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Homofobia ou heterointolerância?

Não é exagero afirmar que a intolerância é um dos fatores mais deletérios a qualquer organização sociopolítica. Prestigia a onipotência do eu e retira qualquer importância à coexistência do nós. Caminha em norte contrário ao referencial de solidariedade e, pouco a pouco, mina e desagrega quaisquer grupos com um sopro de heterogeneidade, o que é relativamente comum nas sociedades pluralistas contemporâneas. O objetivo dessas breves linhas é o de chamar a atenção para o fato de que o combate à homofobia não deve redundar na intolerância à liberdade de crítica, fruto necessário e indissociável da liberdade de pensamento e de expressão.

 

Sumário: 1. A homossexualidade e o necessário combate à homofobia; 2. O respeito pela diferença e a liberdade de crítica; 3. Epílogo; Referências bibliográficas.

 

1. A homossexualidade e o necessário combate à homofobia

 

O debate em torno dos direitos dos homossexuais, assim considerados aqueles que possuem atração por pessoas do mesmo sexo, tem aflorado a cada dia com mais intensidade no cenário político brasileiro. Esse debate, em razão das próprias características culturais da nossa sociedade, já chega com certo atraso. Afinal, em terra brasilis, homossexuais sofrem frequentes agressões físicas e morais pelo só fato de serem diferentes, destoando de um arquétipo moral que condena todo aquele que não se enquadre na lógica binária dos sexos masculino e feminino. Ante a ausência de um tertium genus, o “anormal” está fadado à rejeição pelos seus pares. O problema é que o quantitativo de “anormais” já representa considerável parcela da população brasileira. Apesar da ausência de dados plenamente confiáveis, algo em torno de 20 milhões. Pagam impostos e votam em seus candidatos, o que terminou por conferir visibilidade às suas pretensões. A principal delas é a de que tenham a sua liberdade reconhecida, podendo transitar livremente no ambiente social sem qualquer discriminação associada à sua orientação sexual.

A bandeira utilizada para combater a barbárie a que têm sido historicamente submetidos possui dois pilares básicos: conscientização e punição.

A conscientização ocorre por meio de campanhas educacionais com o objetivo de demonstrar que os referenciais de diversidade e tolerância devem caminhar juntos em qualquer sociedade que almeje alcançar padrões mínimos de harmonia. É justamente esta a função dos direitos fundamentais: permitir que ideias e posturas minoritárias sejam respeitadas pela maioria. Em Estados Democráticos, cada cidadão deve lutar, de modo obstinado, pela liberdade alheia, ainda que divirja por completo dos valores que lhe dão sustentação.

No que diz respeito à punição, observa-se que as ideias em debate no Congresso Nacional são bem diversificadas. Alguns almejam criminalizar a discriminação decorrente de orientação sexual e, outros, chegam a propor seja proibida a própria crítica à prática homossexual. O debate é saudável, mas nossos poderes constituídos não devem ignorar que um excesso não legitima outro.

 

2. O respeito pela diferença e a liberdade de crítica

 

Se os homossexuais têm lutado pelo reconhecimento de sua liberdade, ela não há de ser conquistada à custa da liberdade alheia. E, aqui, é importante identificar os limites da atuação do Estado brasileiro na proteção dessa camada da população. O objetivo, acima de tudo, deve ser o de apregoar o respeito pela diferença, sem apologia a essa ou àquela postura, qualquer que seja ela. Jovens devem ser ensinados que o mundo é plural e que a lei deve amparar a todos, qualquer que seja a cor, a raça, a situação financeira ou a orientação sexual. Mais que isso é tarefa que foge ao papel do Estado. O famoso “kit anti-homofobia”, que o Ministério da Educação estudava distribuir às escolas, parecia avançar em seara na qual deve prevalecer a orientação familiar, isso por confundir conscientização com apologia.

Além disso, o pluralismo não há de ser moldado em prejuízo da própria liberdade de expressão, que nada mais é que a faculdade reconhecida a toda pessoa de expressar, por qualquer forma ou meio, sem censura prévia, os universos cognitivo, valorativo, simbólico e moral formados no interior do seu ser.[1] O pensamento, que reflete crenças, conhecimentos ou sentimentos, rompe a esfera psíquica da pessoa e, a partir de uma via instrumental (palavras, escritos etc.), alcança a realidade.[2] A importância da liberdade de expressão no delineamento da personalidade individual e a sua imprescindibilidade no desenvolvimento do princípio democrático tornaram recorrente a sua proteção normativa.

No direito norte-americano, não obstante o silêncio de sua sintética Constituição, os fundamental rights foram objeto de previsão nas sucessivas emendas ao texto constitucional. Eis o teor da 1ª Emenda: "[o] Congresso não editará nenhuma lei que atinja a instituição ou interdite o livre exercício de uma religião nem que restrinja a liberdade de expressão ou de imprensa ou o direito que tem o povo de reunir-se pacificamente e de dirigir petições ao governo para solucionar suas queixas". A exemplo de qualquer direito fundamental que encontre sustentação em enunciados linguísticos, também a liberdade de expressão deve ter o seu conteúdo delineado com a necessária consideração da influência exercida pelo contexto, tanto linguístico como não linguístico, o que bem justifica o porque de o mesmo texto dar origem a normas diversas consoante as variações de natureza espacial e temporal. A partir dessa constatação de ordem metodológica, é possível compreender a razão de as palavras de ódio (hate speech), endereçadas a certos grupos por razões étnicas, raciais, religiosas ou de orientação sexual, receberem tratamento diferenciado no direito brasileiro e no norte-americano.

Um dos alicerces de sustentação da sólida democracia norte-americana está justamente na liberdade de expressão. Cada indivíduo tem o direito de expor suas ideias, por mais impopulares que sejam, e influir sobre a vontade da maioria, a qual, por fim, definirá os valores sociais prevalecentes, que se projetarão sobre o processo de formação da vontade política no âmbito das estruturas estatais de poder. Não é por outra razão que um norte-americano frequentemente diz “I can say what I want, it’s a free country.”[3] A liberdade de expressão, encampada pelo Bill of Rights de 1791, mais especificamente pela 1ª Emenda, passou a ocupar uma posição preferente (preferred position) no direito norte-americano, atraindo a classificação de “suspeita” sobre qualquer medida que lhe imponha restrições, quer no interesse do Estado, quer em prol de outros interesses individuais, o que aumenta o ônus argumentativo na demonstração de sua necessidade e consequente compatibilidade com a Constituição.

A Suprema Corte norte-americana, no Caso R.A.V. vs. St. Paul (505 U.S. 377, 1992), considerou inconstitucional uma lei de St. Paul, Minessota, que proibia o uso de qualquer símbolo que disseminasse raiva, medo ou ressentimento nas pessoas com base em raça, cor, credo, religião ou gênero. De acordo com o Justice Scalia, essa lei estabelecia um tratamento diferenciado para distintas espécies de expressão, e “that is precisely what the First Amendment forbids”. Portanto, cumpriria à própria coletividade valorar e, ao fim, rechaçar as manifestações passíveis de comprometer a paz social. Em prol da ampla proteção da liberdade de expressão, com abstração do teor das ideias veiculadas, argumenta-se que ela busca limitar a censura governamental, sendo um direito de vital importância para a cultura norte-americana e indispensável ao evolver do ambiente democrático.[4] Argumenta-se, em sentido contrário, que as palavras de ódio ultrapassam o âmbito de proteção da liberdade de expressão, já que causam danos psicológicos aos grupos atingidos, caminham em norte contrário à coesão social e violam a igualdade subjacente a todos os integrantes da espécie humana, com abstração das características e opções que só interessam à individualidade de cada qual.[5] Em prol dessa última linha de argumentação, Cortese[6] ainda observa que nada menos que 25% dos estudantes de um campus acadêmico norte-americano costumam ser vítimas desse tipo de discriminação, sendo que um terço desse total em mais de uma ocasião, o que bem demonstra a dimensão social do problema.

 

Apesar do inegável efeito deletério gerado pelas palavras de ódio no ambiente social, deve-se reconhecer que a liberdade de expressão, na realidade norte-americana, assumiu contornos quase absolutos, somente podendo sofrer as restrições que se mostrem indispensáveis à continuidade do Estado e da sociedade, o que, no entender da Suprema Corte, não parece ser o caso. Esse entendimento, à evidência, não se ajusta à realidade brasileira, em que a liberdade de expressão não chegou a assumir uma posição de sacralidade em evolução político-social, isso sem olvidar a imperiosa necessidade de harmonizá-la com outros direitos de estatura constitucional. O inciso X do art. 5º da Constituição de 1988 é bem sugestivo nesse sentido: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.[7]

 

Epílogo

 

Apesar de a liberdade de expressão não poder macular outros valores de estatura constitucional, não se deve por no mesmo saco a discriminação individual e a crítica a valores ou a comportamentos concebidos de modo abstrato. Criticar a prática homossexual, de modo sereno e civilizado, principalmente no âmbito da educação familiar ou religiosa, parece ser tão legítimo quanto criticar os dogmas de uma religião ou de um partido político. Todo ser humano deve ter o direito de expressar opiniões de acordo com a sua concepção de certo ou errado.

O grande desafio a ser enfrentado pelo Estado brasileiro é o de combater a homofobia sem desaguar na intolerância às opiniões e aos valores prestigiados por uma parcela não menos relevante da população brasileira: aquela formada pelos heterossexuais. A não ser assim, o lenitivo assumirá as características do mal que busca combater.

 

Referências bibliográficas

 

CORTESE. A.J.P. Opposing Hate Speech. U.S.A.: Greenwood Publishing Group, 2006.

GARCIA, Emerson. Conflito entre Normas Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2015.

HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auflage. Heidelberg: C. F. Müller, 1999.

MACHADO, Jónathas E.. Liberdade de expressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.

NELSON, Samuel Peter. Beyond the First Amendment: the politics of free speech and pluralism, Maryland: John Hopkins University Press, 2005.

WEST, Robin. Progressive constitutionalism: reconstructing the Fourteenth Amendment. USA: Duke University Press, 1994.

WOLFSON, Nicholas. Hate speech, sex speech, free speech, U.S.A.: Greenwood Publishing Group, 1997.

 


[1] Cf. HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auflage. Heidelberg: C. F. Müller, 1999, p. 166 e ss..

[2] Cf. MACHADO, Jónathas E.. Liberdade de expressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 119 e ss..

[3] Cf. NELSON, Samuel Peter. Beyond the First Amendment: the politics of free speech and pluralism, Maryland: John Hopkins University Press, 2005, p. 1.

[4] Cf. WOLFSON, Nicholas. Hate speech, sex speech, free speech, U.S.A.: Greenwood Publishing Group, 1997, p. 47.

[5] Cf. WEST, Robin. Progressive constitutionalism: reconstructing the Fourteenth Amendment. USA: Duke University Press, 1994, p. 157-158.

[6] Opposing Hate Speech. U.S.A.: Greenwood Publishing Group, 2006, p. 2.

[7] Sobre o conflito da liberdade de expressão com outros direitos fundamentais, vide: GARCIA, Emerson. Conflito entre Normas Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 432 e ss..


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