Lei 8.429/92, e da ilicitude daquelas condutas que, violadoras de princípios da Administração Pública, constituam violação a disposição constitucional, legal ou infralegal, e lesão relevante ao direito fundamental à probidade na Administração.

Essa foi arguta percepção de Oliveira5 que, em artigo publicado no Estadão, observou:

[...].

Para todas as hipóteses em que agentes foram responsabilizados ou estão sendo processados por estas condutas ímprobas, o sistema manteve o que se denomina continuidade normativa típica. A ilicitude destas condutas continua se contrária ao tipo constitucional (artigo 37, §4º), e, bem por esta razão, segue prevista ou acolhida na própria Lei, mesmo após ter sido alterada, apenas que o seu caráter ilícito foi deslocado de um dispositivo para outro. Este é um fenômeno já muito conhecido no Direito Penal e pouco enfrentado no Direito Administrativo Sancionador, mas, dentro deste e no terreno da improbidade era desconhecido no direito brasileiro, já que revogação de tipos da LIA só ocorreu uma única vez em lei especial (artigo 21, do Estatuto da Metrópole), o que explica a forma apressada da doutrina em recorrer a ideia simplista da abolitio criminis em favor de acusados e réus, que podem ser beneficiados pelas mudanças na Lei Geral. Fácil demonstrar que estes comportamentos permanecem no sistema constitucional e autônomo da improbidade, com bases no atual modelo: (i) o art. 1º agasalha todas as ilicitudes que violam a probidade na organização do Estado (na linha do artigo 37, §4º da CF), como forma de patrimônio público e social protegido na Constituição (artigo 129, inciso III, da CF) (ii) a lei consagra a improbidade como sistema normativo, pelo que não tolera contradições internas na sua formulação (art. 1º, caput), sendo que a defesa de que atos ofensivos aos princípios se resumiriam aos incisos arrolados no artigo 11 contraria a própria técnica legislativa, pela qual, nos artigos 9º e 10, não foram afetadas descrições gerais e especiais de atos que importam enriquecimento ilícito e de atos que causam dano ao erário; (iii) o caput dos artigos 9º e 10 possuem inegável capacidade de subsunção de condutas ilícitas, o que inexoravelmente se estende ao caput do artigo 11, vez que caracterizar ilícitos, em nenhuma forma de linguagem (comum ou técnica), possui o significado de restringir ou limitar o objeto, mas apenas indicar condutas específicas proibidas no tipo geral; (iv) o novo parágrafo 1º do artigo 11 confirma e confessa a necessária indeterminação da categoria dos atos ofensivos aos princípios da administração pública (nominadamente indicados, qual sejam a honestidade, legalidade e imparcialidade), quando se refere ao abuso de funções públicas, previsto na Convenção da ONU contra a Corrupção (artigo 19), internalizada pelo Decreto nº 5.687/2006. (v) a indeterminação é reflexo do incontornável mandamento constitucional de legislar sobre a improbidade administrativa, sendo que, no terreno do DAS, há doutrina pacífica que admite esta forma de tipicidade, que é supostamente inaplicável no Direito Penal. Desde sempre, o artigo 11 exige a regular demonstração a violação ao ordenamento, acrescida de qualificação que evidencia a ofensa ao bem jurídico. (vi) foi reconhecido o vínculo umbilical entre o diploma normativo supralegal da Convenção de Mérida e a Lei de Improbidade, aperfeiçoando-se e atualizando-se a descrição do artigo 11, inciso I, que remontava à Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/1965), com o abuso de funções públicas, faceta de prática de corrupção, internacionalmente reconhecida como tal.

Conforme leciona Sanches, ao analisar a continuidade normativa típica na seara penal “[...] O princípio da continuidade-típica [...] significa a manutenção do caráter proibido da conduta, porém com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal. A intenção do legislador, nesse caso, é que a conduta permaneça criminosa”.

A combinação do artigo 11, caput e seu § 3º, da Lei 8.429/92, interpretada à luz do disposto no artigo 37 da CF/88, conduz à conclusão de que as condutas violadoras do dever de legalidade, de honestidade e de imparcialidade que eventualmente, após a Lei 14.230/2021, não mais encontrem adequação nos incisos do caput do artigo 11, continuam proibidas e, portanto, sujeitas a sancionamento.

Esse foi o entendimento esposado pelo Ministério Público Federal, por meio da 5º Câmara de Coordenação e Revisão, na Nota Técnica 01/2021 – 5º CCR:

42. O novo caput do artigo 11 da LIA possui capacidade de subsunção de condutas ilícitas, na medida em que define os princípios da administração pública cuja violação enseja a prática de ato de improbidade administrativa, identificados nos deveres de legalidade, honestidade e imparcialidade, o que se coaduna com o novo artigo 11, parágrafo 3º, inserido pela Lei nº 14.230, pelo qual se faz expressa alusão ao “enquadramento da conduta funcional na categoria de que trata este artigo”, exigindo indicação de normas constitucionais, legais ou infralegais

43. As condutas originalmente previstas nos incisos I, II, IX e X da Lei nº 429/1992, revogados pela Lei nº 14.230, não deixaram de ser condutas ímprobas tipificadas em lei, no âmbito do sistema de responsabilidade de improbidade administrativa, considerando que, para as referidas hipóteses, está presente a continuidade normativa típica, encontrando-se todas passíveis de enquadramento como violação dos “deveres de honestidade, legalidade e imparcialidade”, em abuso de função pública, conforme o artigo 11, caput e parágrafo 1º da LIA, na redação dada pela Lei nº 14.230/2021.

[...]

57. O novo parágrafo 1º do artigo 11 da LIA incorporou no sistema de improbidade administrativa a categoria de abuso de função pública, prevista na Convenção de Mérida.

Alfim, cumpre tecer breve comentário sobre o disposto no artigo 11, § 1º, da Lei 8.429/92, que assim estabelece:

Art. 11. [...]

§ 1º Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício   indevido   para   si   ou    para    outra    pessoa    ou entidade. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

A primeira observação que se faz é que a remissão explícita à Convenção de Mérida, no texto do referido § 1º, transporta para a Lei 8.429/92 a tipologia do abuso de função, disciplinado na referida Convenção, em seu artigo 19, com ampliação da tipologia elencada nos incisos do caput do artigo 11, o que reafirma sua natureza não taxativa:

Artigo 19

Abuso de funções

Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente, o abuso de funções ou do cargo, ou seja, a realização ou omissão de um ato, em violação à lei, por parte de um funcionário público no exercício de suas funções, com o fim de obter um benefício indevido para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade

Essa disposição guarda semelhança típica com o artigo 11, caput, inciso I, da Lei 8.429/92, o qual, revogado pela Lei 14.230/2021, definia o abuso de poder. Entretanto, essa tipologia ressurge na Lei 8.429/92, pelo fenômeno da continuidade normativa típica, pela nova redação do §1º, do artigo 11.

Adverte-se, ainda, que essa é única disposição, na Convenção de Mérida, em que o proveito próprio ou benefício alheio é previsto como especial fim de agir do agente e não como resultado da conduta que se integra à figura típica, confirmando, assim, a integração à LIA do disposto no artigo 19 da Convenção de Mérida.

Entretanto, alguns tipos fechados descritos nos incisos do artigo 11, caput, da Lei 8.429/92 já contêm fins específicos a serem alcançados pelo agente, incompatíveis, às vezes, com a finalidade estampada no § 1º, o que está a impor uma interpretação sistêmica que retire a antinomia das normas. Nesse ponto, a antinomia pode ser afastada pelo princípio da especialidade, a fim de afastar a incidência do especial fim de agir, incorporado aos tipos, por meio de uma norma externa, de caráter geral, ante a existência de finalidades específicas eleitas pelo legislador e insertas diretamente nos tipos fechados do caput do artigo 11.

Quanto à extensão do especial fim de agir contido no § 1º, para todos os atos de improbidade definidos na Lei 8.429/92, em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei, conforme estabelecido no § 2º, do artigo 11, da Lei 8.429/92, impõe-se considerar que todos os tipos do artigo 9º, quase todos do artigo 10 da referida lei e uma grande maioria dos tipos de improbidade administrativa descritos em leis especiais contêm como elemento do tipo o proveito próprio ou o benefício alheio.

Entretanto, é preciso pontuar que, embora a Lei 8.429/92 seja um instrumento, por excelência, de combate à corrupção, neste não se esgota, uma vez que o dever de probidade na Administração Pública esculpido no artigo 37 da CF/88 não protege a Administração Pública como um fim em si mesma, mas como instrumento da consecução de direitos fundamentais. Por essa razão, existem tipos de improbidade administrativa que constituem violações diretas aos direitos fundamentais, independentemente de caracterizar um ato de corrupção ou que favoreça a corrupção, que cause dano ao erário ou enriquecimento ilícito.

Dessa forma, uma interpretação que privilegie a máxima efetividade de todas as normas do sistema de responsabilização por improbidade administrativa impõe que esse especial fim de agir somente se integre aos tipos constantes da Lei 8.429/92, de leis especiais ou outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei, naquelas hipóteses em que a conduta típica caracterize abuso de funções, nos termos do disposto no artigo 19 da Convenção de Mérida.

Compatibiliza-se, pela interpretação, a novel legislação com a CF/88.

REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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BRASIL, Lei n. 8.429 de 02 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acesso aos 13/10/2021.

BRASIL, Decreto 5.687 de 31 de janeiro de 2006.Promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2006/decreto/d5687.htm

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral (arts. 1º ao 120).

6. ed., Salvador: JusPodivm, 2018, p. 129).

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009

OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Reformar a lei é possível, mas não tem a força de reduzir a tutela da probidade em nosso sistema constitucional democrático. Estadão, São Paulo, 04/11/2021, Blogs Fausto Macedo. Disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo

SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, n. 798, 2002, p. 23-50.

 

Fabiana Lemes Zamalloa do Prado Promotora de Justiça e Mestre em Direito pela UFG


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